Aquela troca de mensagens no WhatsApp foi reveladora. No grupo Clean Global Brexit (que pode ser traduzido como “Um Brexit Limpo e Global”), com mais de 100 membros, comentava-se na noite deste sábado a recente demissão de David Frost, o negociador principal para o Brexit que bateu com a porta, no mais recente revés deste governo britânico. “Ele está preocupado com a direção política do governo. A maioria dos deputados conservadores também”, era uma das mensagens que se podia ler.
Até que Nadine Dorries, a atual ministra da Cultura, decidiu sair em defesa de Boris Johnson: “O primeiro-ministro é o herói que conseguiu o Brexit”, escreveu. “Tenho noção que, como disse alguém hoje, o regicídio está no ADN do Partido Conservador. Mas um bocadinho de lealdade a quem ganhou uma eleição, conseguiu uma maioria de 83 deputados e alcançou o Brexit não fazia mal.” A reação veio rápida: “Steve Baker removeu Nadine Dorries”, pode ler-se nos print screens que foram divulgados pelos media. “Já chega”, escreveu de seguida o deputado conhecido pelas suas fortes posições pró-Brexit.
EXC – big row in a Tory Whatsapp “Clean Global Brexit” group with over 100 MPs
It leads leads to removal of Nadine Dorries after she defending the PM … and then Steve Baker declaring “enough is enough”
Exchanges here: pic.twitter.com/SsktMPJNSW
— Sam Coates Sky (@SamCoatesSky) December 18, 2021
A troca de mensagens é ilustrativa da irritação que se sente nas fileiras dos tories relativamente ao primeiro-ministro. Boris Johnson sempre gozou de popularidade entre os membros do seu partido, sobretudo depois de ter conseguido em 2019 a maior vitória de sempre desde Margaret Thatcher. Mas agora, com um governo assolado por escândalos sucessivos e uma queda abrupta nas sondagens, até os mais leais começam a questionar se vale a pena mantê-lo no cargo. “É a pior crise de sempre” deste governo, admite ao Observador Andrew Gimson, biógrafo e amigo do primeiro-ministro.
A dias do Natal, Boris só quer garantir que não terá no sapatinho uma rebelião dos conservadores. Mas, com o Parlamento suspenso para férias, pode suspirar de alívio para já. Tudo deve transbordar para o próximo ano — e ainda há tempo para pedir uns quantos desejos a acompanhar as passas.
Peppa Pig, festas de Natal, vinho e queijo. O “período de pesadelo” de Boris Johnson
Consciente da situação periclitante em que está, esta semana Johnson não arriscou tomar medidas restritivas que cancelem o Natal dos britânicos, apesar dos avisos das autoridades de saúde relativamente à variante Ómicron — que já infetou mais de 90 mil pessoas no Reino Unido.
Esta segunda-feira houve Conselho de Ministros extraordinário para decidir novas medidas de combate à Covid-19, mas, ao contrário do que muitos esperavam, não saiu dali nenhuma nova medida de contenção. Foram três horas de reunião, com a larga maioria dos ministros a oporem-se a um novo lockdown — apenas quatro foram a favor, de acordo com o Telegraph. À saída, o primeiro-ministro tentou não se comprometer com decisões taxativas: falou numa decisão “extremamente difícil”, na decisão de aplicar restrições “equilibradas” e garantiu que o governo continuará “de olho nos dados” sobre a nova variante, para perceber se se está a traduzir num aumento da pressão hospitalar. Mas, para já, tudo na mesma.
“Ainda agora estive a falar com um ministro que me dizia que, se o governo conseguir evitar um novo confinamento, a posição de Boris está segura. Caso contrário, poderia enfrentar uma moção de censura [interna]”, avisa Gimson ao telefone, a partir de Londres. Perante o seu futuro político em risco, o primeiro-ministro não quis tomar uma medida impopular — não apenas entre o grande público, mas até entre os seus ministros.
Para compreender a decisão, é necessário recordar os acontecimentos do último mês e os sucessivos abalos que o governo enfrenta. Vejamos tudo por ordem cronológica:
- 4 de novembro — O deputado conservador Owen Paterson demitiu-se na sequência de um escândalo que o envolve, por ter prestado serviços de lobbying a empresas enquanto ocupava o cargo na Câmara dos Comuns. Nos dias que antecederam a demissão, Boris protagonizou um braço-de-ferro com os seus deputados que correu mal: uma comissão de inquérito parlamentar recomendou a suspensão de Paterson, o primeiro-ministro rejeitou a ideia e quis alterar as regras através de uma votação no Parlamento que foi chumbada pelos seus próprios deputados. Paterson acabou por demitir-se e a eleição para a sua substituição viria a trazer graves consequências para os tories, como veremos mais à frente.
- 23 de novembro — Boris Johnson fez um discurso perante a Câmara da Indústria Britânica em que se perdeu nas folhas que levou e acabou a elogiar o parque temático dos desenhos animados Peppa Pig.
- Primeira semana de dezembro — Surgem notícias que dão conta de que no ano anterior, em pleno confinamento, teve lugar uma festa de Natal em Downing Street. À altura, os eventos sociais estavam proibidos — mas na residência oficial do primeiro-ministro houve vinho, queijo e uma entrega de presentes ao “amigo secreto”. Nos dias seguintes surgem mais relatos de outras festas durante esse período.
- 8 de dezembro — A porta-voz Allegra Stratton demitiu-se depois de ser divulgado um vídeo de 2020 onde é vista a comentar, em tom de piada, a realização das festas de Natal dos dias anteriores.
- 9 de dezembro — Deputados escrevem a uma comissão parlamentar pedindo que se continue a investigar o caso da renovação do apartamento do primeiro-ministro em Downing Street. O caso já havia sido condenado pela Comissão Eleitoral, porque Boris utilizou donativos feitos ao Partido Conservador para financiar as obras.
- 15 de dezembro — O governo propõe novas medidas contra a Covid-19, nomeadamente um certificado sanitário semelhante ao usado na União Europeia, que comprove que o titular é vacinado ou tem um teste negativo recente, para entrar em alguns locais como discotecas. A medida foi aprovada graças aos votos da oposição, porque 99 deputados do Partido Conservador decidiram quebrar a disciplina de voto e votar contra a medida.
- 16 de dezembro — Os conservadores perdem a eleição intercalar no círculo eleitoral de North Shropshire — cujo lugar pertencia precisamente a Owen Paterson, afastado após o escândalo de lobbying. A derrota para os liberais-democratas não só foi por um valor estrondoso (34% de diferença), como aconteceu num círculo eleitoral que pertencia aos conservadores desde 1832 (com exceção da eleição de 1904).
- 18 de dezembro — O Daily Mail publicou uma notícia que dava conta que o secretário de Estado responsável pelas negociações sobre o Brexit, David Frost, pedira a demissão e ia sair do governo em janeiro. Na carta que entregou ao primeiro-ministro, Frost diz-se contra o rumo do governo, por estar a aplicar aumento de impostos e maiores gastos públicos, e declara-se contra as “medidas coercivas” aplicadas a propósito da Covid-19. A demissão é particularmente relevante porque Frost foi uma escolha pessoal de Boris Johnson e era visto como um aliado próximo dentro do governo.
- 19 de dezembro — O jornal The Guardian publicou uma fotografia que mostra o primeiro-ministro, a mulher e colegas no jardim de Downing Street, com vinho e queijo. Mais uma vez, o episódio remonta a 2020, quando estava em vigor um confinamento que proibia contactos com pessoas fora do agregado familiar a não ser em trabalho. O ministro da Justiça, Dominic Raab, justificou o acontecimento como sendo precisamente um momento de trabalho: diz que aquele jardim é “um local de trabalho” e que os participantes estão quase todos “de fato ou com roupa de trabalho”.
“Tem sido um período de pesadelo, sem dúvida”, resume Andrew Gimson. “Ele parece exausto e algumas das decisões que tem tomado são más”, reconhece este aliado ao Observador, muito embora aponte o timing da divulgação destas informações como sendo indicador de “tentativas dos inimigos o boicotarem, porque ele está em baixo”. Apesar disso, o amigo reconhece que esta última fotografia tem um impacto tremendo: “As pessoas dizem ‘eu não podia ir visitar a minha avó e estes tipos estão a beber vinho e a comer queijo no jardim’”.
Tim Bale, professor de Ciência Política da Queen Mary University, reforça ao Observador que as informações de que em Downing Street houve festas e convívios quando a população estava confinada “está a afetar muito a popularidade do governo”. “É só olharmos para as sondagens: o Partido Conservador caiu 5 pontos em poucas semanas”, diz este especialista nos tories. “Se continuarmos assim, vamos entrar em terreno familiar na política: a meio do mandato a oposição passa para a frente e o governo tenta voltar a subir antes de chegarem as eleições.”
As sondagens são claras. A taxa de popularidade de Boris Johnson está no seu pior ponto de sempre: na do YouGov caiu 11 pontos desde meados de novembro; na da Ipsos Mori foi ultrapassado pelo líder da oposição, Keir Starmer, pela primeira vez desde 2008.
Tories preparam-se para o pós-Boris, mas talvez só na primavera
Perante este cenário, a imprensa britânica voltou a ressuscitar o número 1922 — o nome do famoso comité do Partido Conservador que tem o poder de organizar uma moção de censura ao seu líder. Se pelo menos 15% dos deputados tory enviarem uma carta ao presidente do comité, a votação será preparada. Em caso de vitória, um primeiro-ministro ganha mais um ano de vida; em caso de derrota, o partido substitui o primeiro-ministro por outro membro do partido.
Não há ainda sinais de que terá havido cartas suficientes, mas a especulação já é real. As críticas a Boris Johnson sucedem-se e surgem agora até nos artigos de opinião dos colunistas mais leais em jornais como o Telegraph — “Desculpe, primeiro-ministro, a festa acabou”, escrevia esta terça-feira Michael Deacon. Os deputados queixam-se abertamente em grupos de WhatsApp e os ministros contam aos jornais tudo o que se passa nas reuniões do Executivo. “O governo está em pé de guerra e dividido. Muitos dos seus membros já se posicionam caso venha a haver uma corrida à liderança”, nota Tim Bale. “Alguns tories mais libertários ou pró-Brexit estão de facto preocupados com as medidas do governo. Mas a maioria só está preocupada porque tem medo de afinal vir a perder os seus lugares numa próxima eleição.”
De criança tímida a político exuberante: Boris Johnson não é uma piada
Uma leitura que Andrew Gimson reforça: “Este partido no passado não teve problemas em livrar-se de Thatcher quando achou que ela punha em risco a vitória nas eleições. Se o partido passar a achar o mesmo de Boris Johnson, também se vai livrar dele”, garante. Mas a bomba atómica do comité 1922 não pode ser usada a torto e a direito, não vá acontecer o que se passou com Theresa May: em dezembro de 2018, mesmo ferida pelo processo do Brexit, conseguiu vencer a votação.
Pelo sim pelo não, as figuras de destaque dentro do partido vão dando sinais de que estão disponíveis para a liderança no futuro. O ministro das Finanças, Rishi Sunak, é um deles. A ministra dos Negócios Estrangeiros, Liz Truss, é outra — como comprova a fotografia de Natal que partilhou com ar “presidenciável”, como apontaram muitos comentadores. Truss foi precisamente a escolhida por Boris Johnson para substituir David Frost nas negociações com a União Europeia sobre a Irlanda do Norte, o que alguns dentro do partido encararam como um presente envenenado.
Wishing everyone in the UK and around the world a merry Christmas ???????? ???? pic.twitter.com/xPmsm2t7JH
— Liz Truss (@trussliz) December 15, 2021
Truss agrada à ala mais libertária do Partido Conservador pelas suas posições a favor de impostos mais baixos e menor intervenção estatal, mas foi contra o Brexit, o que cria anticorpos junto de algumas fações do partido. Não por acaso, o Telegraph deu conta de que no Clean Global Brexit — o infame grupo de WhatsApp onde se criticou Boris abertamente — a sua nomeação foi vista com alguma preocupação. “Vai ser um desafio, para usar um eufemismo”, comentou ao mesmo jornal Mark François, um dos Brexiteers mais destacados da bancada conservadora nos Comuns.
Certo é que as próximas semanas serão decisivas para perceber como Truss se vai posicionar. “Tudo depende do que ela considera melhor para as suas ambições: escolher um caminho de conciliação ou confrontação”, afirma Tim Bale. “Eu apostaria na segunda hipótese, mas só nas próximas semanas saberemos.”
“Não há nenhuma escolha óbvia no partido”, aponta Andrew Gimson, que considera que o mais certo é Boris Johnson aguentar-se na liderança apesar dos ventos que sopram a seu desfavor. “A maioria dos conservadores sabem que seria uma loucura tentar substitui-lo agora. E ele é resiliente.” Apesar do momento desastroso, Bale também considera que, para já, Boris pode suspirar de alívio: “A não ser que as investigações às festas de Natal descubram algo grave, como ele ter mentido ao Parlamento, creio que os deputados conservadores vão esperar para ver se as coisas melhoram no Ano Novo.”
Não se pense, porém, que isso significa que o primeiro-ministro pode estar descansado de que governará até ao fim do mandato. “Se as coisas não melhorarem e os tories tiverem um mau resultado nas eleições locais da primavera, ele está em apuros”, sentencia o professor da Universidade Queen Mary. A votação pode ser decisiva para perceber o descontentamento com o governo e também a força da oposição, personificada no trabalhista Keir Starmer, que tem optado por um estilo mais discreto e conciliador.
Starmer apoiou o governo na aprovação das novas medidas contra a Covid, mas não hesitou em atacar o primeiro-ministro sobre a foto do convívio em Downing Street: “Olhem para a foto e perguntem-se: aquilo é uma reunião de trabalho ou um evento social? Parece-me que a resposta é óbvia.” O “caos no coração do governo” ajuda Starmer, aponta Bale; mas o professor vê decisões acertadas por parte do líder trabalhista, como a de remodelar recentemente a sua equipa. “Nas últimas semanas está claramente mais confiante. E sucesso atrai sucesso.” Boris Johnson terá de continuar a olhar por cima do ombro — para os trabalhistas mas, sobretudo, para dentro do seu próprio partido.