A noite era de grande expectativa no Círculo Eça de Queirós, em Lisboa. Afinal, não é todos os dias que se recebe à mesa um Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa ia ser o convidado de honra do jantar organizado pelo Harvard Club of Portugal, que junta antigos alunos portugueses (ou a viver em Portugal) daquela instituição. O pretexto servia também para assinalar a nomeação do novo presidente da agremiação, mas foi Marcelo quem roubou o palco. Perante uma audiência de quase cem comensais, o Presidente quis deixar uma nota de otimismo: as coisas estão a mudar; “finalmente”, terá dito, está a emergir uma alternativa ao PS no centro-direita.
Segundo apurou o Observador junto de elementos que estiveram presentes nesse jantar — sobretudo gestores, empresários, médicos e advogados –, realizado a 29 de março, Marcelo Rebelo de Sousa terá deixado três ideias essenciais: que agora estava mais otimista em relação ao sistema político-partidário português; que no passado achava que o centro-direita se estava a diluir e não construia alternativa; e que o ciclo estava a mudar — a “mexicanização” do regime não tinha de ser uma fatalidade e via finalmente emergir uma solução no centro-direita.
A intenção do Presidente da República, apurou o Observador, foi também marcar uma diferença entre o passado mais recente e o presente. Até há bem pouco tempo, acredita Marcelo, havia quem no centro-direita estivesse convencido que bastava esperar que o PS caísse para que o poder mudasse de mãos, que não era importante apresentar-se inequivocamente como solução; agora, no entanto, já existe a perceção de que é importante preparar uma solução que seja sustentável para o futuro. Na perspetiva do Presidente, depois de andar há anos a alertar para a importância de se constituir uma alternativa ao PS, finalmente perceberam.
Sem nunca nomear os protagonistas, o alcance das palavras de Marcelo Rebelo de Sousa é óbvio: Luís Montenegro percebeu o que Rui Rio não percebera — o centro-direita tinha de se mobilizar para constituir uma verdadeira alternativa. Curiosamente, nota um dos comensais que estiveram no jantar organizado pelo Harvard Club of Portugal, este discurso mais otimista do Presidente da República aconteceu dois dias antes de o semanário Expresso publicar uma sondagem que apontava para uma queda vertiginosa do PS e, sobretudo, para o empate a 30% entre PS e PSD. “Talvez já soubesse o que aí vinha”, comenta um dos participantes desse jantar.
Numa longa dissertação considerada “brilhante”, em que “90% foi sobre a evolução geopolítica”, e sem nunca falar do partido A ou do partido B, Marcelo Rebelo de Sousa quis convencer o auditório de que havia renovadas razões para continuar a acreditar na vida para lá do PS — ou num sistema político-partidário que não tenha os socialistas no centro, transformados numa espécie de pivô permanente, exercendo esse poder com partidos na esquerda ou na direita. O tal cenário da “mexicanização” do regime, frisou o Presidente da República, parece estar afastado.
Marcelo terá ainda acrescentado que os sinais que vai lendo no centro-direita lhe permitem ter boas perspetivas sobre uma solução de poder que não inclua forças radicais ou populistas — tema que tem alimentado vários recados presidenciais a Luís Montenegro. “Marcelo não falou dos nomes dos partidos ou dos líderes, mas sempre deixou claro que era do PSD que falava como alternativa. Isto enquanto explicava que essa alternativa era sem as forças da direita radical. Carregou várias vezes na tecla do ‘começa agora a haver alternativa à direita’ e de que o ‘ciclo estava a mudar’”, reforça outro dos convidados do evento apresentado como “cocktail & dinner with his excellency Marcelo Rebelo de Sousa, President of the Portuguese Republic”.
O calendário que está no bolso de Marcelo
Os ecos desta intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa à porta fechada chegaram naturalmente aos sociais-democratas, há muito agastados com os sucessivos ralhetes públicos do Presidente da República. Ainda na segunda-feira, na primeira vez que falou sobre o momento difícil que o Governo atravessa à boleia da comissão parlamentar de inquérito à TAP, Marcelo não deixou de censurar António Costa, de recuperar a ameaça de dissolução da Assembleia da República, mas — e esta é parte que mais incomoda o PSD — de dizer que não havia uma “alternativa óbvia” aos socialistas.
Montenegro não deixaria Marcelo sem resposta. “O PSD assegura aos portugueses e também ao Presidente da República que é a alternativa ao Governo e ao PS e está pronto para assumir todas as consequências da alternativa quando for oportuno”, atirou o líder social-democrata, numa rara resposta direta a Marcelo Rebelo de Sousa. Aliás, numa referência ao facto de o Presidente da República ter dito que não “estava no bolso de ninguém”, Governo ou oposição, o presidente social-democrata deixou outro recado: “O PSD e o seu líder não estão no bolso de ninguém, têm total independência na sua ação política”.
Na resposta à resposta, já esta quinta-feira, Marcelo cortaria o assunto. “Disse o que tinha a dizer na segunda-feira. Opiniões há muitas“, despachou o Presidente da República — mais uma prova de que as relações entre Belém e São Caetano já foram melhores. Tal como explicava aqui o Observador, o PSD habituou-se a não contar com a bênção de Marcelo Rebelo de Sousa — mesmo que à porta fechada não seja tão duro com os sociais-democratas.
Na direção do PSD, consolidou-se a ideia de que o PSD terá de fazer o seu caminho sem Marcelo — ou apesar de Marcelo. Aliás, no passado, a fórmula “esdrúxula” encontrada pelo Presidente para definir um patamar mínimo para considerar a existência de uma maioria alternativa — que o PSD tivesse o dobro do somatório do Chega e da IL nas sondagens — foi recebida com estupefação pelos sociais-democratas.
Mas a direção do PSD vai aprendendo a absorver os sinais de Marcelo, sem entrar num bate boca direto com o Presidente da República — uma guerra aberta com o Presidente da República, que goza de altos índices de popularidade, seria um monumental tiro no pé. Por isso, vinga a teoria do copo meio cheio: o facto de Marcelo Rebelo de Sousa estar sistematicamente a definir como imperativo que o Governo arrepie caminho até ao final de 2023 é lido como um aviso claro de que o relógio para o fim de António Costa pode mesmo ter começado a contar.
Basta ver que, no mesmo dia em que voltou a sugerir que a alternativa ao PS ainda não existia, Marcelo avisou que “o Governo não deve dar por garantido que a maioria absoluta é um seguro para não haver dissolução”. Horas mais tarde, o Observador explicava o verdadeiro alcance das palavras do Presidente da República, citando fonte próxima do chefe de Estado: “O que o Presidente quer dizer é que, ou o Governo inverte o ciclo, ou há eleições no segundo semestre de 2024. Não pode ser logo em janeiro porque há eleições europeias, mas logo a seguir o Presidente convoca eleições”.
De resto, Montenegro deu o mesmo salto lógico na reação à mais recente intervenção de Marcelo: mesmo recordando que as legislativas, por princípio, serão apenas em 2026, o líder social-democrata fez questão de notar que, “se o Presidente da República fizer uma avaliação diferente e suscitar um momento eleitoral antes de 2026” o partido e ele próprio estarão prontos já “hoje” e “para tudo o que for necessário”.
Seja como for, continua a faltar uma peça ao puzzle social-democrata: Marcelo pode já estar pelos cabelos com António Costa; até pode ter começado a reconhecer, em ambientes seguros, algum trabalho feito pela atual liderança social-democrata; resta saber se terá mesmo coragem para usar a bomba atómica se ou quando o momento chegar.
Na cúpula do PSD desconfia-se que o Presidente da República esteja mesmo disposto a dar esse passo. Na cabeça de Marcelo ficou sempre a ideia de que a realidade lhe deu razão quando, em plena crise orçamental, decidiu dissolver a Assembleia e convocar eleições antecipadas — de um PS dependente do PCP e já sem o apoio do Bloco nasceu um PS maioritário; a situação ficou clarificada. Agora, Marcelo terá medo de não ter razão outra vez, lançar o país numa crise política quando tem uma conjuntura económica altamente adversa às costas e despedir-se de Belém como o único Presidente que dissolveu por duas vezes a Assembleia.
Marcelo não dissolve AR em 2023, mas abre porta a legislativas depois das Europeias