Índice
Índice
A banca europeia vive dias de alvoroço. O resultado do referendo britânico foi a pesada gota de água que, pela incerteza que trouxe e pelas consequências que poderá ter, fez transbordar o copo, instalando um sentimento de urgência num setor que já vivia amargurado.
A banca italiana tem uma vala comum com 360 mil milhões de esqueletos no armário mas o primeiro-ministro italiano diz que, se lhe fosse dada a oportunidade, não trocaria os bancos italianos pelos “de outros locais” — leia-se, os da Alemanha. O maior banco da Alemanha, o Deutsche Bank, encontra-se demasiadas vezes do “lado errado” das notícias e teme-se pela sua solidez, mercê da sua exposição a instrumentos complexos arriscados. Nos últimos dias, o banco passou ao ataque e, pela voz do economista-chefe, pediu um plano de resgate de 150 mil milhões de euros para todo o setor. Agora, num relatório de 37 páginas, dá a sua receita para tirar a banca das areias movediças e, assim, salvar todo o projeto europeu.
Nos últimos anos, os longos anos pelos quais se arrasta a crise europeia, “tem havido uma tendência para usar os bancos como bodes expiatórios. Admitimos que isso possa proporcionar ganhos políticos de curto prazo, mas penalizar excessivamente os bancos coloca em risco o crescimento económico”, avisa o Deutsche Bank. Num relatório enviado esta semana aos investidores e a que o Observador teve acesso, uma equipa de economistas do gigante alemão faz uma “wish list”, uma lista de desejos — uns mais exequíveis do que outros — para evitar o colapso.
“O Brexit trouxe um novo desafio. A situação [da banca europeia] é extremamente instável e, se não for levada a sério rapidamente, poderá constituir um revés muito grave para a recuperação europeia, ameaçando a sustentabilidade do projeto da moeda única“, defende o banco alemão, acrescentando que “o Brexit não é um mero exercício intelectual — é um choque para um sistema que já é vulnerável“.
“Instabilidade nos mercados pode penalizar a capacidade dos bancos de conceder crédito, o que, por sua vez, irá enfraquecer economicamente a zona euro. As perspetivas de emprego irão enfraquecer, colocando em causa, potencialmente, a estabilidade política”, diz o Deutsche Bank.
A tese dos economistas do banco alemão é a de que a instabilidade financeira e as dificuldades da banca estão a travar a retoma e isso está, a um ritmo veloz, a aumentar a insatisfação dos cidadãos. Sem medidas audazes, a subida dos partidos extremistas irá acentuar-se e estes partidos populistas irão explorar a insatisfação das pessoas, dirigindo-a para a pertença à zona euro e/ou à União Europeia. O tempo está a esgotar-se e, numa Europa muito dependente da banca para irrigar a atividade económica, será aí que tem de se começar a resolver os problemas.
Como é que se chegou até aqui?
Os problemas da banca europeia começam, mas não acabam, na dificuldade em obter rentabilidade. Isto é verdade em Portugal, como o governador do Banco de Portugal afirma cada vez que um microfone lhe é colocado pela frente, mas é cada vez mais um problema em toda a Europa. No seu relatório recente, o Deutsche Bank assinala a estimativa média de todos os analistas do setor, que apontam para uma quebra média de 14% dos lucros dos bancos neste ano — há seis meses previa-se uma subida de 6% neste mesmo período. E a situação só deverá piorar com o resultado do referendo britânico.
Os bancos têm, assim, uma dificuldade de gerar resultados e capital internamente, numa Europa em que falta crescimento e as taxas de juro zero (ou, mesmo, negativas) se arrastam há demasiados anos. Além disso, a desvalorização das ações torna mais difícil para a banca europeia reforçar a solidez externamente, através de aumentos de capital. Para piorar a situação, do ponto de vista externo, acredita-se que as novas regras de resolução bancária estejam a afugentar mais os investidores, numa altura em que os mínimos de capital exigidos pelos reguladores são cada vez maiores. Em termos simples, regra geral os bancos estão constrangidos nos riscos que podem correr, à procura de rentabilidade que lhes permita ter lucros e reforçar capitais, e, por outro lado, quem investe nos bancos também tem menos disponibilidade para o fazer.
O economista-chefe do Deutsche Bank deu a cara esta semana com um alerta que correu o mundo: a Europa está “gravemente doente e precisa de enfrentar os problemas, muito rapidamente, ou acontecerá um acidente“. E “enfrentar os problemas”, na opinião de David Folkerts-Landau, começa por criar um programa de recapitalização de bancos à escala europeia, num valor a rondar os 150 mil milhões de euros.
Seria um plano parecido com o Troubled Asset Relief Programme (TARP) que foi lançado nos EUA, em 2008, para livrar os bancos dos investimentos ruinosos que, na análise dos responsáveis norte-americanos de então, iriam entupir o fluxo de crédito e travar a recuperação da economia. Foram aplicados 475 mil milhões de dólares nesse programa, mas Landau defendeu que um terço desse valor seria suficiente para os bancos europeus.
Alguma coisa precisa de ser feita porque “estamos a ver crises após crises e não consigo, por muita imaginação que empregue, encontrar perspetivas de crescimento económico em lado algum” na Europa, afirmou o economista do banco alemão. Landau também apontou a situação da banca italiana como o principal risco (comentando que os 360 mil milhões em crédito malparado corresponderão ao mínimo), curiosamente depois de o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, apontar o dedo ao gigante alemão — o patrão de David Folkerts-Landau – como o verdadeiro problema da banca europeia.
A vala comum com 360 mil milhões de esqueletos
“Se este problema do crédito malparado [em Itália] vale 1, a questão dos derivados financeiros em outros bancos, grandes bancos, vale 100. É este o rácio de que estamos a falar: 1 para 100“, afirmou Matteo Renzi nas últimas semanas. O primeiro-ministro de Itália não mencionou diretamente o nome do Deutsche Bank — como o poderia fazer? — mas, em dezembro, Renzi tinha dito que, se lhe fosse dada a escolha, não trocaria os bancos italianos pelos bancos alemães.
Ainda assim, o problema mais imediato e urgente parece ser a banca italiana. É por ela que os sinos dobram e Matteo Renzi será, provavelmente, o cidadão europeu que mais estremece a cada badalada que nos aproxima do mês de outubro. Se não houver solução para a banca, dificilmente haverá solução para o crescimento. E sem solução para o crescimento, Renzi estará a viver os seus últimos dias como chefe do governo italiano porque, para outubro, está agendado um referendo (sobre uma alteração crucial do poder legislativo e executivo em Itália) que, em caso de chumbo, ditará a saída de Renzi e uma crise política em Itália.
Nos últimos meses, contabilizou-se no impressionante valor de 360 mil milhões de euros o montante total em crédito que, provavelmente, nunca será pago aos bancos italianos na totalidade. É um quarto de toda a riqueza produzida em Itália durante um ano e cerca de 17% de todos os ativos da banca italiana. Ao longo dos anos, como aconteceu em Portugal, os bancos italianos registaram as chamadas imparidades, ou seja, colocaram resultados de lado para cobrir esses empréstimos falhados. Este valor total já terá sido provisionado em mais de 60%, mas isso continua a ser demasiado lisonjeiro — poucos acreditam que, se os bancos vendessem estes créditos no mercado, conseguissem obter mais de 20% do seu valor.
Ou seja, o buraco ainda existe, é preciso registar mais perdas e o fundo criado em abril — o Atlante –, patrocinado pelos outros bancos, não tem condições para ser a bala de prata. Matteo Renzi está a tentar contornar as regras europeias para fazer uma recapitalização pública de 40 mil milhões de euros, para cobrir o fosso. O problema é que se essa recapitalização levar à aplicação das novas regras da intervenção em bancos, vastos milhares de pessoas que investiram as poupanças em dívida dos bancos — uma prática generalizada em Itália — irão perder dinheiro.
Essas perdas para os cidadãos teriam um custo político que, muito provavelmente, levaria Matteo Renzi a perder o referendo que lançou e que vai consultar os cidadãos sobre os poderes do Senado e do Parlamento. Renzi já garantiu que, se não conseguir fazer essa reforma, irá demitir-se. Itália cairia numa crise política numa altura em que o partido eurocético “Movimento 5 Estrelas”, que acaba de conquistar a câmara de Roma, lidera as sondagens.
A solução proposta pelo Deutsche Bank para a banca italiana
A receita do Deutsche Bank para salvar a banca europeia tem seis pontos e os três primeiros são exclusivamente direcionados para a banca italiana. O primeiro passo seria reconhecer as imparidades adicionais que é preciso registar na banca e (1) impor uma injeção de capital de 28 mil milhões de euros, que corresponde ao capital que, nos cálculos do Deutsche Bank, os bancos italianos teriam de cobrir caso aplicassem os preços de mercado nas suas carteiras de crédito em risco. Este valor seria o mínimo absoluto que poderia contribuir para sossegar os investidores, já que existem estimativas que apontam para montantes superiores a 40 mil milhões de euros.
Essa injeção de capital nos bancos seria, defende o Deutsche Bank, feita no âmbito de uma (2) suspensão temporária das novas regras de resolução. Ou seja, invocando riscos para a estabilidade financeira e económica, a recapitalização dos bancos italianos não deveria obrigar à imposição prévia de perdas aos credores — credores onde se incluem, recorde-se, milhões de cidadãos comuns. As novas regras da resolução entraram em vigor a 1 de janeiro de 2016 e geraram muita controvérsia, possivelmente travando o investimento em títulos dos bancos.
Fintar as regras europeias, que obrigam a perdas nos privados antes da entrada de dinheiros públicos, já seria uma ótima notícia para Matteo Renzi. Poder injetar os montantes necessários nos bancos sem lançar o pânico no setor financeiro já seria um balão de oxigénio para o primeiro-ministro. Mas os economistas do Deutsche Bank vão mais longe e dizem que não deve ser o Estado italiano a endividar-se para recapitalizar os bancos: deveria haver (3) uma recapitalização a nível federal dos bancos italianos.
“Num mundo completamente ideal, a recapitalização deveria vir diretamente do Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM), para quebrar o elo entre bancos e Estado soberanos”, diz o banco alemão. Contudo, o Deutsche Bank reconhece que “as limitações legais e políticas são tão óbvias que a recapitalização teria de ser gerida à escala nacional”. O principal constrangimento é que “a recapitalização direta pelo ESM não pode ser usada como um instrumento preventivo”. Não obstante, o Deutsche Bank sublinha que a ideia de toda esta receita seria, precisamente, uma intervenção preventiva para salvaguardar a estabilidade financeira.
E depois de Roma?
Depois da supervisão única (pelo BCE) e da criação do Mecanismo Único de Resolução (que funda a sua atuação nas novas regras), a wish list do Deutsche Bank defende que é preciso apostar no chamado terceiro pilar da União Bancária europeia: (4) acelerar a criação de um esquema comum de garantia de depósitos.
Os países europeus são obrigados a manter um fundo de garantia de depósitos, mas, apesar de essa obrigação ser europeia, os fundos são sempre nacionais. Sem que isso mude — e parece utópico admitir que possa mudar nos próximos anos — o elo perigoso entre bancos e Estados soberanos não será quebrado. Ou seja, o risco de um dado banco será sempre analisado à luz do Estado soberano onde tem a sua sede.
O Deutsche Bank reconhece, contudo, que “acelerar a União Bancária, por via da garantia comum de depósitos, irá provavelmente esbarrar na oposição da Alemanha“. O banco alemão admite que pudesse haver uma moeda de troca que seria a introdução de “ponderações de risco não-zero” nas exposições dos bancos à dívida soberana dos vários países, conforme o risco de cada país. Este é o “plano dos sábios alemães” sobre o qual o Observador escreveu em fevereiro e que, na opinião de alguns especialistas, ameaçaria relançar a crise da dívida europeia. Mas, conclui o Deutsche Bank, essa moeda de troca não seria viável porque os chamados países da periferia lutariam contra esse plano.
Um pouco mais otimistas estão os economistas do Deutsche Bank sobre os pontos 5 e 6 da sua receita para evitar o colapso na banca europeia. A nível europeu, é necessário (5) travar a aplicação de regras de capitalização mais exigentes e (6) interromper a sequência de cortes nas taxas de juro para níveis cada vez mais negativos.
Bancos mais capitalizados são sinónimo de bancos mais seguros mas, numa altura em que os bancos têm as dificuldades internas e externas em gerar capital, o Deutsche Bank defende que obrigar os bancos a reforçarem os capitais irá contribuir para os tornar demasiado conservadores na altura de correr alguns riscos. E para que a economia europeia saia do marasmo, muitos concordarão que será necessário tomar alguns riscos. O Deutsche Bank acredita, assim, que “iremos ver uma suspensão das propostas de Basileia IV” — isto é, as propostas do Comité de Basileia que irão exigir requisitos de capital que o Deutsche Bank calcula em mais um ponto percentual em todos os bancos.
Por outro lado, sendo o BCE uma instituição independente e motivada pelo seu mandato de elevar a inflação até aos 2%, o Deutsche Bank está confiante de que o calvário dos juros negativos estará perto do fim. Ou, pelo menos, que não se irá agravar. “O mercado está a antecipar mais um corte de 15 pontos base na taxa dos depósitos”, ou seja, que esta passará de 0,4% negativos para 0,55% negativos. Os indicadores de mercado parecem antecipar que os bancos, que já pagam uma taxa para depositar recursos no banco central, verão essa conta aumentar nos próximos meses. Em jogo, aqui, está não só essa “conta”, mas também o efeito contagiante que a taxa de depósitos cada vez mais negativa tem sobre as rendibilidades de outros ativos, como a dívida soberana. “Mas, tendo em conta as questões sobre a estabilidade dos bancos europeus, acreditamos que novos cortes da taxa de depósitos são improváveis“, diz o Deutsche Bank no seu relatório.