Há uma nova “cortina de ferro” a descer na Europa, escreveu na sexta-feira o The Washington Post. Em 1989, a divisória, que também era física, entre os países de leste e a Europa ocidental começou a cair para, com a invasão da Rússia à Ucrânia, voltar a ser levantada. Agora, em 2022, o manto que pode tapar a antiga União Soviética também é digital. E, como dizem especialistas ao Observador, pode ser mais difícil de colocá-lo porque “não basta só cortar cabos”. Além disso, o governo russo tem negado que quer isolar-se digitalmente, apenas diz que as restrições são para proteger as suas plataformas online.
Fernando Ramos, engenheiro informático, professor no Instituto Superior Técnico (IST) de sistema e redes de computadores e investigador no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores – Investigação e Desenvolvimento (INESC-ID), explica que, quando começou a ser concebida na década de 1970, “internet foi pensada exatamente” para até “responder a ataques nucleares”. Nessa época, em plena Guerra Fria, havia o medo por parte do Ocidente, e que agora voltou, da Rússia poder utilizar o seu arsenal.
Ao Observador, Miguel Pupo Correia, professor de engenharia informática IST, investigador no INESC-ID e vogal não executivo da associação DNS.pt, salienta também que, pela forma como a internet está pensada, qualquer cenário em que se tira um país da rede é algo bastante “complexo”. Isto porque, “para isolar a Rússia não basta cortar cabos”. Por detrás disto está a forma como internet está construída, explica Fernando Ramos. É “descentralizada”, ou seja, não depende só de um “único ponto de acesso”, por isso, se algum falhar, há inúmeras formas de continuar a funcionar.
Por outras palavras, uma Rússia fora da internet não é um cenário fácil em qualquer das situações: ou no caso do Kremlin querer isolar-se do mundo, ao cortar o acesso a plataformas globais como o YouTube ou o Facebook e criar uma espécie de “internet como na China” (que tem um dos maiores sistemas de censura digitais nacionais, como contou Parmy Olson, especialista em tecnologia, à Bloomberg); ou, noutro caso, se países como a Ucrânia tentarem fechar o acesso do país invasor à rede — como o governo ucraniano tentou, sem sucesso, no início da guerra com um pedido ao ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, em português “corporação da internet para atribuição de nomes e números”), a organização sem fins lucrativos responsável pela gestão do “sistema de nomes de domínio” (DNS, na sigla em inglês), noticiou o ZDNet.
Basta olhar para este último cenário, de países terceiros quererem cortar a Rússia da rede, para se perceber a complexidade. Pupo Correia explica que não basta “desligar o DNS”. Isso “dificultaria” muito as comunicações mas “ainda seria possível” que os russos continuassem ligados à rede. Nem que fosse através “do IP”, exemplifica.
As siglas IP significam “Internet Protocol address” e são uma das principais chaves para se compreender esta questão. De forma resumida, é o verdadeiro endereço que cada website tem. Como clarifica Fernando Ramos, ao explicar que o “DNS não é fundamental”, apesar de vermos um nome, letras e palavras a identificar os sites — como, por exemplo, Observador.pt –, na verdade, utilizamos um endereço numérico para aceder a cada portal — o IP. O que o ICANN faz, a tal entidade a quem a Ucrânia se dirigiu no início de março (e a quem responde a associação portuguesa DNS.p), é funcionar como umas “páginas amarelas” que, automaticamente, associa o IP a um endereço fácil de recordar — é mais fácil decorar o endereço google.com do que 108.177.17.0/24, explica o especialista.
Por isso, mesmo que o ICANN tivesse aceitado o pedido do governo ucraniano, bastava “um navegador de internet como o Google Chrome”, para continuar a aceder aos sites que conhecemos, refere. Contudo, em vez de se escrever o nome, tinha de se colocar o número correspondente. Esta questão, diz o engenheiro informático, traz também problemas mais técnicos — os IP são mutáveis e há vários para cada website. Mesmo assim, seria possível, “teoricamente”, que, antes de ser “banida da internet”, a Rússia copiasse as bases de dados destas “páginas amarelas” para minimizar o possível estrago.
Quanto ao outro cenário, o da Rússia querer cortar-se digitalmente do resto do mundo, parece a estes dois especialistas uma situação mais plausível. Mesmo assim, terá sempre demasiadas exceções para resultar. Porquê? Nunca é demais relembrar, a internet é “descentralizada”.
No Paquistão, em 2012, recorda Fernando Ramos, “conseguiram bloquear o acesso ao YouTube” ao “bloquearam o acesso através dos fornecedores de serviço”. E não é preciso ir tão longe para ver esta técnica a ser utilizada: em Portugal, e já no âmbito desta invasão da Rússia, a Comissão Europeia determinou a proibição de transmissão dos canais russos Sputnik e RT, assim como o acesso online a estes conteúdos. Assim, as plataformas como Meo, Vodafone e Nos tiveram de tirar esses canais da sua oferta.
[Ouça aqui o presidente da Associação de Direitos Digitais D3]
É por isso que Fernando Ramos conta que, nos anos de 1970, quando se começou a criar a tecnologia que viria a ser a internet, o objetivo foi fazer algo que, mesmo numa situação calamitosa — como um ataque nuclear –, fosse “resiliente”. Ou seja, mesmo que a Rússia consiga isolar-se da internet, basta um russo mais insistente e “um router” para poder ligar-se à rede global. Pode ser assim tão simples.
Já existe uma internet russa, a “RuNet”, mas ainda não é soberana
Todos estes cenários são, para já, teóricos. Como mostrou Elon Musk ao enviar no início de março recetores da Starlink — uma rede de acesso por satélite à internet — para a Ucrânia, mesmo que se cortem todos os cabos o acesso à internet é possível pelo ar com a antena parabólica certa.
Agora, tudo isto pouco pode importar porque já existe uma internet russa à qual não acedemos tão facilmente. Fernando Ramos refere esta rede, conhecida por “RuNet” (“Ru” de Rússia e “Net” de internet), para recordar que a tecnologia de uma “mini-internet” existe. “Também dou aulas de redes de computadores e, com alguns colegas e máquinas, construímos uma mini-internet de laboratório”, exemplifica. Mas a RuNet é mais do que isso. É quase o mesmo mas tem uma escala nacional. E, como referia em 2021 o think tank Atlantic Council, Vladimir Putin, presidente da Rússia, quer torná-la numa internet à parte.
[O vice-primeiro-ministro da Ucrânia partilhou no Twitter uma imagem das antenas da Starlink que foram enviadas para o país]
Starlink — here. Thanks, @elonmusk pic.twitter.com/dZbaYqWYCf
— Mykhailo Fedorov (@FedorovMykhailo) February 28, 2022
O termo “RuNet” começou a ser utilizado na década de 1990 e, na Rússia, designa muitas vezes a internet que está acessível em russo e com o alfabeto cirílico. Nesta rede há clones de plataformas como o Facebook e o YouTube, mas em russo, que estão ativos.
No caso das redes norte-americanas, a Rússia determinou o bloqueio de Twitter e Facebook, ainda que possam ser acessíveis através de outras vias. Apesar da popularidades destas plataformas, a VKontakte é, na Rússia, a rede social líder e o motor de pesquisa Yandex é quase tão utilizado como o Google, segundo dados da Amazon.
Fernando Ramos explica que isolar os sites russos seria como pegar numa parte da internet e, a uma escala nacional, “tirá-la da rede global”, criando uma espécie de “intranet (redes fechadas de redes externas) russa”. Isto porque, muitas destas plataformas clones da RuNet já têm influência estatal russa. Tem é de se avançar com um processo “complexo” que é o de criar uma “mini internet”. Mas mesmo isso não impede que quem se queira ligar à rede global não procure formas de o fazer, nem que seja com uma antena parabólica.
Como contou em fevereiro de 2021 o The New York Times, a Rússia não tem escondido as ambições de criar uma “RuNet soberana” e pegar nestes sites russos para fazer uma “internet como na China”, em que tudo é controlado. Aliás, é olhando o caso chinês que se percebe como poderia funcionar esta rede nacional.
Miguel Pupo Correia dá o seu próprio exemplo, recordando quando esteve na China e acedeu à internet: “Têm uma espécie de mega-firewall“, que permite que uma pessoa se “ligue ao Facebook” mas, mal se acede, a ligação “esconde” a página. “Eles inspecionam a ligação e depois cortam”, explica o engenheiro informático.
A RuNet soberana poderia ser algo semelhante, em que constantemente haveria uma inspeção ao que se pode aceder. Mesmo assim, com uma ferramenta como uma VPN (Virtual Private Network, que permite “mascarar” e cifrar o acesso à internet) é possível dar a volta. “A Rússia pode é tomar uma medida extrema e acabar a bloquear tudo o que seja cifrado”, diz o académico, mas assume que isso seria “uma solução extrema”.
Por isso é que o investigador diz que, “em teoria”, é possível a Rússia “cortar-se do mundo”, mas para isso teria, “provavelmente”, de controlar os fornecedores de serviço. Com uma dificuldade acrescida: fechar a sua RuNet. “Redes privadas virtuais, ou VPN, que permitem que as pessoas evitem as restrições da internet disfarçando de qual país estão acessando, podem ajudar a espalhar informações da mesma forma que samizdat, cópias ilegais de livros ou artigos censurados, circulavam clandestinamente nos tempos soviéticos”, lembra o The New York Times, que conclui: “Mesmo na União Soviética as informações fluíam de um lado para o outro das fronteiras”.
Mas a Rússia está mesmo a pensar sair da internet?
A possibilidade existe, como têm avançado vários órgãos de comunicação social, mas tem sido negada pela Rússia, como contou na terça-feira Fortune. No mesmo dia, a Reuters avançou que a Yandex — chamando-lhe “a empresa querida do ecossistema tecnológico russo” — foi suspensa de negociação na Bolsa de Nova Iorque, mesmo sem que sobre si penda qualquer sanção, mas só por se admitir a dificuldade em manter a sua neutralidade face ao governo russo. Não obstante, o Kremlin tem insistido que tudo o que quer fazer é proteger os seus sites.
No início desta semana, o Euroactiv avançava que a Rússia está a preparar medidas para aumentar o controlo sobre a internet sob o pretexto de tentar “ser mais resiliente contra ciberataques”. Em causa está um documento, que entrará em vigor a 11 de março, assinado por Andrei Chernenko, ministro-adjunto russo do desenvolvimento digital, que exige às entidades estatais que mudem o seu DNS e recursos que tenham em “servidores estrangeiros” para a Rússia.
De acordo com Chernenko, mudar tudo para servidores russos ajudará a “organizar o trabalho de forma mais eficaz para proteger os recursos do tráfego malicioso, manter os serviços em execução e controlar os nomes de domínio”. Porém, também pode significar que a Rússia está a avançar no tal cenário hipotético referido por Fernando Ramos: ter as suas próprias “páginas amarelas” para que os russos não tenham de pôr números de IP ao desligarem-se dos DNS globais. Ou seja, a base para a Rússia poder gerir o seu DNS, não passando pelo ICANN.
Se isto acontecer, é “complicado” prever os potenciais efeitos. É que, reafirma, a internet é “descentralizada”. O “router” certo “no local certo” pode criar um acesso à rede global, explica o académico. E, aí, as medidas russas — apesar de poderem oferecer proteção aos sites estatais russos tornando-os de mais difícil acesso — passam a ser ineficazes, ou, pelo menos, não são tão eficazes como o governo de Putin quer. “É muito difícil isolar completamente um país”, diz Fernando Ramos.
Alena Epifanova, especialista russa em política cibernética do Conselho Alemão de Relações Internacionais, disse à Fortune que o tal documento de Chernenko pode mesmo ser o que diz que é: uma medida para proteger os sites russos de ciberataques, dos quais também têm sido alvo. Epifanova lembra também que a Rússia tem tentado desde 2019 criar este sistema de DNS externo mas sem sucesso. E que pode não ser do interesse do país: “Toda a economia russa é baseada na internet global – não é o Irão ou a China. Se desconectada, podemos esperar um grande colapso na economia russa”, salienta.