Um ministro a desentender-se com outro publicamente, outro a ser repreendido — também na praça pública — pelo Presidente da República e uma perda eleitoral de peso que deixou o partido nervoso. Quatro dias, três fortes dores de cabeça para António Costa e a semana ainda não acabou. Aliás, fecha com rondas negociais com os parceiros para o Orçamento do Estado para 2022, neste mesmo cenário de várias tensões — que estes mesmos partidos até já usam para atingir o Governo.

No domingo ao fim da tarde, quando entrava para a sede do PS para acompanhar a noite eleitoral, António Costa foi questionado pela RTP sobre a possibilidade de ter uma vitória da dimensão que esperava: isso vai ser uma dor de cabeça para o próximo Orçamento? O líder do PS ria-se, divertido: “Bom, transformar uma vitória numa dor de cabeça creio que é pedir de mais. Vamos aguardar pela contagem dos votos.” Só que a contagem não saiu tão grande como esperava, pelo menos na capital do país que o seu partido acabou por perder para o PSD. Uma dor de cabeça tamanha que será que o líder do PS terá pegado ao primeiro-ministro socialista?

Lisboa ditou vitória que soube a sofrida. E trouxe pressão para remodelar

O acordar socialista na segunda-feira de manhã foi pesado, sobretudo em Lisboa. Fernando Medina era o preferido e saía na frente na corrida direta contra Carlos Moedas do PSD. Perdeu cerca de 25 mil votos face às eleições de 2017 e, mesmo sem a direita disparar em relação ao que atingiu, em separado, há quatro anos, foi o suficiente para retirar das mãos do PS a gestão da capital do país, a que António Costa tinha recuperado para o partido em 2007. O próprio fez questão de recordá-lo quando ainda não era certa a derrota em Lisboa.

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A perda de Lisboa significaria, admitia logo o socialista, “uma tristeza particular”. E foi essa que se instalou, misturada, no dia seguinte, com alguns receios. Um socialista dizia ao Observador, no rescaldo das autárquicas, que perder Lisboa era “a diferença entre a temperatura real e a temperatura sentida. É a diferença entre uma simples vitória e uma vitória sofrida.” Apesar de António Costa reclamar a vitória autárquica, com 149 câmaras conquistadas (menos 12 do que em 2017) e a “terceira vitória consecutiva” em autárquicas, a noite acabou no Pátio da Galé num ambiente de consternação ao lado do derrotado da noite, Fernando Medina.

PS teme “percepção” criada por perda de Lisboa e pede a Costa remodelação do Governo

A terra socialista abalou, com alguns dirigentes a confidenciarem ao Observador, no dia seguinte, receios com a “perceção criada” por uma derrota para o PSD em Lisboa e a pedirem aquilo que no futebol se chama de chicotada psicológica já: é preciso mexer no Governo, torná-lo mais pequeno e de combate político. Nada que não se falasse já há largos meses, mas António Costa tem fugido dessa conversa e, na segunda-feira, não fez diferente. Não há remodelação que se anuncie e menos ainda quando decorre a negociação (que envolve todos os ministérios) do documento mais importante da governação, o Orçamento do Estado — que precisa de apoio das sempre periclitantes forças à esquerda do PS.

Costa disse, assim, o que podia nesta altura: “Não está nenhuma remodelação prevista. A única remodelação que as eleições autárquicas determinaram é a remodelação dos autarcas”. Depois, quando os jornalistas insistiram e lhe perguntaram sobre um refrescamento, ironizou: “Naturalmente, o outono vai começar a arrefecer o clima”. A ainda acrescentou: “O inverno arrefecerá um pouco mais o clima. E quando o tempo arrefece todos nos refrescamos. Mas, para já, concentremo-nos no que é essencial: no que me diz respeito, é no dia 11 de outubro ter de apresentar na Assembleia da República uma proposta de Orçamento do Estado para 2022”.

E há ainda a pressão que tudo isto pode acarretar para o Orçamento, já que o PCP sai também abalado das autárquicas, tendo perdido Loures — que teve efeito surpresa entre os comunistas semelhante ao de Lisboa para os socialistas — e mais seis câmaras (Alvito, Moita, Mora, Montemor-o-Novo, Vila Viçosa e Alpiarça). António Costa e os restantes socialistas mais não fazem do que negar que exista contaminação, mas a verdade é que nesta altura poucas certezas têm. As reuniões com a esquerda, nomeadamente com o PCP, decorrem esta semana, e só aí Costa terá mais dados sobre o tamanho da dor autárquica comunista — o PS voltou a ser o carrasco do PCP, ficando com seis câmaras comunistas, a somar às nove já roubadas há quatro anos.

O comunistas reuniram-se em Comité Central e, no final, Jerónimo de Sousa veio insistir num caderno de encargos orçamental a dar sinal de continuar em jogo. O PCP mantém a separação entre eleições locais e negociações nacionais, o que é música para os ouvidos de António Costa que está agora concentrado em conseguir aprovar um Orçamento do Estado em que dificilmente voltará a contar com os dois parceiros da “geringonça”, tendo em conta que o BE já saltou fora no último.

Pedro Nuno deu arma ao PCP

Há, no entanto, um argumento de que Jerónimo de Sousa já se apoderou para esse debate orçamental. Na mesma reunião do Comité Central onde disse que uma eventual crise política “deixa de estar em cima da mesa quando os problemas estiverem resolvidos”, o líder do PCP  agarrou num diferendo público entre ministros para jogar a seu favor: “Ouviram com certeza ontem um ministro reconhecer razão ao PCP em relação a investimentos e ferrovia… quantas vezes ficámos a falar sozinhos”.

A referência era a ao ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos, a outra dor de cabeça da semana para António Costa. O socialista de que se fala para lhe suceder no PS — e que já pouco disfarça essa intenção e trabalho intensivo no terreno socialista — veio esta semana dar conta do seu desalento com a falta de celeridade nas aprovações do seu colega de Governo João Leão.

Pedro Nuno Santos compreende desalento que leva presidente da CP a sair e lamenta demora (das Finanças) nas decisões

Pedro Nuno Santos aproveitou a saída do presidente da CP, Nuno Freitas, para vir afirmar publicamente e num tom agastado que “é muito difícil gerir uma empresa pública com as regras que nós temos. E é muito difícil pedirmos a um grande gestor, homem sério, de grande capacidade de trabalho e de realização, que fique muito tempo numa empresa que não consegue ter um Plano de Atividades e Orçamento aprovado, que tem uma dívida histórica acumulada gigantesca e que não pode ser saneada, portanto retirando capacidade e autonomia de gestão à empresa, que demora meses para ter uma autorização para comprar umas rodas”. As orelhas de João Leão arderam.

O ministro, sabe o Observador, falou com Pedro Nuno Santos nesse mesmo dia e a situação entre os dois terá ficado resolvida, mas os reparos públicos estavam feitos. E o argumento oferecido de bandeja aos parceiros de negociação que reclamam por mais capacidade de investimento ou, como usando a imagem de Jerónimo de Sousa, pressionar quem “tem a chave do cofre”, para que o abra de maneira a que possam “concretizar-se medidas”.

Na conferência de imprensa que se seguiu ao Conselho de Ministros desta quinta-feira, o secretário de Estado da Presidência, André Moz Caldas, foi confrontado com esta tensão ministerial. Ficara resolvida naquela reunião. A resposta foi evasiva, ficou entre o “essa não foi matéria tratada no Conselho de Ministros” e o “a pergunta [sobre a resolução do problema] tem de ser feita aos ministros”. Já o desgaste evidente do Governo é questão para o primeiro-ministro.

Presidente ataca ministro. O “equívoco” só durou mesmo 30 horas?

O último episódio desta semana negra para António Costa aconteceu ainda a meio da semana e terminou com uma audiência em Belém, perante o Presidente da República, horas depois de Marcelo desautorizar publicamente o ministro da Defesa e tentar segurar um chefe militar, ao arrepio da vontade de Gomes Cravinho. Os momentos sucederam-se em catadupa.

Na terça-feira, o Chefe do Estado-Maior da Armada, o almirante Mendes Calado, é chamado ao gabinete do ministro da Defesa para uma reunião marcada para as 18h30. Gomes Cravinho queria comunicar-lhe pessoalmente que decidira exonerá-lo das suas funções — nas quais tinha sido reconduzido há apenas seis meses e para um período máximo de dois anos. Mas não demorou muito até o chefe da Armada ser confrontado com outro dado: quando chegou ao seu gabinete, nessa mesma noite, tinha à sua espera uma carta assinada pelo ministro da Defesa, onde lhe era dado a conhecer o nome que Gomes Cravinho tinha em mente para a sua substituição no topo da hierarquia da Marinha: a escolha recaía sobre Gouveia e Melo, o comandante da task force que, nesse mesmo dia, dava por terminada a sua “missão” dos últimos sete meses.

As notícias sobre a exoneração do atual CEMA, primeiro, e, logo a seguir, a intenção de nomear o vice-almirante Gouveia e Melo para aquelas funções foram divulgadas ainda na noite de terça-feira. Mas a decisão do ministro da Defesa de afastar Mendes Calado não chegou como uma surpresa absoluta.

Há meses que a relação entre Mendes Calado e João Gomes Cravinho se vinha esfriando. E o processo de escolha do novo comandante naval significou o primeiro episódio publicamente mais claro dessa tensão. O CEMA propôs o nome de Oliveira e Silva para o lugar. O ministro recebeu a proposta e, durante longas semanas, no processo não registou qualquer desenvolvimento. A razão? Cravinho estaria à espera de que, em Belém, Marcelo Rebelo de Sousa promulgasse as alterações à Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas — na prática, o que isso significa é que, com a nova versão da lei, entretanto promulgada, o processo de escolha do comandante naval, por exemplo, passa a contar com uma intervenção direta do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, que tem de ser ouvido sobre o nome proposto pelo CEMA. É uma espécie de bypass em relação ao processo anterior, em que a proposta era feita diretamente do chefe do ramo ao ministro. E dá poderes ao CEMGFA, que — ainda que não de forma vinculativa — tem oportunidade de mostrar desagrado face à proposta apresentada.

Esse episódio teve duas consequências (uma mais direta que a outra). Por um lado, Oliveira e Silva, chefe de gabinete de Mendes Calado e o homem escolhido para o comando naval, pediu a passagem à reserva. Fontes militares dizem ao Observador que foi uma reação direta aos obstáculos criados pela Defesa. Por outro lado, a demora na resposta do ministro levou o CEMA a pedir uma audiência ao Presidente da República. Aí, terá ficado claro para Marcelo o clima de paz podre entre o ministro da Defesa e o chefe da Marinha. Há, de resto, entre as chefias militares quem acuse Marcelo de alguma passividade no processo, por não ter agido logo nesse momento e travado, de alguma forma, aquilo que veio a acontecer esta quarta-feira.

O Presidente da República, ainda assim, terá sido surpreendido pelo timing escolhido por Gomes Cravinho para exonerar Mendes Calado e por ter proposto Gouveia e Melo para aquele lugar. Ao ponto de, perante as câmaras de televisão, ter dado uma palestra pública sobre os “três equívocos” que identificava em todo este processo. O primeiro desses equívocos deixava transparecer a surpresa pelo momento em que o ministro decidiu dar o passo em frente.

“O senhor almirante chefe do Estado-Maior da Armada viu o seu mandato renovado a partir do dia 1 de março deste ano. Normalmente, essa renovação dura dois anos, mas [Mendes Calado] mostrou uma disponibilidade, com elegância pessoal e institucional, para prescindir de parte do tempo para permitir que pudessem aceder à sua sucessão camaradas seus antes de deixarem a atividade, de deixarem o ativo. E, portanto, nessa altura foi acertado um determinado momento para isso ocorrer, que não é este momento”, deixou claro Marcelo.

Segundo equívoco, novo tiro na direção de Cravinho. Corria a versão, no universo castrense, de que o ministro tinha considerado uma deslealdade o facto de Mendes Calado ter recorrido a Marcelo para manifestar o desagrado pela demora na nomeação do comandante naval e pelo facto de já ter manifestado oposição à nova versão da lei que estrutura as Forças Armadas. “A partir do momento em que foi votada a lei, [os militares] acataram e respeitaram a lei em vigor [e] isto é um exemplo de lealdade institucional, e não de deslealdade institucional”.

Terceiro equívoco: só faz sentido falar de uma substituição do chefe de um ramo “depois de terminado o exercício de funções”. E isso ainda não aconteceu.

Marcelo fazia questão de deixar tudo isto bem claro pouco depois de uma reunião de alto nível na Marinha. É que, de imediato, depois de saber de ler a carta em Gomes Cravinho assinalou o nome de Gouveia e Melo, Mendes Calado convocou uma reunião do Conselho do Almirantado. Estava em causa a exoneração de um CEMA — a sua própria exoneração, de resto — e a palavra dos vice-almirantes em funções na Marinha é um dos pressupostos a cumprir no processo de substituição.

No fim desse dia, a (pelo menos aparente) resolução. António Costa, que tinha assistido da bancada à palestra de Marcelo, pede uma audiência ao Presidente da República e vai a Belém com o seu ministro da Defesa ao lado. A notícia que sai no Expresso diz que o primeiro-ministro pediu a audiência precisamente para esclarecer “equívocos”. O comunicado que a Presidência libertou, depois desse encontro, foi lacónico e pouco acrescentou: “Ficaram esclarecidos os equívocos suscitados a propósito da Chefia do Estado-Maior da Armada.” O que isso significa, ainda não é totalmente claro. Mas, para já, Mendes Calado mantém-se em funções (à tarde, Marcelo já tinha dito, aliás, que tinha encontro marcado com o CEMA na próxima semana).

Rui Rio, que se sente galvanizado pelos resultados eleitorais, não deixou de aproveitar politicamente este caso e esta quinta-feira — no final da reunião da bancada do PSD — o líder social-democrata considerou “inadmissível” e injusto para Goveia e Melo. O presidente do PSD diria mesmo que “quem colocou isto na praça pública, uma vez percebido quem foi, esse tem de se demitir”, defendeu, dizendo não ter essa informação, mas admitindo que o Presidente da República já a tenha.”

E essa demissão, avisa Rio, deve ocorrer mesmo que tenha sido o próprio Gomes Cravinho a passar a informação: “Se foi o ministro da Defesa que colocou… Se não foi o ministro da Defesa que colocou, estou a pedir a demissão de quem colocou. Quem o fez é inadmissível”. Foi mais um trunfo dado a Rio contra Costa que o primeiro-ministro dispensava esta semana.