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Angela Ricciardi

Angela Ricciardi

A serenidade de Angel Olsen é a nossa sorte: "Pus tudo o que tinha neste disco. Não tinha nada a perder"

Entrevista de Angel Olsen ao Observador, antes dos concertos em Lisboa — cidade a que deixa os maiores elogios e que quer manter como "segredo" — e com um novo álbum na bagagem.

Há pouco mais de um ano, no início de julho de 2021, Angel Olsen confrontou-se com uma dúvida: estaria em condições de ir para estúdio gravar um novo álbum, como estava previsto?

Os meses anteriores tinham sido uma montanha-russa de emoções para a cantora e compositora de 35 anos, nascida em St. Louis, no estado do Missouri, e atualmente a viver em Asheville, um pequeno paraíso natural da Carolina do Norte.

Primeiro, tinha vindo uma paixão e uma relação amorosa que espoletou tudo o que se seguiu: o alívio e a revelação perante os outros, nomeadamente família e amigos, de que é queer, termo que abrange todos aqueles que não são heterossexuais (“Interessam-me todos os tipos de pessoas”, diz). Depois, vieram o luto e as perdas, com a morte dos pais, que aconteceu com um intervalo de pouquíssimos meses: primeiro o pai, depois a mãe.

Fazia sentido a Olsen, cujo nome de batismo é na realidade Angelina Maria Carroll, ir para um estúdio gravar um álbum? “Pensei: quero fazer música, não quero não fazer isto porque estou triste. Preciso de me pôr a trabalhar. Talvez não seja a atitude mais saudável, mas pus tudo o que tinha neste disco. Não tinha nada a perder, também”, explicava a artista há poucas semanas, em entrevista ao Observador.

Com uma maioria de canções novas compostas durante os piores períodos da pandemia da Covid-19, portanto prévias às perdas com que foi confrontada, a autora de discos como Burn Your Fire For No Witness (2014) e My Woman (2016) entrou em estúdio com o slogan “menos é mais” na cabeça. O que daí resultou foi Big Time, uma coleção de dez canções novas em ambiente country (oiçam-se, por exemplo, as notas de guitarra no tema que dá título ao disco) e que avançam sem pressas, serenas, sem invenções e grandes truques de produção, instintivas e com classe de baladas indie superlativas.

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Antes dos dois concertos que tem agendados em Lisboa — 26 e 27 de setembro, segunda-feira e terça-feira, no Capitólio —, Angel Olsen falou ao Observador das novas canções e da vontade de “vagabundear um pouco” por Portugal e por Lisboa, país e cidade a que deixou os maiores elogios.

À conversa, Olsen trouxe ainda a turistificação da capital portuguesa, que a ajudou a tomar a decisão de não revelar música que fez em residência no nosso país (e que girava em torno do fado), os motivos que a levaram a querer confessar ao mundo que não é heterossexual, o pedido de que “deixem os outros amar quem quiserem” e a forma mais desacelerada como hoje vive e que se reflete no ritmo sereno das novas canções.

[ouça o álbum “Big Time” na íntegra através do Youtube:]

Hoje é um dia de folga na digressão “Wild Hearts”. De onde está a falar neste momento?
Estou em Boise, Idaho. É mais ou menos no noroeste [dos EUA], mas é uma zona de deserto. E nós, coletivamente, enquanto banda, vamos andar de patins hoje, numa pista de patinagem aqui perto [ri-se].

Como se tem sentido, novamente em digressão e a tocar estas canções novas ao vivo, misturando-as com outras mais antigas?
Tenho-me sentido muito bem. Tem sido mesmo divertido partilhar o palco com a Julian Baker, com a Sharon Van Etten e com o Quinn Christopherson [como convidado], ver como outras bandas fazem as coisas e trocar experiências e histórias. Tenho-me sentido mais como estando num acampamento de férias de verão do que numa digressão. Tem sido uma forma muito carinhosa e divertida de expressar este disco que gravei, partilhando-o com outros músicos que são solidários e gostam de apoiar os outros — e que vivem de uma forma próxima da minha. A cada noite, sinto-me como se saísse de palco e recebesse um grande abraço coletivo de pessoas que também estão a fazer música e a viver como eu, enquanto artistas. É uma experiência diferente.

E artistas que, além disso, têm bastante talento.
Sim, é verdade. A música de cada uma de nós — o tipo de discos que fazemos — é singular. Fazemos coisas diferentes umas das outras. Por exemplo, o disco da Sharon [Van Etten] é muito dançável, ainda que também tenha algumas sombras. É bom ver como ela se está a mexer mais em palco e como está mais livre para usar o corpo e dançar. Nunca a vi tão corpórea. É mesmo inspirador ver as pessoas a sentirem-se mais confortáveis e a atravessar algo que, para elas, é uma grande mudança. Tem sido uma coisa mesmo bonita de assistir. Nem me apetece deixar a zona dos camarins… sinto que tem sido algo mesmo diferente.

"Lembro-me de ter achado logo que a 'Like I Used To' ia ser uma loucura, que as pessoas iam passar-se quando a ouvissem. Era tão boa. Eu dizia à Sharon [Van Etten]: 'não precisas de mim para esta canção, podes terminá-la sozinha!' Não o ter feito é um reflexo muito forte de quem ela é: muito generosa, gentil e aberta aos outros. Seria muito divertido trabalhar com ela num EP."

Ia falar sobre isto mais tarde, mas já que mencionou a Sharon Van Etten, tenho de lhe fazer uma pergunta sobre a canção “Like I Used To”. Estou curioso sobre isto: percebeu imediatamente, juntamente com a Sharon, quão poderoso esse dueto poderia ser?
Quando ouvi o que ela escreveu… ela escreveu a estrutura da canção e pediu-me que a completasse com letras, que escrevesse um verso e parte do refrão. Eu só lhe dizia: não precisas de mim para esta canção [ri-se], podes terminá-la! A ideia dela era que sim, poderia terminar a canção sozinha, mas gostava de a partilhar comigo. Na altura, lembro-me de ter achado logo que a canção ia ser uma loucura, que as pessoas iam passar-se a ouvi-la. Era tão boa.

A Sharon poderia tê-la terminado sozinha. Não o ter feito é um reflexo muito forte de quem ela é: alguém que não é competitiva de uma forma estranha ou que magoe. Ela desafia-me como amiga e colega, mas de uma forma boa. É um sintoma muito claro de quem ela é como pessoa, ter dito: “sim, poderia escrever a canção e terminá-la, mas gostava mesmo que a pudesses partilhar comigo”. É muito generosa, gentil e aberta aos outros. Não conheci muitas pessoas assim na indústria musical. Acho que as pessoas, e em particular os cantores e escritores de canções, estão sempre muito preocupadas em não fazer o mesmo que os outros, ou em trilharem os seus próprios caminhos individualmente. Foi muito divertido fazer essa canção com ela. A dada altura, aconteceram algumas coisas nas vidas pessoais de ambas e tivemos de dizer: “bom, vejo-te na digressão”. Mas pode ser que consigamos escrever mais canções juntas, seria muito divertido trabalhar com ela num EP [mini-álbum] ou assim.

[“Like I Used To”, canção que junta Angel Olsen e Sharon Van Etten:]

Perguntava-lhe como tem sido tocar estas canções ao vivo porque já revelou em outras entrevistas que este álbum e a sua gravação estão associados a um período de emoções e sentimentos fortes — quer felizes, quer sombrios. Como não sou músico, não faço ideia de como é tocar ao vivo canções indissociáveis de um período emocionalmente tão intenso.
Quando estou a tocar com a banda, entro em piloto automático. Não é costume refletir sobre o conteúdo lírico das canções quando as estou a cantar, estou mais concentrada em manter o equilíbrio e a harmonia sónica da banda. É muito raro as palavras afetarem-me nesse momento. Às vezes até me pergunto como cheguei a meio de uma canção porque não me lembro de ter cantado metade do tema. Acho que isso deve-se muito a estar a ouvir ativamente a banda com a qual estou a tocar, enquanto estou a cantar. Quando faço concertos absolutamente sozinha, é um pouco diferente. Sinto as coisas de uma forma diferente porque até acontece expandir as palavras. Aí, o conteúdo das palavras pode mudar o significado inteiro da canção e a forma como a canção existe nessa circunstância.

Posso dizer que quando toco a solo, sinto mais as coisas que escrevi. Espero tocar um par de canções assim quando estiver em Portugal. Já conheço as pessoas [faz uma pausa e ri-se], só de ter viajado por Portugal e de ter tocado aí já percebi que as pessoas preocupam-se muito em ouvir as palavras. Portanto, é sempre uma experiência especial tocar sozinha um par de canções, quando aí estou. Além de que nesse formato estou mais dependente da voz e da palavra. Vou chegar um pouco mais cedo, para poder vagabundear um pouco. Tenho tantas saudades de estar aí. Tinha pensado estar aí em dezembro [de 2021] e não foi possível, mas espero sinceramente que agora o encontro seja possível. Com tanta coisa a acontecer no mundo, seria mesmo especial.

"Quando escrevi a maioria destas canções, andava a sentir-me um pouco mais calma e, diria, desacelerada: queria simplesmente amar mais lentamente, queria olhar para as coisas com mais atenção e cuidado."

Também lhe fazia aquela pergunta sobre como se tem sentido a tocar ao vivo devido às diferenças deste disco para o All Mirrors [editado em 2019]. O ambiente e o tom das canções, dos arranjos, mudou bastante. A serenidade destes novos temas é um bom espelho da forma como se sente? Não sei se lhe acontece ter o ambiente de discos como uma espécie de retratos sónicos daquilo por que está a passar — e se isso se aplica neste caso.
Sim. Muitas destas canções foram escritas antes de ter perdido os meus pais e antes de me ter revelado perante os outros [como queer]. Na sua maioria, eram coisas que andava a cantar durante grande parte da pandemia. Creio que a única canção que diverge mais e é realmente sobre a minha mãe é a “This Is How It Works”. Quando escrevi a maioria destas canções, andava a sentir-me um pouco mais calma e, diria, desacelerada: queria simplesmente amar mais lentamente, queria olhar para as coisas com mais atenção e cuidado.

[“This is How it Works”:]

Porque acha que se começou a sentir assim?
Talvez por estar a ficar mais velha. Deu-me vontade de prestar mais atenção às pessoas que me rodeiam e ver se é recompensador passar tempo com elas. Ganhei vontade de ter a certeza de que eu e as pessoas que me são próximas estamos na mesma página, que o que fazemos juntos é útil — e bom para mim e para elas. Acho que estava com vontade de aprender mais sobre como aproveitar mais a vida e o meu tempo, também com tudo o que estava a acontecer e com tudo o que aconteceu.

Foi muito difícil para todos. E as vidas normais das pessoas tinham, ainda assim, de continuar. As coisas que aconteceram… não foi fácil. Ao longo deste período, vivi coisas que não tinha vivido [diz, já em tom emocionado, embora disfarçando a comoção com risos intercalados]. Mas de alguma forma senti-me menos sozinha na estranheza de tudo aquilo. Se o mundo continuasse e não tivesse perdido os meus pais, talvez me tivesse sentido diferente — mais marcada por aquele período e a sentir mais pena de mim mesma. Mas não sinto pena de mim mesma, porque há tanto a acontecer, tantas pessoas a perderem entes queridos, a adoecer, tudo isso… A bênção e a lição que também vem com isto para mim foi esta: “demora o tempo que precisares, toma conta de ti mesma e aproveita a tua vida tanto quanto puderes. E, já agora, não te cales sobre as coisas com as quais não concordas”. Acho que são grandes lições.

Não é missão fácil, encontrar o que quer que seja de bom num momento desses.
É muito fácil sentires-te derrotado. Mas quando as coisas te acertam em cheio na cara, quando estão mesmo a acontecer, quando são reais e te acontecem a ti, daí pode também advir um momento, uma oportunidade para fazeres alguma coisa positiva. Eu acredito nisso, acredito mesmo. Ainda que seja muito desencorajador ver o que está a acontecer com a “alt right”, ver como as posições mais extremadas tomaram conta das discussões e como essas posições inspiram tantas pessoas.

Talvez anteriormente as pessoas estivessem mais silenciosas relativamente às suas perspetivas políticas porque não queriam que os outros não gostassem delas. Mas agora tornou-se tudo tão aceite que é curioso ver como as pessoas, as empresas e os atuais líderes sentem-se tão confortáveis em ter posições tão a preto e branco sobre as coisas. Temos de tentar e trabalhar mais para chegar às pessoas. Sinto que é um momento tão estranho, este. Mas estou a tentar divertir-me a fazer música e a tocar — e tudo isto está a fazer-me pensar sobre o quão importante é ouvir música neste momento.

"Tinha planeado gravar este disco em julho. A minha mãe faleceu a meio de junho. A data prevista para entrar em estúdio era para três semanas depois disso. Tinha a escolha de não o fazer. Mas pensei: quero fazer música, não quero não fazer isto porque estou triste. Preciso de me pôr a trabalhar. Talvez não seja a atitude mais saudável, mas pus tudo o que tinha neste disco. Não tinha nada a perder, também."

Foi para estúdio gravar este disco pouco depois da morte da sua mãe, que aconteceu dois meses depois da morte do seu pai. Dedicar-se ao trabalho e à música, a escrever e sobretudo a esculpir e trabalhar palavras sobre emoções e sentimentos — transformando-as em canções finalizadas —, foi algo que a ajudou a lidar com as emoções que sentia, com a tristeza e o luto que perdas como essas geram? 
Confesso que muito do luto que sentia devia-se mais ao mundo, porque a maioria das coisas que me aconteceram — que aconteceram na minha vida pessoal — ocorreram depois de ter composto a maior parte do disco. Foi muito estranho sentir que escrevi todas aquelas coisas pensando que estava tão inspirada e que estava a ser tão profunda, para depois toda esta porra ter acontecido logo a seguir. Mas de facto ajudou-me. Ou, por outra, não foi bem ajudar.

Não havia alternativa?
Tinha planeado gravar este disco em julho. A minha mãe morreu a meio de junho. A data prevista para entrar em estúdio era para três semanas depois disso. Tinha a escolha de não o fazer. Por causa do estado do mundo, por tudo [a pandemia] se ter prolongado tanto, era preciso planear tudo com grande antecedência. E pensei: quero fazer música, não quero não fazer isto porque estou triste. Preciso de me pôr a trabalhar. Talvez não seja a atitude mais saudável, mas pus tudo o que tinha neste disco. Não tinha nada a perder, também. Não precisava de parecer especialmente importante ou interessante aos olhos do Jonathan [Jonathan Wilson, o produtor do álbum] ou de quem quer que fosse. A minha atitude foi simples, chegar e dizer: “estas são as canções, isto é o que acontece com elas, concordo com isto, quero tentar aquilo”.

Foi tudo muito intuitivo. Tinha de o de ser. E ele percebeu isso. Se tivesse trabalhado com outra pessoa, não sei se o disco teria encontrado o seu caminho. Isto porque a atitude dele foi apenas: vamos fazer um disco bom. Não tem de ser exatamente isto nem exatamente aquilo, o som da bateria não tem de ficar assim ou assado… podemos fazer um disco que soe a um álbum tocado ao vivo, com intervenções mínimas. Ele acreditou que isso seria bom porque, dizia-me, “são os teus rapazes — as tuas canções são estas e as tuas palavras são boas, portanto aí estão as canções”. É estranhíssimo como ninguém [nenhum produtor] teve essa postura ao longo da minha carreira, para ser sincera, como ninguém me disse que a minha voz era boa e as minhas canções eram boas, portanto tratava-se apenas de encontrar espaço para isso se revelar.

"Apercebi-me que poderia escrever sobre esse tipo de momentos [mais felizes] e sobre quão especiais são, quão fugazes e raros são, sobre desacelerar e o quão divertido é fazê-lo", diz Angel Olsen

Angela Ricciardi

Consegue encontrar algum motivo para isso não ter acontecido anteriormente?
Acho que isso nunca aconteceu porque a maioria dos produtores estão constantemente a trabalhar com discos diferentes. Talvez pensem: “OK, o meu objetivo aqui é tornar tudo isto maior“. Ao invés de deixar que as coisas fiquem grandes por si mesmas, não adicionando tantas coisas às canções. Acho que o Jonathan percebeu mesmo bem a fase em que eu estava, musicalmente. Isto não quer dizer que não me tenha divertido com o John Congleton [produtor do anterior All Mirrors], a tornar o som das canções maior. Adorei trabalhar com ele, é um bom amigo e ambos concordámos que o que poderia fazer de mais radical nesta altura era despir tudo novamente, nesta fase. Acho que ele percebeu que este não era um álbum em que fizesse sentido ter um tipo de som mais cheio.

Dei por mim a pensar no seu percurso desde o Half Way Home [o primeiro álbum, lançado em 2012] e o Strange Cacti [o primeiro EP, de 2010]. No outro dia falava com um outro músico sobre como as canções tristes e trágicas têm uma certa aura atrativa quando começamos a criar uma relação mais íntima com a música, sobre como a maioria dos miúdos crescem a admirar figuras musicais meio trágicas e errantes. Atravessou essa fase?
Oh yeah!

"Quando és uma miúda ou um miúdo, passas por uma série de mudanças e tudo o que te acontece é geralmente muito confuso e emocional. Quando as coisas te acontecem pela primeira vez, são sentidas de forma tão esmagadora... estás totalmente aberto, de olhos arregalados perante o mundo. Mas é engraçado: quanto mais pensas que estás a 'perceber' as coisas, mais o universo te atira à cara que não é possível, que não consegues fazê-lo."

E foi-lhe preciso algum tempo até que se sentisse bem a escrever canções de amor e canções mais luminosas? Luminosas quer liricamente, quer sonicamente.
Acho que sim, de certa forma. Definitivamente, oiço muita música sobre sentimentos. Quando és uma miúda ou um miúdo, passas por uma série de mudanças e tudo o que te acontece é geralmente muito confuso e emocional. Além de que quando as coisas te acontecem pela primeira vez, são sentidas de forma tão esmagadora… estás totalmente aberto, de olhos arregalados perante o mundo, e faz sentido que quando és alguém novo e estás a descobrir o mundo sintas as coisas de uma forma tão forte. E no meu caso, sim, diria que levei algum tempo. Entre outras coisas, demorei até encontrar forma de descrever certo tipo de sentimentos muito especiais que sentia. Eram como se fosse um segredo.

Apercebi-me que poderia escrever sobre esse tipo de momentos [mais felizes] e sobre quão especiais são, quão fugazes e raros são, sobre desacelerar e o quão divertido é fazê-lo. Mas é tão engraçado, tendemos a pensar que estamos a chegar a algum lado e fazemos planos e planos para lá chegar. A verdade é que nada é planeado, nunca — e quanto mais pensas que estás a perceber as coisas, mais o universo te atira à cara que não é possível, que não consegues fazê-lo. Acho que há espaço para falar sobre esse tipo de coisas.

Mencionou anteriormente a revelação da sua orientação sexual. A primeira vez que falou publicamente sobre isso, fê-lo porquê? Foi porque sentia que precisava de o fazer? Foi a pensar em outras pessoas, em como poderia estar a encorajar outros a aceitarem-se, a sentirem-se bem consigo mesmos, a libertarem-se do mesmo peso de omissão de que se estava a libertar?
Essa foi a razão pela qual partilhei isso com o mundo. Ninguém tem nada a ver com quem amo ou deixo de amar. Mas neste tempo, numa altura em que toda a gente tem tanto medo, numa altura em que as pessoas andam a ser tão cruéis, a magoar os outros, a ameaçar a autonomia das pessoas e as suas decisões, em que andam a tentar intervir sobre quem os outros amam ou não… acho que é importante, neste contexto, ergueres-te e dizeres que discordas da forma como as coisas estão a decorrer.

"Eu sou 'queer'. É engraçado porque levou muito tempo até que percebesse que o era. Desvalorizei o assunto por muitos anos. Acho que seria bom que as pessoas pensassem nisto: deixem os outros amar quem quiserem. É simples."

Eu sou queer. É engraçado porque levou muito tempo até que percebesse que o era, porque interessam-me todos os tipos de pessoas. Também me interesso por homem cisgénero, por exemplo. Simplesmente sinto-me atraída por pessoas. Portanto, desvalorizei o assunto por muitos anos e foi difícil chegar a ponto de finalmente assumir: OK, sou tão queer que tudo o que queria fazer era amar alguém e ligar-me a alguém e isso poderia acontecer com qualquer tipo de corpo, literalmente [incluindo trans]. O corpo simplesmente não é uma coisa real para mim. É isso que sinto: não é real. No fim de contas, tudo o que quero é ligar-me ao lado humano de alguém. Acho que seria bom que as pessoas pensassem nisto: deixem os outros amar quem quiserem. É simples.

É lógico que o que diz publicamente pode ter efeito nas pessoas, portanto era previsível que estivesse consciente do impacto e do significado de uma revelação dessas. Discute-se habitualmente se um artista queer tem ou não tem o dever de o fazer — se deve encorajar os outros a admirarem também essa faceta que faz parte da identidade de um artista que adoram, ou se tem todo o direito a manter essa faceta privada. Estou curioso sobre a sua perspetiva quanto a isto.
Se alguém sente que não o deve fazer, se é tímido ou tímida e se quer manter essa informação só para si… eu, pessoalmente, não tenho nada a esconder. E não tenho por que o esconder. As pessoas estão sempre a projetar-se quando veem os outros… pessoalmente, estou apenas a tentar encorajar as pessoas a serem honestas consigo mesmas. É apenas isso. É muito difícil revelares-te perante a tua família e sentires que a podes perder. Porque o mundo é uma coisa, perder a tua família é outra.

Para mim foi importante estar rodeada de pessoas, que são de algum modo uma outra família — que eu escolhi —, que me fizeram sentir segura o suficiente para ser eu própria e para ser honesta com eles quanto à minha identidade e à forma como lido com o amor. Senti-me privilegiada nesse aspeto, porque muitas pessoas não têm isso nas suas vidas. E acho que é bom quando os nossos líderes são pessoas que admiramos, que podem ser inspiradoras e que de alguma forma, à sua distância, apoiam a tua forma de viver. Não acho que seja um dever, em suma, mas acho que é útil.

Angel Olsen apresenta o seu novo disco em Portugal no início da próxima semana

Angela Ricciardi

Em Portugal, fez uma residência — promovida pelo programador Sérgio Hydalgo — em que trabalhou linguagens musicais relacionadas com o fado. O resultado desse trabalho é algo que as pessoas não vão nunca poder ouvir?
[Ri-se] Senti-me otimamente quando estava a fazer esse trabalho. Sou fã de fado desde que viajei para Portugal e o ouvi. Acho que simplesmente senti… não queria apropriar-me de uma cultura e da importância que algo como o fado tem na cultura portuguesa só porque o fado me entusiasmava. Falei com o Sérgio longamente sobre isto, ao longo dos anos. Talvez um dia sinta que vale a pena revelar esse trabalho, mas não sei se algum dia sentirei que é importante para mim, ou interessante para mim, partilhá-lo. Acho que é mais interessante escrever simplesmente as minhas canções e tocá-las aí do que tentar mostrar a toda a gente que gosto muito de fado, que o fado me entusiasma.

Acho que a experiência de lidar com o fado é, por si só, muito bonita. Há uma grande lição associada a isto: a contradição entre querer partilhar com o mundo um lugar especial mas, por outro lado, não querer que toda a gente o estrague nem querer ser parte daquilo que o está a destruir. Sei que Lisboa já transborda de turistas. O tempo que aí passei inspirou-me tanto que me fez pensar: talvez viva aqui um dia. Mas creio que o que me impediu de sequer considerar realmente essa hipótese foi querer que continue a ser um segredo por muito tempo [ri-se]. Quero que as pessoas que vivem aí possam poder continuar a viver aí. O turismo deveria ser taxado! [ri-se novamente] Isso faria algum sentido, porque o dinheiro poderia ser canalizado para as pessoas que vivem e trabalham aí.

De alguma forma, isso já acontece em cidades como Lisboa. Haverá é quem considere que essa taxa turística pode ser insuficiente, ou pode não estar a revelar-se capaz de resolver os problemas de quem mora (ou morava) e trabalha em Lisboa.
Há uma razão pela qual este assunto me incomoda particularmente. Vivo numa cidade que está a passar pela mesma coisa. Durante muito tempo, foi um segredo. Fica nas Montanhas Blue Ridge, nas Montanhas Appalache. É uma cidade conhecida como A Terra do Céu — é assim que se chama o sítio onde vivo [Asheville, no estado da Carolina do Norte]. Toda a gente está a apaixonar-se por este sítio. Isso é algo que adoro ver, mas há o contraponto: as pessoas que amo e com quem me preocupo estão a ter de se mudar mais e mais para a floresta, para fora da cidade.

É uma pequena cidade, com perto de oito mil habitantes, mas a renda das casas está mais cara do que em Chicago. É simplesmente estúpido. Porque as pessoas querem ter a experiência de estarem próximas da natureza, e como existem umas 150 cascatas por perto, esse fenómeno está a acontecer. É uma das regiões montanhosas mais antigas dos Estados Unidos. E tem uma energia muito própria, talvez como os Pirinéus. É um sítio lindo e apetece-te partilhá-lo com os outros, mas também queres que os outros o respeitem e que respeitem as pessoas que lá vivem. É um equilíbrio difícil. Voltando a Lisboa: musicalmente, não quero fazer nada que contribua para a exploração de uma região que amo e respeito muito.

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