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Sentiu uma “pancada” no coração. “Assim, uma coisa no peito” como um “sinal” para voltar para casa. Diz que foi a Nossa Senhora de Fátima. “Sou muito devota dela”, explica com as mãos encostadas ao peito e já com a voz a tremer. “Deus estava a dizer-me: ‘Vai-te embora, Laura. Vai para casa'”, contou. Já se tinha sentado numa cadeira porque não se estava a sentir bem. Como era habitual, tinha ido para a horta com o marido, o João ou “senhor João das moedas”, como é conhecido no único café da freguesia de Cavernães, em Viseu.
— Ó João, vamos embora!
— Esta mulher ainda agora chegou. Está com muita pressa, hoje.
— Vamos embora, João.
— Pronto, vamos embora, mulher. Enquanto tu fazes o almoço eu vou podar os kiwis.
O “senhor João das moedas” ficou a podar os kiwis. Costumavam voltar para casa todos os dias por volta das 12h30 para almoçar. Mas, naquele dia, Laura foi uma hora mais cedo. Ainda parou e apanhou uns “espigos” que tinha na horta. Ia cozê-los para o almoço. Quando chegou, foi primeiro apanhar uma peças de roupa que estavam estendidas no quintal. Tinha começado a chover, entretanto. Foi para casa “à beirinha” das paredes para não se molhar. Tinha a “caldeirinha” com os “espigos” numa mão e a roupa na outra. “Vinha tão já coisa que nem dei por falta deste cão que já estava a dormir na casa de banho“, recorda e aponta para o labrador preto a ladrar e a saltar em redor das suas pernas. “Drogaram-no”, explica a gritar e a tentar fazer-se ouvir por cima do latir do Rodolfo. Agora, recorda que toda a manhã o ouviu ladrar como se quisesse dizer: “Venham para cima que está cá gente estranha”. “Este cão só lhe falta falar”, elogia, enquanto lhe passa a mão pelo pêlo preto.
Laura não deu por falta do Rodolfo — que tinha sido atingido com um taser — nem se apercebeu que estavam quatro homens na sua casa de pedra com portões altos e verdes no Bairro da Amizade, naquela aldeia em Viseu. Quatro anos passaram desde o assalto. O assaltante que ainda estava à solta foi detido no final de abril. Mas o casal septuagenário ainda vive “a vida num trauma”. Andam “doentes”. “Sempre que entro na casa, olho para todo o lado. Tenho medo”, diz Laura enquanto aponta para a porta.
Lembra-se de abrir exatamente essa porta, que dá para a cozinha. Ao entrar, pousou a “caldeirinha em cima da mesa, com os espigos lá dentro para o almoço”. Antes de começar a cozinhar, subiu as escadas para deixar a roupa no quarto, em cima da cama. Com a voz já a falhar, Laura inspira e recupera o fôlego, antes de continuar a relatar aquela manhã de março de 2014: “Deitaram-me a mão à boca. E eu gritava: ‘Não me façam mal’. Eles vinham todos encapuzados, com luvas e com choques.”
Laura ficou ali mesmo, no quarto. Deitaram-na em cima da cama e ameaçaram: “Se falares, mato-te. Se não matar a ti, mato a família toda”. Mas Laura admite que nunca pensou que aqueles “quatro malandros” tivessem coragem para o fazer. “Nosso Senhor estava ao pé de mim. Eu pensei sempre que Nosso Senhor me acudia”. Um dos encapuzados ficou a guardá-la enquanto os restantes três continuavam o trabalho. Não foi preciso amarrar a dona da casa. A intimidação chegou para que Laura não tentasse sequer defender-se. “Não saí de lá porque tinha uma faca assim“, continua a relatar ao Observador, enquanto levanta o braço para simular o tamanho da arma. Durante o tempo em que esteve deitada na cama, rezou “sempre”. Tinha um terço na mesa de cabeceira. Um dos encapuzados perguntou-lhe se estava a rezar. Disse-lhe: “Toma um terço, reza”. “Para fazerem pouco de mim, até o terço me levaram”, recorda Laura indignada.
Laura foi surpreendida ao entrar em casa mas os quatro “malandros” também. Um deles chegou mesmo a ficar assustado quando a dona da casa disse que se estava a sentir mal. Acabou por ir buscar um copo de água. Foram até “atenciosos”, nas palavras de uma fonte da Diretoria do Centro da Polícia Judiciária (PJ) em declarações ao Observador. “Devem tê-los avisado que eu era muito doente. Para não me fazerem mal. Para roubarem tudo o que pudessem mas não me fazerem mal”, conta Laura. Teve linfoma, um tipo de cancro. Tinha sido diagnosticado dois anos antes do assalto. Precisou de fazer oito tratamentos de quimioterapia: “Caiu-me o cabelinho todo”. “A doença já me deitou abaixo mas estes ladrões foi o que me matou mesmo”, confessou.
A mulher do “senhor João das moedas” percebeu rapidamente qual era o interesse dos quatro encapuzados na sua casa de pedra naquela aldeia em Viseu: o cofre. Pediram-lhe para revelar o código. “Não sei. Juro por Deus que não sei. Ainda hoje não sei. Só o meu marido é que sabe o código, claro!”, respondeu-lhes. Pediram-lhe para, então, chamar o marido. Mas não foi preciso chamar por ele.
O “senhor João das moedas” e a família inteira sequestrada a conta-gotas
Laura já estava sozinha com os quatro “malandros” há cerca de duas horas. Continuava na cama, sem estar amarrada e sem ser agredida. O marido só voltou à hora habitual para almoçar. Mas os “espigos” ainda estavam na caldeirinha em cima da mesa da cozinha. A caldeira de metal onde Laura os ia cozer não chegou a ir ao lume. Quando entrou em casa, estava ao telefone com a filha. Desde que o pai ficara doente, ligava sempre para saber como é que ele estava, explicou Laura ao Observador. A filha já tinha tentado ligar à mãe. O que não sabia era que lhe tinham tirado o telemóvel.
— Ó pai, então a mãe? Estou farta de lhe telefonar e não me atende…
— A mãe deve estar bem, não sei. Parece estar bem!
“Parece estar bem”. Foi essa a frase que Laura ouviu, do quarto no primeiro andar onde estava. E que a fez gritar: “Ó João, acode-me”. Gritou tão alto que a filha ouviu. Pensou que a mãe tivesse caído ou que tivesse deixado cair o telemóvel. Perguntou o que se passava mas o pai já não lhe conseguiu responder. Também ele foi apanhado pelos assaltantes.
— Não façam nada de mal à minha mulher, não façam nada de mal à minha mulher!
Tinham posto João na sala, longe de Laura. Acabaram por amarrá-lo. “Como não estavam preparados, não levavam materiais para o sequestro. Usaram o que estava à disposição: fios elétricos ou até cabos da televisão“, explicou fonte da PJ ao Observador, acrescentando que fizeram uso da “intimidação” e da “ameaça” para o manter quieto.
A filha estava acompanhada do marido e de uma irmã — a outra filha do casal –, com quem partilhou a preocupação. Percebeu que alguma coisa estava errada. Vivia relativamente perto e, por aquilo que Laura se consegue lembrar, em 10 minutos chegou. Perguntou logo pela mãe, quando viu que não estava ao lado do pai. João informou-a que estava no quarto. “Eu quero a minha mãe aqui ao pé de mim já. Já!“, gritou a filha para um dos encapuzados, recorda Laura daquilo que conseguiu ouvir do quarto. A reação foi imediata: o assaltante levantou a mão para lhe bater. Mas foi impedido pelo colega: “Bater não. Bater não”. Por isso, trouxeram Laura para junto do marido e da filha, já também ela amarrada. Mas voltaram a levá-la para o quarto e deixaram o pai e a filha na sala. “Para não estarem a falar e a gritar”, explicou a mesma fonte da PJ.
O genro do “senhor João das moedas” também começou a achar que algo de estranho se passava. Primeiro, com o sogro. Depois, com a mulher, que também deixara de atender o telemóvel. Comentou com a cunhada e disse-lhe que tinha de ir ver o que se passava. Quando chegou, entrou e viu logo um homem de gorro na cabeça. Reagiu: pegou num pau que conseguiu alcançar e atingiu-o na cabeça, ferindo-o. Se os outros familiares tinham sido dominados com facilidade, o quarto mostrou resistência. Os “malandros” não viram outra solução senão dar-lhe um disparo de taser. “Levou o choque, caiu e ficou controlado”, descreveu fonte da PJ. Também o agrediram, causando-lhe ferimentos, e chegaram mesmo a apontar-lhe uma arma à cabeça. Embora as autoridades nunca tenham concluído se a arma era falsa ou não uma vez que não houve disparos, chegou para lançar o pânico. “Ficámos um bocado traumatizados. Ao meu genro, apontaram-lhe um revólver. À cabeça!“, recorda João, colocando ele mesmo as mãos na cabeça só de se lembra. Os assaltantes amarraram-no de seguida. Ficou no corredor, quase inconsciente.
Já eram quatro os sequestrados na casa. O mesmo número de elementos do gang — pelo menos, os que estavam a fazer o trabalho em campo. Não se ficou por ali. A outra filha do casal tinha ficado à espera de notícias. Mas elas não chegavam. Nunca podiam chegar. E, por isso, decidiu também ela ir até à casa dos pais. Sem quaisquer suspeitas, levou a filha consigo. Tinha 9 anos, na altura. Ao contrário dos outros, a filha e a neta de Laura e João rapidamente se aperceberam que a casa estava a ser assaltada. Fugiram, mas os “malandros” foram atrás delas. A mãe foi agarrada e atirada para dentro de casa. Ao vê-la a ser agarrada por alguém encapuzado, a filha começou a gritar. “Para a controlar também lhe deram um disparo com o taser“, revelou fonte da PJ. Só que ela tinha conseguido ligar para o 112. Os assaltantes aperceberam-se e concordaram: com a situação fora de controlo, fugir era a única escapatória.
O vizinho GNR de folga, os romenos “enormes” e uma tatuagem na perna
Levaram o ouro de Laura. “Tinha um fio com uma Nossa Senhora e um João Paulo II. De ouro! De ouro!“, contou, explicando que o tinha tirado porque tinha ido fazer um exame médico e não o podia usar. “Encontraram-me um nódulo na garganta. Não sabem se tem de ser tirado. Digam-me lá: podemos ter paz e sossego? Diga-me só!”, implorou.
Mesmo com todos os imprevistos e familiares a chegar uns atrás dos outros, ainda conseguiram roubar relógios e o dinheiro que Laura tinha na carteira. Mas continuaram sem saber o código do cofre, que estava no primeiro andar. Sem saber como abri-lo, decidiram carregá-lo do primeiro andar para o rés-do-chão. Era pesado. Desconfiaram que podia estar cheio e valia a pena. Meteram-no dentro do carro de João, um Audi. No banco de trás. O objetivo era levá-lo e depois abri-lo noutro local. Seriam dois coelhos de uma cajadada só: levariam o cofre e ficavam com o carro que usariam para o transportar.
O assalto que se tinha transformado em sequestro já ia em cinco horas. Ninguém, no Bairro da Amizade, naquela aldeia, se tinha apercebido que uma família inteira estava amarrada dentro da própria casa. Naquela manhã, por volta das 7h30, só “uma miúda” que ia apanhar um autocarro para a escola tinha notado movimentações estranhas. Só contou à mãe, à noite, recorda Laura. Disse-lhe que tinha apanhado um “susto tão grande”. “Ó mãe, estavam lá homens encapuzados à porta do senhor João”. A mãe perguntou-lhe porque é que não avisou ninguém mas a filha explicou-lhe que até correu por outra rua porque teve “tanto medo” que a roubassem. “Coitada, não é?”, diz agora Laura.
Por volta das 14h30 os “malandros” optaram por sair da casa. “Houve um que, ao fugir, saltou do terraço abaixo”, conta o “senhor João das moedas”. Naquela altura, já tinha conseguido levantar-se, abrir uma janela e gritar: “Socorro!”. O grito foi ouvido numa casa noutra rua, onde estavam vários homens a pavimentar a entrada. Um deles, o dono, era GNR. Mal conhecia os vizinhos mas não ignorou o pedido de ajuda. No virar da esquina, viu logo um encapuzado a sair da casa. Estava de folga e não ia prevenido. Nem telemóvel levava. Ainda gritou pelos trabalhadores que estavam na sua casa a trabalhar. Mas o grito não chegou à rua. Gritou também para os assaltantes: “Parem, polícia”. Não conseguiu que obedecessem à ordem e, por isso, partiu para a violência. Mas nem isso os parou. “Eram romenos. Enormes“, recorda uma moradora do Bairro da Amizade. Acabaram por fugir para a mata. O GNR, que tinha 38 anos na altura, foi atrás deles mas não os conseguiu apanhar. Ainda tirou o gorro a um deles e viu-lhe a cara. Guardou também na memória um elemento que viria a ser crucial para a investigação: a tatuagem na perna desse assaltante.
O dente de marfim que despertou interesse ao “mandante” português
“Não sou contra nem raças nem coisa nenhuma. Entendo-me bem“, deixa claro Laura. Mas explica: “Estou é revoltada porque vieram assaltar a minha casa e deram cabo da minha vida. Deram cabo da minha vida!”. Só atacam pessoas indefesas, estes malandros”, continua e questiona: “Porque é que deixam essa gente toda vir para cá? Para quê?” O que Laura não sabia é que “essa gente toda” tinha sido contratada por um cidadão português — negociante de arte (e planeador de assaltos, de acordo com suspeitas da PJ) — o “mandante”.
Laura sabe agora que os amigos do marido só “se faziam” de seus amigos. “Quem é amigo daquilo que é nosso não é nosso amigo”, defende a dona da casa. O marido de Laura compra “coisas antigas” e vende. Também coleciona moedas — é isso que o faz ser conhecido por “senhor João das moedas”. João recorda que chegou a abrir portas a um “artista” a quem comprou e vendeu ouro. Nunca desconfiou dele, até ao dia do assalto. O “artista” apareceu por lá. “Que estás tu aqui a fazer? Está aqui a [Polícia] Judiciária e tu aqui. Vai-te embora”, disse João na altura. Recorda também que vendeu a um bancário de Viseu um dente de marfim. O negócio foi feito através do site de compras e vendas OLX. “Se o vendeu ao tal mandante? Não tenho nada a ver com isso. Eu vendi [o dente de marfim] humildemente”, afirma João. Sempre questionou: “Como é que sabiam da minha casa?”. Agora suspeita qual é a razão.
A PJ sabe hoje que o “mandante” foi informado por alguém sobre o recheio da casa. Alguém que fez negócio com o “senhor João das moedas” transmitiu a notícia a esse português. Ele ficou a “matutar naquilo” e a pensar numa forma de dar uma “golpada” ao casal, explica fonte da PJ ao Observador. Estudou os hábitos de João e Laura. Sabia que saiam por volta das 9h00 da manhã para ir para a horta e que assaltar a casa, mesmo em plena luz do dia, seria fácil.
Do café em Campo de Ourique ao barracão em Viseu
O acordo era simples e não exigia muita matemática: os assaltantes entregavam tudo o que conseguissem roubar; o “mandante” vendia tudo e ficava com 50% do material roubado; os restantes 50% eram divididos entre os assaltantes. Os quatro romenos foram fáceis de convencer. Costumavam frequentar o mesmo café que o “mandante”. No bairro lisboeta de Campo de Ourique. Não se conheciam mas o português, sabendo que eram “homens do crime, do roubo, do furto”, lançou-lhes o desafio, explicou fonte da PJ ao Observador. Fez a abordagem e os romenos ficaram interessados. Inicialmente, mostraram algumas reservas mas acabaram por ser convencidos. O “mandante” disse-lhes que era fácil, que o casal normalmente passava o dia fora. Bastava deixarem-nos sair e tinham várias horas para fazer o assalto.
Para a PJ, este assalto que se transformou em sequestro vem mostrar que “as coisas, por vezes, não são tão organizadas como as pessoas pensam“. O crime nem sempre é feito por grupos organizados que se conhecem bem, já se dedicam juntos a essa atividade e tem uma zona onde atuam e onde só cometem esse crime. É mentira”, assegura fonte da PJ, exemplificando: “Alguns [romenos] tinham antecedentes, mas foi tudo combinado numa reunião de café.”
Incluindo a data. O “mandante” e os romenos combinaram o dia para o assalto. Apontaram para fim de março de 2014. Nesse dia, encontraram-se em Lisboa. Partiram ao final da tarde, em direção a Viseu. Foram em dois carros. Os romenos num que “João das moedas” está convicto que “o carro era da mãe de um deles, de Odivelas“. O porta-bagagem ia recheado de materiais que os romenos “acharam por bem levar”: lanternas, rádios, telefones descartáveis, mantimentos e armas. “Iam preparados para o pior, mas na convicção de que seria fácil e que não haveria violência. A ideia não era essa”, explicou a fonte da PJ.
Os romenos seguiram o português, que ia à frente, noutro carro a indicar-lhes o caminho. Ao chegar a Viseu, já era noite. Como o plano era assaltar a casa em plena luz do dia, os assaltantes arranjam um sítio estratégico onde pudessem vigiar. Escolheram um barracão velho, a partir do qual é possível ver sem se ser visto a casa de Laura e João. Lá passam a noite, a aguardar. Por volta das 9h00, viram Laura e João a sair para a horta e meteram mãos à obra. O trabalho dos romenos começava e o do português já tinha acabado na noite anterior. Depois de lhes indicar a casa, voltou para Lisboa onde ficaria a aguardar o material.
A fuga pela mata e o regresso: “Mataram-me o meu Bill”
As autoridades chegaram ao Bairro da Amizade já os “malandros” tinham fugido pelas matas. É que aquele bairro só tem uma entrada que é, por sua vez, a única saída. Algo que, aliás, preocupa uma das moradoras: “Se acontece alguma coisa? Um incêndio, por exemplo. Por onde saímos?”. Em caso de incêndio não poderia acontecer mas daquela vez, os romenos saíram em direção à mata e foi lá que se esconderam. “Como a situação era da competência reservada à Polícia Judiciária — o crime de sequestro — a GNR comunicou-nos para tomarmos conta. E avançou uma equipa com cães pisteiros”, explicou a PJ. Por lá andaram a tarde e a noite toda. Mas sem encontrar os romenos. Tinham ligado ao português que os foi buscar.
Também Laura e João já tinham ido embora. Acabaram por ir dormir a casa de uma das filhas, nessa noite. “Ainda bem”, diz o dono da casa. É que os “malandros” voltaram. Partiram os vidros das janelas do rés-do-chão, entraram e mataram o outro cão do casal. “Mataram-me o meu cão. Mataram-me o meu labrador”, recorda Laura. Já com a voz a tremer, repete: “Mataram-me o meu Bill.”
As autoridades não conseguiram apanhar nenhum assaltante nesse momento, mas não tardou. Durante a tarde, localizaram um dos carros associados ao grupo. “Estava em nome de uma mulher romena“, explicou a fonte da PJ, acrescentando que assumiram, de imediato que podia ser o carro que o “João das moedas” dizia pertencer à mãe de um dos romenos. Foi montado um dispositivo de segurança discreto e o carro ficou sob vigilância.
Durante a madrugada, um dos romenos foi ao local buscar o carro e acabou detido em flagrante delito. Tinha um ferimento coincidente com o que foi feito pelo genro de João, com o pau que conseguiu alcançar. Mas não foi apenas pelo ferimento que conseguiram perceber que era um elemento do gang. O próprio admitiu fazer parte dele, mas não ajudou a identificar os cúmplices. Disse que não conhecia os outros elementos. Inventou uma “história qualquer”. Acabou por ser julgado passado uns meses “sem a história ficar devidamente esclarecida”. “A partir do momento em que há uma detenção, o prazo do inquérito começa a correr e há prazos limite que tem de ser cumpridos”, esclareceu a PJ. Foi condenado a nove anos de prisão e a investigação continuou.
“Havia a suspeita que podia haver um mandante“, explicou o inspetor responsável pela investigação ao Observador. Objetivamente os assaltantes não tinham ligação nenhuma. O detido vivia em Lisboa. “Porquê ir àquele sitio, àquela casa?”, questionou a PJ na altura.
O português, o acompanhante e o romeno com a tatuagem do dragão
O gang de Campo de Ourique que a PJ desconfiava ser de cinco elementos — quatro assaltantes, entre os 25 e 30 anos, e o mandante, de 32 na altura — tinha, afinal, mais um. No carro onde seguia o português, seguia também um acompanhante. Embora já tenha tido cumprido pena de prisão por furto a residência, a “única intervenção dele no processo foi acompanhar”. “Foi o que ele disse e todos disseram e não recolhemos qualquer indício de que não tivesse sido assim”, explicou a PJ, não descartando contudo as suas reponsabilidades: “Mas veio. Sabia perfeitamente o que iam fazer.”
Esta foi uma das informações que as autoridades conseguiram obter no interrogatório ao segundo romeno detido. Tinham passado dois anos desde o assalto e só tinha havido uma detenção. Só um membro do grupo tinha sido identificado. Mas a investigação chegou ao segundo romeno. Foi reconhecido pelo GNR que lhe tinha conseguido tirar o gorro e conseguido e ver-lhe o rosto. Tinha conseguido também ver uma tatuagem na perna bem específica: um crucifixo com um dragão a cuspir fogo.
Foi detido na margem sul do Tejo, dois anos depois do assalto. Já tinham cumprido pena por assalto a residências (também em Portugal e também com um grupo de romenos). Estava a estabilizar a vida e, por isso, confessou. Ficou em prisão preventiva. “Teve uma postura que não estamos muito habituados a que tenham: de colaborar“, admitiu o inspetor responsável pela investigação ao Observador. Disse que o assalto se “descontrolou” e que “tinha sido um azar”.
Foi esse o mesmo argumento que o mandante português usou quando foi abordado e, também, detido. O segundo romeno “abriu o jogo” e disse quem eram os outros elementos do gang de Campo de Ourique. Não eram “amigos de longa data”, “conheciam-se por alcunhas” — o que tornou “muito difícil a investigação”. Mas ainda assim, a PJ chegou ao mandante. Não ficou em prisão preventiva por ter usado, exatamente, esse argumento: de que não previa aquele desfecho; de que a situação se descontrolou; de que não queriam nada daquilo. Admitiu apenas que “idealizou” o assalto e que “reuniu os autores materiais” para o tornar realidade.
O segundo romeno detido e o mandante foram julgados no mesmo dia. O romeno foi condenado a nove anos de prisão. O português já tinha sido investigado por suspeita de envolvimento em assaltos idênticos àquele que idealizou à casa de Laura e João. Não foi condenado a pena de prisão efectiva, mas a quatro anos de pena suspensa. Os argumentos que usou convenceram o juiz mas não convenceram a PJ. “A facilidade como contratou as pessoas e indicou a casa demonstram que já estava habituado a um esquema bem delineado. Indicia que já o tivesse feito outras vezes”, explicou a PJ, revelando que existem fortes suspeitas que “possa ter sido mandante de outros esquemas”.
Os “malandros” detidos na Alemanha e o Bairro da Amizade vazio
No único café da freguesia de Cavernães ainda se fala deste “episódio marcante”. Já lá vão mais de quatro anos. Mas ninguém esqueceu. “Não se passa aqui nada. Com o assalto ainda pior”, conta uma moradora. “Esta está à venda. Aquela também“, diz enquanto aponta para várias casas do Bairro da Amizade com uma placa onde se lê: “Vende-se”. Mudou de janelas. Só não pôs alarme porque “é caríssimo”. Mesmo sabendo que o gang de Campo de Ourique já foi descoberto, continua com medo. “Não consigo ter janelas abertas quando estou sozinha em casa. Nem para arejar”, confessa.
Em 2016, foram identificados os dois elementos restantes. Não estavam em Portugal e, por isso, foram emitidos mandatos de detenção europeus. Em 2017, foi encontrado um deles. No mês passado, foi encontrado o último. Ambos na Alemanha. Não se conhece a ligação dos romenos àquele país. O primeiro já foi julgado há dois meses. O segundo já chegou a Portugal, onde está a aguardar julgamento.
As dificuldades foram muitas mas aqueles a quem Laura chama sempre os “malandros” foram apanhados. “O inspetor disse-me: ‘ Fique descansado que eu nunca deixei nada a meio'”, recorda também “João das Moedas”, acrescentando: “E não deixou”.
“Tivemos dificuldade por serem elementos de nacionalidade não portuguesa. Tinham ligação ao mundo do crime, o que os fazia contactar com pessoas potenciais suspeitas”, disse o mesmo inspetor ao Observador. Muitas das pessoas que a PJ identificou dedicavam-se, de facto, à atividade de furtos em residências mas não neste caso concreto. “Depois há vinganças, que também dificultam. São capazes de dizer nomes de pessoas que têm o perfil, mas estão inocentes”, explicou ainda o mesmo responsável.
O Bairro da Amizade está quase vazio. Laura e o marido ainda vivem em sobressalto. “Qualquer barulhinho, fico logo alerta. Logo, logo. Se aqueles cães começarem a latir, fico à escuta”, admite Laura. Continuam a viver naquela casa de pedra. Não pensam em sair dali. O senhor “João das moedas” está certo que um assalto assim “pode acontecer em qualquer lado”. Até ali, novamente.