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[Durante esta semana, o Observador viaja em reportagem pela Irlanda do Norte, pela Escócia e por Inglaterra para acompanhar uma das eleições mais decisivas na história do Reino Unido]
“Ele é um mentiroso, isto são tudo mentiras!” O desabafo é feito ao Observador, de raspão, por um trabalhador da Fergusons, a maior transportadora do nordeste de Inglaterra, onde o primeiro-ministro e candidato principal do Partido Conservador, Boris Johnson, está de visita. “As coisas aqui estão horríveis: os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres estão cada vez mais pobres. Com ele, vai continuar tudo assim”, acrescenta o jovem, de casaco amarelo fluorescente, como todos os colegas, antes de virar costas e desaparecer sem sequer se identificar.
Esta foi uma das reações visíveis entre as dezenas de trabalhadores desta empresa, que se situa em Washington, um subúrbio de Sunderland, cidade do nordeste de Inglaterra conhecida por ser um bastião do Partido Trabalhista, mas onde se votou esmagadoramente pela saída da União Europeia no referendo do Brexit (61%), principal promessa, agora, do Partido Conservador.
[As eleições britânicas estão a ser o tema do Zoom desta semana na Rádio Observador. Pode ouvir aqui o último sobre Jo Swinson e os Liberais-Democratas]
Boris Johnson está de passagem por aqui por isso mesmo, depois de ter vindo de outra cidade do nordeste, a piscatória Grimsby, onde o padrão é o mesmo: vermelha por dentro, mas leaver por fora. Por esta altura, quando faltam muito poucos dias para a eleição, que irá acontecer esta quinta-feira, a equipa dos tories decidiu apostar na chamada “muralha vermelha” do nordeste de Inglaterra, na esperança de que o desejo pelo Brexit seja suficiente para convencer os eleitores a votarem num candidato conservador.
O discurso de Boris nas instalações da Fergusons: Brexit, Brexit, Brexit
É isso mesmo que Boris Johnson vem aqui dizer, também ele de casaco amarelo fluorescente vestido, aos trabalhadores da Fergusons: “Há três anos e meio que as pessoas deste país votaram para sair da União Europeia. E este é o tema fundamental desta eleição”, diz o primeiro-ministro na conferência de imprensa, dentro das instalações da empresa, a que o Observador assistiu.
“Se votarem nos conservadores, terão o Brexit. E iremos ainda fazer avançar este país e conseguir um futuro melhor. Muito obrigado”, afirma na despedida. Pelo meio, despenteou o cabelo com o seu gesto habitual, antes de responder às perguntas mais difíceis colocadas pela audiência. Agora, ao sair, faz um tímido adeus, antes de desaparecer atrás de outra muralha — a dos seus colaboradores.
À primeira vista, o desvio para Sunderland parece não ter valido a pena, com trabalhadores a acusarem-no de ser mentiroso. Mas nem sempre os que falam mais alto representam a maioria. Que o diga Peter Hunter, trabalhador da Fergusons que assistiu ao discurso mais ao fundo da sala: “Parece-me que isto foi muito esclarecedor”, começa por dizer ao Observador, quando questionado sobre que impressão retira do discurso do primeiro-ministro.
“Eu votei a vida toda no Partido Trabalhista, sabe? Mas, desta vez, vou votar nele”, afirma, levantando o queixo na direção do palco onde minutos antes esteve o primeiro-ministro. Como é que um homem que votou no Labour toda a vida decide conceder pela primeira vez, aos 62 anos, o seu voto aos tories? “Porque votei pelo Brexit. E a nossa candidata trabalhista daqui fez o quê? Foi a Londres e votou contra o acordo de saída. Sinto-me traído”, responde.
Sunderland, a cidade com 10% de desemprego que quer sair da UE
Peter nasceu e cresceu toda a vida em Sunderland, a cidade que se inscreveu na história do Reino Unido por ter sido a primeira a revelar o seu resultado no referendo do Brexit e ter surpreendido: 61% a favor da saída da UE, um número esmagador que surpreendeu por vir do coração da “muralha trabalhista”. Aos 20 anos, Peter entrou na Fergusons para trabalhar no armazém. Tem sido uma vida dura, de trabalho. As costas não lhe dão descanso. Mas, naquela noite do referendo, sentiu-se, como não acontecia há muito tempo, um vencedor.
“Votei no Brexit por causa da imigração, sobretudo”, acaba por confessar Peter, ao fim de algum tempo a evitar a pergunta. “Fico parvo como é que há imigrantes que chegam aqui, cometem crimes e depois não são deportados, como acontece nos outros países.” Questionado sobre se lhe agrada o plano proposto por Boris Johnson para a imigração — um sistema de pontos semelhante ao da Austrália, que beneficia os trabalhadores mais qualificados —, responde que sim sem hesitar. “Tenho confiança nele”, diz, com um largo sorriso a abrir-se por baixo do bigode branco. “E quando o Brexit finalmente tiver sido alcançado, isto vai acalmar tudo. Os jovens é que estão mais contra isto, mas… para mim, não há dúvidas: é Boris e mais nada.”
Os números não apontam Sunderland como um dos locais do Reino Unido mais afetados pelos problemas de que os Brexiteers se queixam: não só tem uma das taxas de estrangeiros residentes mais baixas do país (3%), como é a zona de Inglaterra mais dependente de fundos europeus, segundo aponta o Guardian. Essa dependência tem por base o declínio económico da região, acentuado desde a década de 80, com o fecho das minas locais e depois dos estaleiros — no governo de Margaret Thatcher, fechou-se o último estaleiro, ao pé do rio Wear. Para compensar os desempregados e investir em nova formação, a União Europeia contribuiu com um pacote de cerca de 45 milhões de libras, como relembra o New York Times.
A par disso, Thatcher conseguiu, por outro lado, que a Nissan estabelecesse a sua maior fábrica em todo o Reino Unido ali mesmo, em Sunderland. E não tardou a que a fabricante automóvel japonesa se tornasse a maior empregadora da região: sete mil trabalhadores diretos, mais de 30 mil ao todo na cadeia de produção, se contarmos com outras empresas que trabalham com e para a Nissan, como é o caso da Fergusons.
Mas isso não chega para contrabalançar a desertificação e empobrecimento que abala a região. O nordeste de Inglaterra é uma das zonas mais pobres de todo o país e os números comprovam-no: em Sunderland, a taxa de desemprego está nos 10%, muito acima dos 4% da média nacional , o PIB per capita é o segundo mais baixo de todo o Reino Unido e aqui um terço das crianças cresce em situação de pobreza.
“Esta é uma zona empobrecida do Reino Unido. Sempre foi um bastião do Labour porque foram os tories que fecharam as minas e os estaleiros e tudo piorou desde então”, acusa Kevin Roddy, ativista do Partido Trabalhista que está à porta da Fergusons, juntamente com outros colegas, para protestar contra a vinda do primeiro-ministro. “Boris Johnson é uma continuação de Thatcher. Aqui, as pessoas precisam dos bancos alimentares para sobreviver, as crianças vivem mal… Não o queremos aqui”, acrescenta ao Observador.
Logo de seguida, pega no megafone que traz na mão e grita para avisar os restantes de que o autocarro de campanha onde segue Boris está prestes a sair pelo portão principal: “Aí vem ele, nordestinos, mostrem-lhe como é!”, pede. O pequeno grupo, que não chega a ter uma vintena de pessoas, responde ao apelo. “Mentiroso!”, gritam vários dos ativistas. “Sai do nordeste, seu racista!”, acrescenta um deles.
Kevin Roddy, reformado, trabalhou toda a vida no Centro de Apoio à Criança de Sunderland e, por isso, sabe do que fala quando se refere às carências daquela comunidade. “Lembro-me de uma senhora que veio ter connosco porque precisava de ajuda, tinha perdido direito aos subsídios do Estado que recebia. Estava desesperada. Quase que tentou suicidar-se”, conta, olhando para o vazio. “Mas conseguimos ajudá-la, contestámos a situação dela e ela voltou a receber os subsídios dela”, diz, voltando a olhar nos olhos. “Mas são muitas histórias como esta, muitas, muitas histórias.”
Em terreno tão empobrecido como este, era fulcral que Boris Johnson tivesse em atenção as desigualdades sociais que se sentem mais profundamente no nordeste, onde a população se sente muitas vezes abandonada. No entanto, foi precisamente aqui que Boris cometeu a sua maior gaffe da campanha, cujo verdadeiro impacto só conseguiremos avaliar na quinta-feira. Ao ser entrevistado pela iTV no mercado de Grimsby, foi-lhe mostrada a fotografia de uma criança com pneumonia a ser tratada no chão de um hospital em Leeds, por haver faltas de camas. Boris Johnson não só não quis ver a foto, como tirou o telemóvel ao jornalista e o guardou no seu bolso, até que o entrevistador referiu isso mesmo. Só nessa altura o primeiro-ministro olhou para a fotografia, que admitiu ser “terrível”, e pediu desculpa à família.
O caso colocou a nu que, apesar de os conservadores seguirem na frente nas sondagens, qualquer deslize pode custar-lhes a tão desejada maioria absoluta na Câmara dos Comuns. “Acordo todos os dias com suores frios”, confessou mesmo ao Guardian um dos conselheiros da campanha, perante o receio de que se repita um cenário igual ao de 2017, quando Theresa May seguia à frente nas sondagens, mas acabou a ter de coligar-se com o DUP por ter perdido terreno para o Labour nos últimos dias.
O caso da fotografia de um menino a dormir no chão de um hospital é um presente dado de mão beijada a Jeremy Corbyn, que tenta desfocar a campanha do Brexit e puxá-la para temas como o do Serviço Nacional de Saúde (NHS) ou a pobreza, já que os trabalhistas pretendem reforçar, e muito, o investimento público em várias áreas como a saúde. Para o NHS, por exemplo, o Labour promete mais 26 mil milhões de libras colocadas no sistema até 2024, um valor muito acima dos 3,1% de aumento por ano no financiamento defendido pelos conservadores.
Boris contra-ataca dizendo que não é possível financiar o NHS se não houver crescimento da economia e que esse só pode acontecer com números consideráveis depois de o Brexit ser alcançado. Mas será essa mensagem suficiente para convencer os eleitores? É que é preciso ter em conta que o NHS figura sempre como uma das principais preocupações dos eleitores, tendo mesmo até ultrapassado o Brexit numa sondagem de novembro da Ipsos MORI como tema número um.
A luta do Labour para não perder o nordeste: “A eleição não é só sobre o Brexit”, diz deputada
“Não vai acontecer”, garante Kevin Roddy. “Veja por si mesma: não apareceu aqui nenhum conservador para o apoiar. E ele escolheu um sítio longe das pessoas, evitou-as para não ser vaiado.” Em causa está a fábrica da Fergusons, escondida na zona industrial de Washington, nos subúrbios da cidade, onde não existe mais nada a não ser complexos industriais a perder de vista e algumas paragens de autocarro onde os trabalhadores aguardam pelo transporte para casa. A apenas cinco quilómetros daqui, na mesma zona industrial, está a famosa fábrica da Nissan.
Os poucos ativistas do Partido Trabalhista ali presentes estão confiantes. A seu favor têm o histórico da região, já que Sunderland sempre foi esmagadoramente pró-Labour. As três deputadas eleitos pela cidade e seus subúrbios são todas trabalhistas e a assembleia municipal é dominada ininterruptamente pelo Labour desde 1974. Em 2016, o partido conquistou mesmo 67 dos 75 lugares na câmara. Mas, nesse mesmo ano, votou em massa pelo Brexit, o que baralha agora as contas do partido de Corbyn, cuja posição no tema é ambígua (defende a negociação de um novo acordo que seria depois submetido a novo referendo)
Sharon Hodgson, uma das três deputadas do Labour eleitas por Sunderland, que está também ali com os apoiantes do partido, parte para o ataque em entrevista ao Observador: “O primeiro-ministro só veio aqui porque ficava em caminho, era conveniente. Sunderland foi uma paragem para almoçar com uma oportunidade de fazer bonito para a foto”, diz. “Espero que os eleitores o vejam pelo que ele é: um primeiro-ministro oportunista.”
Confrontada com o facto de eleitores como Peter Hunter dizerem que se sentem “traídos” pelo facto de Sharon ter votado contra o acordo do Brexit, a deputada, que está a tentar a reeleição, aposta no tom conciliador: “Não quero que ninguém se sinta traído. Votei Remain, mas o meu voto foi apenas um. Se os outros deputados que são a favor do Brexit tivessem apoiado o acordo de Theresa May, neste momento já tínhamos saído da UE”, relembra.
Quanto às perspetivas para quinta-feira, a deputada eleita pelo círculo de Washington e Sunderland West tenta puxar a brasa à sua sardinha: “As sondagens mostram que nos estamos a aproximar dos conservadores e ainda falta um par de dias para a eleição”, afirma. “Boris quer que isto seja uma eleição só sobre o Brexit, mas não é, e é preciso lembrarmo-nos disso. Sete mil empregos na Nissan e 32 mil empregos na cadeia de fornecimento, isso é que está aqui em causa”, remata, apontando na direção do complexo da Nissan, que fica por trás da Fergusons.
Boris Johnson sabe disso, razão pela qual abordou o tema dentro da empresa de transportes, para tranquilizar os seus trabalhadores. “Vamos proteger a Nissan Motors, vamos garantir que as pessoas continuam a investir no nosso país”, disse, sem dar detalhes. “À medida que sairmos [da UE], do ponto de vista da indústria automóvel, os investidores no nosso país vão estar protegidos.” Uma promessa importante, já que a Nissan tem dado sinais de desagrado com o Brexit e, mais recentemente, afirmou que poderia deslocalizar a fábrica em caso de uma saída sem acordo.
O trabalhador Peter Hunter também sabe disso, mas não está muito preocupado. “Era bom aqui para o nordeste se a Nissan ficasse”, reconhece, referindo-se ao desemprego, que poderia afetar sobretudo os jovens. “Mas, para mim, isso não é problema. São só mais dois anos e depois vou-me embora, vou reformar-me. Finalmente!”, diz, soltando uma gargalhada.
Esta quinta-feira saberemos se outros em Sunderland e no nordeste estão tão convencidos como Peter. Se for o caso, esta será, sem dúvida, uma vitória incrível para o primeiro-ministro, que terá conseguido retirar das mãos do Labour uma das suas cidades mais simbólicas. Os sinais são encorajadores, já que as sondagens dão conta de que os habitantes da cidade não parecem ter mudado de opinião face ao Brexit. Mas, se Boris falhar, a visita à “muralha vermelha” do nordeste pode ter ficado marcada como o momento em que um tropeção na campanha, em forma de fotografia, lhe custou a maioria absoluta.