Pagou o lanche, ofereceu gomas e doces, prometeu passeios de mota e aliciou com supostos cartões especiais para um jogo online. Foi quanto bastou para N., de 50 anos, já condenado anteriormente e com pena de prisão cumprida por abuso sexual de crianças, enganar R., de 10 anos — e, alegadamente, fazer uma nova vítima na zona da Parede, em Cascais. Detido no sábado à noite, o suspeito acabaria, contudo, por sair em liberdade do Tribunal de Cascais na segunda-feira, deixando toda a zona da Parede em alarme.
O caso foi revelado pela Polícia Judiciária (PJ) na terça-feira, em comunicado, que destacou os “fortes indícios” da prática de abuso sexual de crianças. Havia a prova testemunhal da criança, perícias médicas, testemunhas oculares que tinham visto o suspeito com a vítima, suspeitas de que possam ter existido outras crianças abusadas e um cadastro pelo mesmo crime e com idêntico modus operandi.
Perante toda a prova recolhida, o Ministério Público (MP) pediu a prisão preventiva do suspeito, mas isso não foi suficiente para convencer o juiz de instrução, para “estupefação” de PJ e MP.
“O juiz disse que há indícios, que há provas e deu uma lição de moral ao arguido por este já ter estado preso pelo mesmo crime, mas considerou que, ainda assim, há outras medidas de coação que não a prisão preventiva… E o indivíduo é conhecido na zona por já ter estado preso por abuso de crianças. É o pânico e o alarme social naquele bairro”, conta ao Observador fonte ligada à investigação.
O pânico já não está apenas nas ruas onde o alegado agressor e a vítima vivem a pouco mais de 300 metros de distância; corre já pelos telemóveis dos habitantes daquela zona, com a fotografia do suspeito a circular em mensagens de aviso.
Do abuso na quinta-feira ao quase linchamento no sábado
A alegada vítima dos abusos mais recentes é um rapaz descrito pela família como sociável, muito responsável e inteligente. Filho de pais separados, foi em casa do pai, no último sábado, que não aguentou mais esconder o que tinha acontecido na quinta-feira da semana passada, na zona do Guincho. “Falou no nome desta pessoa e foi aí que se percebeu. Tinha uma conversa trancada no WhatsApp com aquele indivíduo, ou seja, não estava visível como as outras conversas”, conta ao Observador a mãe da vítima. Para aliciar o rapaz, acrescenta, o suspeito deu-lhe “tudo o que uma criança de 10 anos gosta”.
A mãe relata que, no dia seguinte aos supostos abusos, na sexta-feira, a criança insistiu e pediu os códigos para o jogo online. Como não foi ter com o alegado abusador, este ameaçou a criança. No sábado, já em pânico, acabou por “se desfazer” e contar tudo. “Como a mãe não dá nada para os jogos, ele foi aliciado e ficou completamente iludido”, lamenta, amargurada por também conhecer o arguido de vista e porque “já sabia que ele era pedófilo”, com vítimas anteriores daquela mesma zona.
O pai contactou logo a mãe e o padrasto nesse sábado. Ato contínuo, a mãe da criança foi à esquadra da PSP fazer queixa, enquanto o padrasto foi para a rua para tentar localizar o suspeito; não demorou muito a conseguir chegar à morada e percebeu que o prédio tinha duas saídas possíveis. Avisou a companheira para se encontrar com ele, a fim de controlarem as saídas e, por pouco, não fizeram justiça pelas próprias mãos.
“Ele estava na rua, tinha ido buscar comida, mas, assim que viu o padrasto do R. começou a gritar que o iam matar e fugiu para dentro de casa. A senhoria abriu-lhe a porta e foi a sorte dele”, assume a mãe da criança.
Seguiu-se uma espera de “cerca de 45 minutos” até a PSP aparecer. No local, mãe e padrasto cercavam a casa do suspeito para este não fugir, até que o viram finalmente sair algemado e sob escolta policial. Depois, a mãe voltaria à esquadra e acabaria uma longa noite de “pesadelo” já nas instalações da PJ, em Lisboa, acompanhada pelo ex-marido e pelo filho. Passava das três da madrugada quando terminaram os depoimentos e o rapaz já dormia, exausto, no colo da mãe.
A PJ recolheu toda a prova possível de imediato e tem ainda material informático apreendido para analisar, que pode vir a integrar os autos deste processo no futuro. Contudo, as autoridades alertam para um “risco sério” de que os desenvolvimentos do caso possam surgir demasiado tarde, tanto para a vítima (ou eventuais novas vítimas), como para a segurança do próprio arguido, na sequência da decisão do Juízo de Instrução Criminal de Cascais.
“Há mesmo alarme social. Há tipos que reagem de forma emotiva. Há o risco sério de o apanharem na rua e aquilo descambar para uma cena de violência que ponha em causa a vida do indivíduo. O pai diz que o mata se o vir”, referiu fonte ligada à investigação, sublinhando ser “difícil conter a revolta dos familiares”.
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Das medidas de coação insuficientes para impedir novos abusos
O Juízo de Instrução Criminal de Cascais aplicou na segunda-feira, segundo apurou o Observador, as seguintes medidas de coação ao suspeito:
- Termo de Identidade e Residência (TIR);
- Obrigação de não se aproximar e não frequentar nem permanecer junto à residência da vítima;
- Obrigação de não se aproximar e não frequentar nem permanecer junto ao estabelecimento de ensino frequentado pelo menor;
- Obrigação de não contactar por qualquer meio ou modo, através de contacto telefónico, Internet, pessoalmente ou por interposta pessoa, com o ofendido e seus familiares;
- Obrigação de se apresentar duas vezes por semana, às quartas e aos domingos, em horário à escolha, na esquadra mais próxima da área da sua residência;
Ficou prevista ainda a fiscalização destas medidas “através de meios eletrónicos de vigilância à distância”, para proteção da vítima. Todavia, fonte ligada à investigação enfatiza outros riscos de novos crimes, já que o agressor reside supostamente a poucos metros de uma escola primária e a cerca de 330 metros da vítima: “Mais do que o perigo de fuga, há o perigo de continuar a cometer a atividade criminosa.”
Por isso, foi dado um recado à família: em caso de contacto do arguido, avisar de imediato as autoridades. Tal pode levar mais rapidamente a uma revisão das medidas de coação, bem como um eventual incumprimento das apresentações periódicas na esquadra da PSP.
A mesma fonte realçou igualmente que este homem terá “disparado para vários lados” na Internet em busca de possíveis vítimas e que chegou a ser visto junto de outras crianças, criticando as limitações das medidas impostas pelo tribunal. “Se ele se aproximar de uma escola, quem é que vai denunciar? As escolas não vão ser notificadas da decisão e nem sabem quem é o indivíduo… é impossível a vigilância saber se essa medida de coação está a ser cumprida ou não”, resume.
O MP vai recorrer do despacho do tribunal de Cascais, embora, face ao período de férias judiciais em curso, seja plausível que esse recurso apenas seja admitido e distribuído na Relação de Lisboa em janeiro, remetendo um futuro acórdão somente para fevereiro, no melhor dos cenários. “Este indivíduo já abusou, voltou a abusar e, quando voltar a sair da prisão por este crime, irá voltar a abusar… É uma parafilia sexual em que ele não consegue parar”, alerta a fonte ligada à investigação.
Do choque com o abuso do filho à urgência para expor o caso
Quando o filho começou a contar o que lhe aconteceu, a mãe não aguentou ouvir até ao fim. “Fiquei em choque”, explica ao Observador, continuando: “Este indivíduo tem de ser detido.” Por agora, retirou o telemóvel ao filho para a sua própria proteção; depois, terá de passar a levar e a ir buscar a criança à escola; finalmente, equaciona colocá-lo sob acompanhamento psicológico. “Ainda não está a ser acompanhado, estamos a tentar protegê-lo, não falando muito no assunto. É um choque, um assunto muito sensível”, refere.
E, apesar da determinação em proteger o filho, a mãe indica estar também empenhada em expor publicamente este caso. “O meu filho foi visto no café com ele e com mais um menino da mesma idade. Tenho a certeza de que existem mais crianças que foram alvo deste indivíduo”, avisa, sem deixar de assinalar que este homem de 50 anos “faz rondas às escolas”.
No bairro, porém, já quase todos sabem de quem se trata: um homem condenado a uma pena de prisão de sete anos e que cumpriu apenas quatro anos e meio por abusos sexuais sobre duas crianças, também aliciadas inicialmente através da Internet.
Alguns vizinhos falaram desde sábado com a senhoria da casa onde o suspeito está a residir para tentar convencê-la a expulsá-lo da habitação. O suspeito terá explicado à idosa que o acolheu que tinha sido preso injustamente. Não terá contado o crime que o levou anteriormente à prisão e disse, alegadamente, que agora teria sido libertado por falta de provas.
Segundo a mãe da vítima, a expulsão do alegado agressor daquela casa terá acontecido esta quinta-feira. “Agora que ele não tem morada, a minha esperança é que o metam na prisão.”