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Daniel Sampaio, psiquiatra, é um dos membros da comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja Católica
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Daniel Sampaio, psiquiatra, é um dos membros da comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja Católica

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Daniel Sampaio, psiquiatra, é um dos membros da comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja Católica

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Abusos na Igreja. Comissão já encontrou indícios de encobrimento. Maioria dos casos já prescreveu e vítimas são predominantemente rapazes

Daniel Sampaio, psiquiatra e membro da comissão independente, diz ao Observador que consulta aos arquivos da Igreja será vital para a investigação. Vão contratar especialistas para esse trabalho.

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Ao fim de mais de um mês de trabalho, a comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal ao longo das últimas décadas já tem uma primeira noção do que poderá vir a ser o retrato desta realidade no país, quando publicar o seu relatório final em dezembro: a maior parte das vítimas são rapazes, a esmagadora maioria dos casos são muito antigos e já se encontram prescritos e há indícios de que a Igreja Católica se empenhou ativamente no encobrimento de vários dos casos que lhe foram denunciados no passado.

O balanço deste primeiro mês de trabalho foi feito em entrevista ao Observador pelo psiquiatra Daniel Sampaio, um dos seis elementos da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, organismo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht que entrou em funções em janeiro deste ano, na sequência da decisão da Conferência Episcopal Portuguesa, anunciada em novembro do ano passado, de chamar uma comissão independente para investigar o passado da crise dos abusos de menores na Igreja em Portugal.

[Ouça aqui as declarações de Daniel Sampaio ao Observador:]

Daniel Sampaio e os abusos na Igreja: a “esmagadora maioria” dos casos identificados pela comissão independente já prescreveu

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Na semana passada, quando se completou exatamente um mês desde a entrada em funções da comissão, o organismo anunciou em comunicado que no primeiro mês tinha recebido 214 denúncias. Um número que não tem parado de aumentar. “Tem sido um trabalho muito intenso, talvez mais intenso do que prevíamos no início, porque todos os dias chegam testemunhos ao telefone e por e-mail. O número da semana passada, 214, já foi excedido“, diz Daniel Sampaio ao Observador, embora recuse avançar um novo número, mais atualizado. “Nós não queremos entrar nessa contabilidade de mais um, menos um, mais uma semana. Mas posso dizer-lhe que já foi ultrapassado em cerca de mais duas dezenas.”

O membro da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais na Igreja Católica Portuguesa, Laborinho Lúcio (E), intervém na conferência de Imprensa, para apresentação pública da equipa e plano de trabalho, em Lisboa, 10 de janeiro de 2022. TIAGO PETINGA/LUSA

Daniel Sampaio é um dos membros da comissão, que entrou em funcionamento em janeiro deste ano

TIAGO PETINGA/LUSA

Daniel Sampaio explica que a comissão está a receber testemunhos por várias vias. “Em primeiro lugar, o atendimento telefónico, que é muito importante, e às vezes é muito demorado. Às vezes são telefonemas de uma hora, porque as pessoas têm necessidade de contar a sua história“, destaca. “Depois, temos os inquéritos. Os inquéritos são completamente anónimos. É sempre preciso frisar isso, porque às vezes há dúvidas. As pessoas preenchem-nos, há pessoas que falam ao telefone e depois preenchem o inquérito.”

Além disso, há “um pequeno número de pessoas que quer uma entrevista presencial” — um número que está a aumentar “nas últimas duas semanas”. “As entrevistas presenciais são feitas sempre por dois elementos da comissão, em que nós ouvimos as pessoas durante uma hora ou uma hora e meia, e procuramos perceber a sua história de vida, o sofrimento que tiveram, muitas vezes há décadas — e que se manteve durante a vida toda”, elabora o histórico psiquiatra português.

Explicador. Como vai funcionar a comissão independente para investigar os abusos sexuais na Igreja desde 1950?

A comissão tem ainda vindo a estabelecer contactos “com estruturas que lidam com crianças e jovens” e que poderão ter conhecimento de casos relevantes para a investigação histórica. “A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), o Instituto de Apoio à Criança, a Comissão Nacional de Proteção e Promoção dos Direitos de Crianças e Jovens em Risco. Vamos também falar com a Associação Quebrar o Silêncio. São tudo estruturas, associações que poderão ter, eventualmente, pessoas que foram vítimas também, e que se estão a articular connosco”, diz Daniel Sampaio.

Comissão já encontrou indícios de encobrimento por parte da Igreja

Nas primeiras semanas de trabalho, a comissão independente tem-se focado não apenas nas histórias individuais de cada vítima que contacta os profissionais mas, também, no modo como as autoridades da Igreja Católica lidaram com as denúncias que lhes chegaram nas últimas décadas. E, embora o trabalho ainda esteja longe de terminado, a comissão já encontrou indícios de que a hierarquia da Igreja Católica encobriu ativamente casos de abuso, nomeadamente através do esquema — clássico e conhecido de outros países — de fazer os padres abusadores passarem por várias paróquias para contornar os escândalos.

“Muitas vezes, o que acontece é que o abusador é mudado de sítio. Temos vários casos em que foi muito nítido que houve uma queixa, houve uma suspeita e depois o abusador é transferido para outro sítio. Perde-se o rasto“, diz Daniel Sampaio ao Observador, sublinhando que o acesso aos arquivos da Igreja será uma ferramenta crucial para descortinar estas práticas. “Espero que tenha ficado alguma coisa nos arquivos. Mas as pessoas, as vítimas, falam muito disso. ‘Estava lá e desapareceu’, ‘estava lá e foi para outro sítio’, ‘não sei onde ele está’, ‘estará vivo ou não estará vivo?’ Isto é qualquer coisa que as vítimas sentem. Houve muitas pessoas que fizeram queixa a pessoas da Igreja e que a Igreja não valorizou completamente essa queixa. Isto não será na maioria dos casos, mas seguramente em muitos casos passou-se.”

"Temos vários casos em que foi muito nítido que houve uma queixa, houve uma suspeita e depois o abusador é transferido para outro sítio. Perde-se o rasto. (...) Houve muitas pessoas que fizeram queixa a pessoas da Igreja e que a Igreja não valorizou completamente essa queixa. Isto não será na maioria dos casos, mas seguramente em muitos casos passou-se."
Daniel Sampaio, psiquiatra e membro da comissão independente

Questionado diretamente sobre se o trabalho da comissão já permitiu encontrar indícios de encobrimento, sobretudo nos casos mais antigos, Daniel Sampaio é peremptório: “Completamente.

“É uma situação que é muito difícil para a Igreja, é natural que a Igreja, durante muito tempo, não tenha atuado. Isso tem a ver com qualquer coisa que se passou nessa época. Espero que, recentemente, haja outras posições e possa haver uma ajuda mais rápida às vítimas. Nesse aspeto, as comissões diocesanas podem ter um papel importante“, diz o psiquiatra.

A comissão está, por isso, seriamente empenhada em levar a cabo uma meticulosa consulta dos arquivos eclesiásticos, um tema que dominou parte do debate sobre a eficácia desta comissão no início dos trabalhos e que, entretanto, se soube que vai mesmo avançar. “Queremos ir ver os arquivos das diversas dioceses, portanto, vai haver um contacto com os bispos“, diz Daniel Sampaio, salientando que a comissão funciona “de uma maneira absolutamente independente” e que não tem mantido qualquer contacto com a hierarquia católica — apesar de a comissão ter surgido de uma decisão da Conferência Episcopal e ser financiada pela Igreja.

“Temos acompanhado esta mudança que houve nas comissões diocesanas, com a criação de uma estrutura nacional das comissões diocesanas, com uma direção que é presidida pelo procurador Souto Moura. Temos acompanhado, mas não temos contactos diretos nem temos qualquer tipo de contacto conjunto com essas comissões. Isso também é preciso ficar muito claro. Nós funcionamos de uma forma independente e esperamos que as comissões diocesanas façam o seu trabalho“, diz Daniel Sampaio. “É importante que o façam também. Há pessoas que podem preferir fazer o seu testemunho numa comissão diocesana e não o fazer connosco. Pessoalmente — e isto é um ponto de vista pessoal —, acho que vai ser difícil as pessoas poderem fazer um testemunho a uma estrutura da Igreja, é melhor que o façam na comissão independente.”

Quanto ao processo de consulta dos arquivos diocesanos, o psiquiatra confirma que ainda não avançou, uma vez que implica ainda a definição de uma metodologia e a contratação de pessoas especializadas em pesquisa de arquivo.

“Nós temos de ter uma metodologia, não podemos aparecer no arquivo assim sem mais. Temos de ver, justamente, como é que vamos fazer essa pesquisa no arquivo e vamos ter de ter uma metodologia para a própria pesquisa. Estamos a pensar fazer e vamos ter de ter um contacto com os 21 bispos para podermos ter carta aberta para fazermos essa pesquisa“, explica Daniel Sampaio. “Vamos ter de contratar pessoas para fazer esse trabalho, pessoas especializadas em arquivo. Nenhum de nós tem uma competência técnica para o fazer. Vamos ter de pedir ajuda a pessoas para o fazer, ao nosso lado, com o nosso apoio. Mas têm de ser pessoas especializadas nesse tipo de pesquisa.”

“Esmagadora maioria” dos casos já prescreveu

Quando, em janeiro deste ano, a comissão liderada por Pedro Strecht anunciou o seu roteiro de trabalho, deixou um ponto bem claro: quaisquer casos que viessem a ser identificados na investigação e que ainda não estivessem fora do alcance da lei civil seriam, de imediato, remetidos para a Procuradoria-Geral da República (PGR), através de canais de contacto diretos entre a comissão — de que também faz parte o ex-ministro e juiz jubilado Laborinho Lúcio —, a PGR e a Polícia Judiciária. Um mês depois, e com mais de 200 casos identificados, a comissão ainda não enviou nenhuma situação para as autoridades civis. O motivo? A “esmagadora maioria” dos casos já prescreveu, diz Daniel Sampaio.

Daniel Sampaio é psiquiatra e fundou a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar em 1979

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

“Todos os casos são analisados um a um sob o ponto de vista da sua moldura penal, à luz do Código Penal, no sentido de verificar se estão suscetíveis de ter uma intervenção do Ministério Público ou não. É um membro da comissão, o juiz Laborinho Lúcio, que tem esse trabalho minucioso, de ver caso por caso”, explica Daniel Sampaio. “Neste momento, não enviámos ainda nenhum. Estamos em articulação com a Procuradoria-Geral da República para, assim que aparecer um caso não prescrito, ser enviado. Podemos dizer que há casos em que estamos no limite, estamos a analisar com mais pormenor, mas ainda não foi nenhum enviado.

Questionado pelo Observador sobre quantos casos estão em questão, Daniel Sampaio reitera que “a esmagadora maioria” dos casos está prescrita, porque “são casos muito antigos“. Aqueles sobre os quais ainda subsistem dúvidas são “muito menos de uma dezena”, disse o psiquiatra, sem precisar o número. “Como eu lhe disse, alguns casos que estão em análise são casos muito recentes, de pessoas mais novas, que estão em análise. Se houver, de facto, enquadramento legal, serão imediatamente enviados para o Ministério Público. Temos justamente esse canal completamente aberto e com contacto semanal”, diz.

As dúvidas prendem-se com a dificuldade que existe em definir a data exata dos crimes — o que, quando se trata de casos mais recentes, pode significar a diferença entre estar prescrito ou não. “Às vezes, é difícil precisar exatamente a data do abuso. Noutros casos, são abusos que foram continuados ao longo de algum tempo. Isso tem de ter um crivo muito rigoroso, que estamos a fazer“, explica o psiquiatra.

Vítimas “são mais frequentemente rapazes”

Questionado sobre se as mais de duas centenas de casos já permitem à comissão caracterizar o problema dos abusos de menores na Igreja em Portugal nas últimas décadas, Daniel Sampaio adverte que “é muito cedo para fazermos essa análise“, nomeadamente no que respeita à determinação do perfil médio das vítimas, dos abusadores e até das situações de abuso. “Poderíamos incorrer num erro, porque precisamos de mais casos, de um número mais robusto de casos para poder fazer esse tipo de correlações.”

Porém, há um dado que, para já, salta à vista e que vai na linha do que tem sido registado noutros países: as vítimas são predominantemente rapazes. “A única coisa que é muito evidente é que os abusados são mais frequentemente rapazes. Isso é uma constante que já podemos afirmar. Agora, outras características, é cedo para dizer. A bom tempo, faremos essa análise. Sensivelmente daqui a dois meses, em abril, já poderemos ter dados mais robustos”, diz Daniel Sampaio.

Quanto aos períodos históricos em que ocorreram os abusos, Daniel Sampaio esclarece que a comissão recebeu “casos de toda a época que cobre o estudo“, ou seja, desde 1950 até à atualidade. “Temos casos em todas épocas. Recentemente, não. Temos casos muito antigos e casos menos antigos. Como lhe disse, praticamente todos estão prescritos. Mas vamos analisar estes casos que apareceram na última semana, não temos ainda dados muito fiáveis sobre isso.”

“O mais impressionante não é o número. O mais impressionante são as histórias de vida”

Daniel Sampaio, conceituado psiquiatra português que em 1979 fundou a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar e se tornou num dos nomes maiores da saúde mental em Portugal, diz ainda ao Observador que a experiência de fazer parte da comissão independente tem sido “impressionante“, mas diz que está mais surpreendido com a dureza das histórias que ouviu do que com o número de casos relatados.

Comissão Independente recebeu 214 testemunhos de abusos sexuais na igreja no primeiro mês

“O mais impressionante não é o número. O mais impressionante são as histórias de vida. São histórias que eu classificaria como histórias de pesadelo. São pessoas que, durante décadas, tiveram situações de ansiedade e depressão causadas por uma situação traumática na sua infância ou no início da sua adolescência”, diz o psiquiatra. “Estamos a entrevistar pessoas de 40, 50, 60, 70 anos que toda a vida tiveram este problema. Tiveram imagens que lhes aparecem constantemente, pesadelos com esta situação, tiveram muitas vezes dúvidas sobre se deviam contar a alguém e na maior parte dos casos não contaram a ninguém — nem a familiares nem a técnicos de saúde que consultaram.”

“Foi qualquer coisa que foi vivida interiormente, com enorme sofrimento. Isso, para mim, foi muito surpreendente. Eu sou um psiquiatra com muita experiência. Encontrei ao longo da minha vida muitas situações de abuso sexual que os doentes me referiram, mas não tinha esta dimensão de tanta gente com este problema ao longo de tanto tempo”, termina Daniel Sampaio. “Isso, para mim, foi qualquer coisa que me toca muito e que me surpreendeu. Este sofrimento surpreendeu-me.

A comissão independente é coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht e dela fazem parte, além do psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, o juiz e ex-ministro Álvaro Laborinho Lúcio, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos. O grupo entrou em funções em janeiro deste ano e deverá apresentar um relatório final em dezembro.

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