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Na diocese da Guarda ocorreu um dos casos mais graves de abuso sexual de que há registo em Portugal: o caso do seminário do Fundão
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Na diocese da Guarda ocorreu um dos casos mais graves de abuso sexual de que há registo em Portugal: o caso do seminário do Fundão

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na diocese da Guarda ocorreu um dos casos mais graves de abuso sexual de que há registo em Portugal: o caso do seminário do Fundão

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Abusos na Igreja, uma crise com dois mil anos. Pré-publicação de "Roma, temos um problema"

Novo livro "Roma, temos um problema" percorre os dois mil anos de história da Igreja e do Cristianismo para contar como a crise dos abusos se desenrolou ao longo dos séculos, no mundo e em Portugal.

A crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica — que voltou recentemente às páginas dos jornais na sequência do explosivo relatório francês que levou o Papa Francisco e a hierarquia eclesiástica de França a expressarem vergonha pelas mais de 200 mil crianças que se estima terem sido molestadas por cerca de 3 mil padres ao longo dos últimos 70 anos naquele país — está longe de ser um problema recente.

O escândalo que a Igreja atravessa atualmente eclodiu na década de 1980, quando os primeiros casos ganharam notoriedade mediática nos Estados Unidos; intensificou-se entre a década de 1990 e o início dos anos 2000 (sobretudo com o caso Spotlight, mais tarde retratado no cinema); e levou a Igreja Católica a um ponto de rutura em 2018, com uma sucessão de crises em poucos meses: o relatório da Pensilvânia, o caso do cardeal McCarrick e a polémica visita de Francisco ao Chile.

Contudo, as raízes do problema são bem mais antigas do que as últimas quatro décadas. A crise dos abusos sexuais de menores pode ser identificada em praticamente toda a história da Igreja Católica e do Cristianismo, desde o século I, como mostra o livro Roma, Temos Um Problema — Como a Igreja Católica lidou com dois mil anos de abusos sexuais, da autoria do jornalista do Observador João Francisco Gomes, publicado este mês pela Tinta-da-china, e que chega às livrarias nesta quinta-feira.

O livro, que inclui entrevistas a várias figuras do topo da hierarquia católica responsáveis pelo combate aos abusos em Portugal e a nível global, percorre toda a história do Cristianismo e da Igreja Católica, identificando os momentos, os documentos e os episódios que mostram como o abuso sexual de menores foi um problema detalhadamente identificado, combatido e ocultado no interior da estrutura eclesiástica ao longo de séculos. A obra debruça-se também sobre o escândalo contemporâneo, ligando os pontos que levaram a Igreja à rutura desde os primeiros casos públicos nos EUA até à cimeira de fevereiro de 2019 no Vaticano — e oferece uma perspetiva sobre a realidade da crise dos abusos cometidos pelo clero em Portugal, até agora marcada pelo silêncio da hierarquia eclesiástica e pela recusa da Igreja portuguesa em seguir os passos das estruturas de outros países e em investigar o próprio passado.

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Aliás, uma grande parte do que é hoje conhecido sobre a crise dos abusos na Igreja em Portugal só se sabe porque foi publicado pelos meios de comunicação social, incluindo o Observador, e não porque a instituição tenha aberto os seus arquivos a investigadores independentes.

O Observador faz aqui a pré-publicação de um excerto do primeiro capítulo, que aborda o problema dos abusos de menores nos primeiros séculos do Cristianismo.

«Não mates; não cometas adultério; não corrompas os jovens»

As leis do primeiro milénio

«Não mates; não cometas adultério; não corrompas os jovens; não forniques; não roubes; não pratiques a magia nem a feitiçaria.» Não tinham ainda passado três décadas sobre a morte de Jesus Cristo quando surgiu, num rudimentar catecismo da Igreja, o primeiro alerta para a gravidade de abusar sexualmente de um menor: «Não corrompas os jovens.»

Muitos outros avisos se seguiriam durante os primeiros séculos do cristianismo.

O primeiro milénio da era cristã foi marcado por um processo tortuoso de expansão e afirmação da nova fé. Primeiro, na clandestinidade, em pequenas comunidades dispersas e organizadas em torno dos apóstolos de Jesus e dos seus sucessores, compostas maioritariamente por judeus e pagãos que se tinham convertido. Depois, como religião oficial do Império Romano. Finalmente, como doutrina fundamental do continente europeu. O papado, estabelecido em Roma pelo apóstolo Pedro, foi ganhando uma influência crescente, mas demorou alguns séculos até alcançar o poder que lhe conhecemos na Idade Média.

Durante esse primeiro milénio, várias gerações de cristãos — incluindo muitas figuras hoje veneradas como santos pela Igreja — foram preparando as bases da doutrina e das leis eclesiásticas atuais. Esses escritos, sobretudo os de caráter normativo ou legislativo, são hoje um documento valioso que nos permite entender como viviam as primeiras sociedades cristãs, como se organizavam, o que as preocupava, o que consideravam bom e mau, o que condenavam e o que admiravam.

Logo nos primeiros séculos, por se tratar de um período fundamental para a afirmação do cristianismo, os líderes cristãos procuraram aplicar uma doutrina rigorosa entre os seguidores. Os fiéis de Cristo tinham de ser um exemplo moral, quando comparados com os judeus e os pagãos. Certos comportamentos eram, por isso, inaceitáveis, já que podiam pôr em causa os esforços de implementação da nova religião. Grande parte das proibições relacionava‑se com a atividade sexual: tudo era mau, exceto o sexo estritamente necessário para a procriação.

O prazer desviava de Deus.

Por esse motivo, os membros do clero — que nem sempre foram formalmente celibatários, ainda que tenham sido desde cedo encorajados a afastar-se do sexo — constituíam uma elite, que poderia passar toda a vida sem se entregar às obscenidades sexuais.

Em cada momento da história, os comportamentos inaceitáveis que as leis condenam são os comportamentos inaceitáveis que as autoridades contemporâneas identificam e procuram castigar. No caso do cristianismo primitivo, uma dessas práticas era o abuso sexual de menores.

Claro que, na prática, isto não era bem assim. Os cristãos, e em especial os membros do clero, revelaram desde cedo uma propensão para violar sistematicamente as rígidas normas da moral sexual implementada pela Igreja. Prova disso são os múltiplos manuais, leis, normas e decretos escritos pelos líderes cristãos do primeiro milénio, que têm em comum o facto de se dedicarem longamente às questões do sexo, listando proibições e condenações para todo o tipo de comportamentos intoleráveis. Como bem notaram Thomas P. Doyle, Richard Sipe e Patrick J. Wall, no livro de 2006 em que lançaram as bases para o estudo dos abusos sexuais na Igreja ao longo da história, «as leis nunca são aprovadas no vazio», já que, como se compreende, «os legisladores têm suficientes ameaças à sociedade na vida real com que se preocupar para não precisarem de desperdiçar tempo com assuntos imaginários».

Em cada momento da história, os comportamentos inaceitáveis que as leis condenam são os comportamentos inaceitáveis que as autoridades contemporâneas identificam e procuram castigar. No caso do cristianismo primitivo, uma dessas práticas era o abuso sexual de menores: nos escritos cristãos dos primeiros séculos, encontramos várias condenações explícitas do envolvimento sexual dos adultos com crianças e adolescentes, crime punido com as penas mais graves, a par de pecados como o adultério, a fornicação e a sodomia.

É preciso notar que só em meados do século XII surgiu na Igreja o Corpus Iuris Canonici, a primeira tentativa de compilação e harmonização da lei eclesiástica produzida, de forma dispersa, nos séculos anteriores. Antes disso, as regras da doutrina cristã haviam sido escritas por diferentes líderes religiosos em vários pontos da Europa, Ásia e Norte de África, através de decretos individuais assinados por bispos e papas, bem como de sínodos e concílios, tanto regionais como globais. Uma viagem por alguns desses escritos ancestrais do cristianismo permite-nos concluir que, desde o início da sua história, a hierarquia da Igreja reconheceu que o abuso de menores existia, era grave e devia ser punido de forma severa.

«Não corromperás meninos»

Recuemos ao ano 60. Jesus Cristo morrera pouco tempo antes, alguns apóstolos ainda eram vivos e em torno deles começavam a organizar-se, por todo o Médio Oriente, as primeiras comunidades cristãs, dando corpo à Igreja primitiva. São Paulo ainda escrevia as célebres cartas que viriam a constituir textos centrais da cristandade e São Pedro era o papa. Em suma, decorriam ainda os acontecimentos fundacionais da Igreja Católica.

É naquele ano que o académico dominicano Jean-Paul Audet situa a produção da Didaqué, um dos textos mais antigos do cristianismo.

Como escreveu o historiador da Igreja britânico Kirsopp Lake, a Didaqué «é uma das descobertas mais importantes da segunda metade do século XIX». Trata‑se de um dos poucos documentos que permitem hoje reconstituir o que se passou entre os acontecimentos relatados na Bíblia e o início da religião cristã, no período posterior ao dos apóstolos.

Ainda assim, durante quase dois mil anos o texto permaneceu desconhecido.

Foi só em 1873 que Filoteu Bryennios, que viria a ser o metropolita ortodoxo de Nicomédia (antiga cidade otomana situada no lugar da atual cidade turca de Izmit), o identificou entre um conjunto de manuscritos ancestrais, datados de 1056, que descobriu durante as suas investigações enquanto professor em Constantinopla. Bryennios foi o responsável pela primeira edição do documento, ainda em Constantinopla, em 1883. Quatro anos mais tarde, o documento foi levado para Jerusalém, cidade onde ainda se encontra, arquivado na Biblioteca Patriarcal.

A Didaqué — palavra grega que significa «ensinamento» ou «doutrina» — é, de facto, um dos documentos mais relevantes dos primórdios do cristianismo. De autor anónimo (provavelmente um judeu convertido à nova religião ainda pelos primeiros apóstolos), o texto surgiu numa das primeiras comunidades cristãs — crê‑se que na Síria ou na Palestina — como manual religioso destinado a ensinar aos recém‑convertidos os preceitos da nova fé. Muitos historiadores consideram‑no, por isso, o documento mais próximo de uma versão rudimentar do catecismo.

É neste manual que encontramos a primeira condenação explícita, no contexto do cristianismo, do abuso sexual de menores.

Pope Francis Leads Mass For The Synod Of Bishops Opening

O escândalo em França pôs o tema dos abusos novamente na agenda e levou o Papa Francisco a admitir a vergonha da Igreja

Vatican Pool/Getty Images

A Didaqué é composta por duas partes: na primeira, são explicados os valores e os princípios que deviam guiar a vida dos cristãos; na segunda, surgem com grande detalhe os procedimentos a adotar durante os ritos cristãos, incluindo o batismo. Logo na fase embrionária do cristianismo, começavam a cristalizar‑se tanto os preceitos morais como as normas litúrgicas da Igreja — e sabemo‑lo hoje graças a este manuscrito.

Os 16 curtos capítulos do manual focam-se muito mais nas questões da moral e do comportamento do que na teologia. Num livro publicado em 2012, o teólogo e historiador americano James L. Papandrea sugere uma explicação. «As primeiras catequeses cristãs não se preocupavam tanto com o ensino da teologia como com o ensino da moral. Uma vez que as expectativas éticas da Igreja eram, frequentemente, mais estritas do que as expectativas culturais, um convertido precisava de saber, antes da iniciação, como se comportar como um cristão», escreveu, lembrando que na época se acreditava que o efeito do batismo podia ser desfeito pelo pecado. «A Igreja não se podia dar ao luxo de ter os seus membros a prejudicar os esforços de evangelização com a sua conduta embaraçosa.»

Este último ponto era fundamental. Nos primeiros anos, o cristianismo precisava de se afirmar entre os judeus e os pagãos — e não podia correr o risco de ver esse processo frustrado pela associação entre os cristãos e os pecados que a sociedade da época considerava mais tenebrosos. Entre os crimes com maior potencial para manchar irremediavelmente a imagem de um cristianismo em afirmação encontravam-se, com grande destaque, os pecados da carne: as primeiras linhas da Didaqué incluem múltiplas referências a pecados relacionados com a moral sexual, entre os quais o adultério e a sodomia.

Como sempre acontece nestes casos, há algumas diferenças entre as várias traduções do texto — cujo original foi escrito em grego antigo —, mas o cruzamento de fontes distintas permite‑nos concluir que, a par da homossexualidade, havia já no primeiro século uma condenação explícita do envolvimento sexual com os mais jovens e uma noção clara da gravidade do abuso de menores.

A tradução portuguesa, publicada em 2013 pela editora católica Paulus, deixa pouca margem para dúvidas. A condenação do abuso de menores surge entre o aviso contra o adultério e a censura do sexo fora do casamento. «Não mates; não cometas adultério; não corrompas os jovens; não forniques; não roubes; não pratiques a magia nem a feitiçaria», lê‑se no ponto 2 do segundo capítulo da Didaqué.

Outras traduções ajudam a compreender melhor aquele ponto do manual. A tradução francesa de Willy Rordorf e André Tuilier, publicada em 1978, apresenta uma versão ligeiramente diferente: «Não matarás, não cometerás adultério e evitarás a pederastia, a fornicação, o roubo, a magia e a feitiçaria.» Ali é usada a palavra «pederastia», que descreve o relacionamento homossexual entre um homem e um adolescente. Várias outras versões, incluindo a tradução inglesa dos académicos escoceses Alexander Roberts e James Donaldson (uma das primeiras, ainda no século XIX), recorrem à palavra «pederastia» para interpretar aquele excerto.

Também no século XIX, o teólogo inglês Joseph Barber Lightfoot traduziu aquele excerto de outra forma: «Não corromperás meninos.» Já a tradução citada em 1985 por Michel Foucault é ainda mais explícita: «Não deverás seduzir jovens rapazes.»

As várias traduções deste documento ancestral, contemporâneo dos apóstolos e testemunhal de um cristianismo embrionário, apontam todas no mesmo sentido: a consciência da gravidade do abuso de menores verifica-se entre os pastores católicos desde os primórdios da Igreja. No primeiro século, o envolvimento sexual com crianças já era considerado um grande escândalo — ao ponto de a sua condenação explícita surgir entre os primeiros parágrafos do mais antigo catecismo cristão.

Papa manifesta “profunda tristeza” pelos abusos sexuais de menores pela Igreja Católica francesa

A preocupação com a gravidade do envolvimento sexual com os menores era de tal forma acentuada entre as primeiras gerações de cristãos que aquela mesma referência voltou a aparecer, algumas décadas mais tarde, noutro escrito ancestral: a epístola de Barnabé, um texto catequético e doutrinal da primeira metade do século II.

Embora a designação «epístola de Barnabé» se mantenha até aos dias de hoje, devido à primeira atribuição da autoria do texto àquele colaborador próximo de São Paulo (que é mencionado na Bíblia e considerado um dos primeiros cristãos), os historiadores já descartaram a possibilidade de ter sido ele o autor do documento. Calcula-se que a epístola tenha sido redigida em Alexandria por um primeiro catequista — ou instrutor — de uma comunidade cristã em formação. «Trata‑se de um compêndio rudimentar de teologia dogmática e moral» e inclui uma cópia quase exata dos primeiros parágrafos da Didaqué.

«Não pratiques a prostituição, nem o adultério, nem a pederastia», lê‑se na segunda parte do texto, num segmento que propõe 41 mandamentos necessários para andar «no caminho da luz», de acordo com a tradução em língua portuguesa publicada em 1995. Há, hoje, algumas dúvidas entre os historiadores sobre se a epístola de Barnabé se baseou diretamente na Didaqué ou se ambos os documentos foram buscar inspiração a uma fonte comum mais antiga. O certo é que esta condenação expressa do envolvimento sexual com menores surge em ambos os documentos, datados dos dois primeiros séculos do cristianismo — e cuja autenticidade é validada pela própria Igreja Católica.

«Não deverão receber a comunhão, nem mesmo no fim»

Nos primeiros séculos da era cristã, a organização interna da Igreja não assentava na hierarquia claramente definida que hoje conhecemos, com a autoridade suprema do papa sobre os católicos de todo o mundo. Pelo contrário: durante o primeiro milénio, havia uma grande dificuldade em harmonizar leis e regulamentos, a legislação eclesiástica fundia-se com a do Império Romano (que, por decisão do imperador tino, adotou o cristianismo como religião oficial a partir do século IV) e a falta de comunicação global fez com que as comunidades cristãs se desenvolvessem com diferenças assinaláveis entre si.

Depois da morte de Jesus Cristo, os seus seguidores — os apóstolos e os seus sucessores — viajaram a partir do Médio Oriente em direções muito distintas: uns para a Europa, outros para a Ásia, outros ainda para o Norte de África. Foram esses apóstolos que começaram a pregar aos judeus e aos pagãos e a dar início às primeiras comunidades cristãs. É verdade que o apóstolo Pedro já se tinha estabelecido como bispo de Roma e primeiro papa, mas a capacidade de exercer uma jurisdição universal era ainda muito limitada. Por isso, grande parte das decisões era tomada localmente.

Só no ano 325 é que o imperador Constantino convocou o Concílio de Niceia — o primeiro concílio ecuménico da história da Igreja, no lugar onde hoje fica a cidade turca de Iznik —, no qual participaram vários líderes do mundo cristão, com o propósito de tentar harmonizar as divisões que começavam a surgir por toda a cristandade. Antes daquela primeira reunião magna, as decisões sobre a doutrina e a prática cristã haviam ficado apenas a cargo de concílios e sínodos regionais — reuniões mais pequenas, somente com os bispos de uma determinada região, para decidir sobre a vida da Igreja naquele território.

Um dos concílios mais relevantes dessa época ocorreu na primeira década do século IV na Península Ibérica. Embora o ano exato seja ainda assunto de discussão, a maioria dos historiadores situa este importante sínodo entre os anos 304 e 309 na cidade de Elvira — que, crê-se, corresponde à atual cidade espanhola de Granada ou, pelo menos, a uma localidade nas suas imediações. O importante bispo espanhol Ósio, de Córdoba, que foi conselheiro do imperador Constantino e esteve depois presente no Concílio de Niceia, foi uma das figuras de proa da reunião ibérica, onde o abuso sexual de menores foi categoricamente denunciado como crime grave.

Na altura, a península fazia parte do Império Romano, que a batizara como Hispânia. A província estava dividida em três territórios: a Lusitânia (que incluía grande parte do que é hoje Portugal), a Bética (correspondente à atual Andaluzia) e a Terraconense (a maior parte do norte e do leste da península). Estas divisões territoriais romanas serviam também para a organização interna da Igreja e os registos históricos permitem-nos hoje ter uma ideia de quem participou naquele concílio: no mínimo, 14 delegados episcopais da Bética, quatro da Lusitânia e um da Terraconense.

Terão marcado presença pelo menos dois representantes de cidades que hoje são portuguesas: Quinciano, bispo de Elbora (Évora), e Vicente, bispo de Ossónoba (Faro).

O Concílio de Elvira ficou particularmente conhecido na história da Igreja por ter sido a primeira vez que a obrigatoriedade do celibato dos padres foi determinada por escrito. Até então, era comum que os presbíteros fossem casados, mas só no século XII, com os concílios de Latrão, é que o celibato se tornaria formalmente obrigatório na Igreja Católica ao nível global.

Contudo, aquela reunião ibérica significou muito mais do que isso. Vários temas da sexualidade humana e, em específico, dos membros do clero estiveram no centro da discussão, incluindo o casamento, a virgindade e a fidelidade. O produto final do sínodo foi um conjunto de 81 cânones que permitem perceber, de um modo muito claro, quais eram as maiores preocupações dos bispos do século IV.

A moral sexual era o assunto fundamental, mas havia, além disso, uma noção clara de que os membros do clero tinham responsabilidades acrescidas — e de que os seus crimes sexuais eram particularmente graves.

O cânone 18 reconhece-o ao determinar que os bispos, os presbíteros e os diáconos (os três graus da ordem sacerdotal) em funções ficam proibidos de receber a comunhão, inclusivamente às portas da morte, se forem condenados por crimes sexuais, devido ao escândalo particularmente grave provocado por este tipo de crime. Mais à frente, no cânone 27, o concílio determina que um clérigo não pode coabitar com uma mulher de quem não seja familiar (apenas uma irmã ou uma filha virgem consagrada podiam partilhar casa com um sacerdote).

Outra norma aprovada no concílio estabelece o celibato obrigatório (o que leva a crer que a norma anterior, relativa às filhas, se aplica apenas aos padres que já tinham descendência). «Os bispos, presbíteros e diáconos e todos os outros clérigos que tenham um lugar no ministério devem abster-se completamente das suas mulheres e não gerar filhos: de facto, quem o fizer será expulso da dignidade clerical», diz o cânone 33, o mais famoso do concílio.

«Homens que abusem sexualmente de meninos não deverão receber a comunhão, nem mesmo no fim»

Por fim, o cânone 71 deixa claro aquilo que já era evidente desde a Didaqué e a epístola de Barnabé: entre os crimes sexuais mais graves identificados pelas autoridades da Igreja logo nos primeiros séculos, encontrava‑se o abuso de menores. «Homens que abusem sexualmente de meninos não deverão receber a comunhão, nem mesmo no fim», diz a norma. Outra tradução do documento final do Concílio de Elvira (cujo original foi redigido em latim) faz uma interpretação ligeiramente diferente daquela frase: «Pederastas ou sodomitas já não poderão ser admitidos à comunhão, nem no leito de morte.»

É interessante notar a pena escolhida para estes crimes mais graves: a proibição de comungar, mesmo na hora da morte.

Para a Igreja Católica, a comunhão na hora da morte (ou «viático») é um rito com «um significado e uma importância particulares», uma vez que representa a confirmação de que o moribundo está pronto a morrer em paz e a abraçar a salvação prometida pela Igreja. «A nossa morte é o fim último, mas, em contacto com o Viático, deixa de ser a meta final para se converter de túmulo em berço, um autêntico nascimento», disse em 2005 o cardeal mexicano Javier Lozano Barragán, então presidente do Conselho Pontifício da Pastoral da Saúde, um organismo do Vaticano para os assuntos da saúde.

A consciência da importância vital que a última comunhão tem para os fiéis cristãos já era evidente no século IV, o que reforça a dureza da pena. No Concílio de Niceia, realizado 20 anos depois da reunião ibérica, ficou clara a posição da Igreja sobre o assunto. «Acerca dos que estão para sair deste mundo, guardar‑se‑á também agora a antiga lei canónica, a saber: que se alguém vai sair deste mundo, não seja privado do último e mais necessário viático», lê‑se no cânone 13 do primeiro concílio ecuménico da história da Igreja.

Pode parecer uma punição ligeira para um olhar leigo e atual, mas, vista à luz da doutrina cristã, a escolha demonstra a gravidade do crime em questão. Trata‑se de um castigo com um poderoso simbolismo para os crentes: a privação da salvação. Mais do que à morte terrena, os abusadores sexuais eram condenados à morte eterna.

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