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Academia prometeu, mas não cumpriu: Nobel da Literatura continua europeu e branco

Depois da polémica, uma nova polémica. O Nobel da Literatura esteve parado para restabelecer a sua credibilidade e criar uma maior transparência mas, passado um ano, tudo parece mais ou menos igual.

Depois de um escândalo tão grave que o presidente da Fundação Nobel declarou que se tinha perdido toda a credibilidade, seria de esperar que a Academia Sueca tomasse uma decisão com pouca margem para contestações. Não foi isso que aconteceu. Ainda que o nome da polaca Olga Tokarczuk — forte crítica do conservadorismo do seu país e dos movimentos de extrema-direita que o assombram e autora de obras que se debruçam sobre temas como a migração e as transições culturais — constasse há muito nas listas de favoritos, o anúncio do polémico austríaco Peter Handke faz pairar uma sombra sobre uma edição que deveria ter sido imaculada.

Parecia ser essa a intenção dos seus responsáveis. Desde que se ficou a conhecer o escândalo sexual envolvendo o dramaturgo francês Jean-Claude Arnauld, marido de uma ex-membro da Academia e dono de um clube literário parcialmente financiado por esta, muito se tem falado numa mudança urgente e necessária dentro da Academia Sueca, um organismo conservador, fechado e que, até há bem pouco tempo, tinha membros que ocupavam lugares vitalícios. No último ano, foram vários os dirigentes da Fundação Nobel, que financia a entrega dos prémios, a apontarem problemas dentro do organismo e muitos os críticos a pedirem uma maior transparência, abertura e diversidade de laureados, menos homens e menos europeus. Tudo apontava para que assim seria mas, apesar dos apelos, não foi este o ano em que o Nobel quebrou a tradição. Pelo contrário — manteve-se fechado sobre si mesmo e voltado para a Europa branca que preenche a sua história.

Prémio Nobel da Literatura atribuído a Olga Tokarczuk e Peter Handke

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Poucas vezes, nos seus mais de 100 anos de existência, o Prémio Nobel da Literatura atravessou fronteiras para abraçar diferentes etnias, culturas e línguas. Dos 116 laureados desde a criação do galardão em 1901, apenas 21 eram originários de países não europeus, o que corresponde a uma percentagem de sensivelmente 22%. A variedade de línguas é ainda menor, com o inglês a ganhar com largo avanço — 32 dos autores premiados escreviam em inglês, ainda que três deles, o indiano Rabindranath Tagore, o irlandês Samuel Beckett e o norte-americano Joseph Brodsky recorressem também a outras línguas. Olhando para os premiados desta quinta-feira, este é o sexto Nobel para a Polónia e o segundo para a Áustria, mas o 14.º a ser entregue a um autor de língua alemã. Olga Tokrczuk tornou-se na 15.ª mulher a receber o galardão, mas trata-se mais uma vez de uma escritora  branca nascida num país europeu. Do pequeno grupo de laureadas, apenas uma, Toni Morrison, era negra.

Há 110 anos, Selma Lagerlöf tornou-se na primeira mulher a receber o Prémio Nobel da Literatura

Tokrczuk é, ainda assim, o nome mais consensual do anúncio desta quinta-feira. As razões são várias. A escritora, com carreira feita e reconhecida no seu país de origem, já ganhou duas vezes o prémio literário mais importante na Polónia, o Nike. Respeitada internacionalmente, “é adorada por todos menos pela extrema-direita polaca”, como apontou Fiammetta Rocco, administradora do Booker Internacional Prize, ao jornal The Guardian. Ativista política e feminista, Tokrczuk tem mantido uma postura de forte oposição ao movimento de extrema-direita, cada vez mais expressivo no seu país, e ao atual partido no poder, o Lei e Justiça, denunciando a sua deriva nacionalista e xenófoba. Numa entrevista que deu depois de ter recebido um dos Nike, disse que, apesar de a Polónia ter sobrevivido a uma longa história de opressão, também cometeu “atos horrorosos” de colonização. Por essa razão, foi apelidada pelos nacionalistas de “targowiczanin”, uma expressão que quer dizer “traidor”, e a sua editora teve de contratar guarda-costas para a proteger.

Olga Tokarczuk recebeu o prémio relativo a 2018

dpa/picture alliance via Getty I

Fora da Polónia, a autora conquistou a atenção da crítica depois de o seu romance de 2007, o muito elogiado Viagens, ter recebido após a sua tradução para o inglês o importante prémio de tradução Man Booker Prize International. Isso aconteceu em 2018, o ano em que, curiosamente, lhe foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura. O que levanta inevitavelmente uma questão: teria Olga Tokrczuk ganho o Nobel se não tivesse ganhado o Booker? Como em tudo o que diz respeito ao galardão (uma espécie de “charada”, como lhe chamaram os críticos do The New York Times), é difícil encontrar a resposta certa. O que é possível deduzir das edições anteriores é que a Academia Sueca não costuma interessar-se por modas, preferindo seguir um critério que apenas os seus membros parecem compreender. E essa é uma das razões pelas quais, apesar de a escritora polaca ter sido sido apontada nas últimas semanas como uma das favoritas, a sua nomeação é surpreendente — esta deve ter sido uma das poucas vezes em que as listas de apostas estavam certas.

Há ainda outra questão. O galardão é geralmente encarado como uma espécie de “prémio carreira”. Não é por acaso que a média de idades dos laureados ronda os 67 anos. Doris Lessing tinha 88 anos quando foi galardoada, numa altura em que já tinha recebido “todos os prémios europeus”, como a própria admitiu. Aos 57 anos, Olga Tokarczuk está (ao que tudo indica) longe de ver a sua carreira terminada. Diogo Madredeus apontou isso mesmo à rádio Observador. Dizendo-se surpreso com a distinção,  o editor da Cavalo de Ferro, que publicou em Portugal o livro Viagens, admitiu que, no entanto, tivera “alguma esperança” que o Nobel fosse para a polaca, mas que não considerou isso previsível “porque a autora é ainda muito jovem”. Com um ritmo de publicação regular desde o final dos anos 80 e um último livro editado em 2018, a escritora voltou, este ano, a ser nomeada para o Man Booker Prize Internacional com o romance Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos. Mas há ainda muito por traduzir, uma vez que muitas das suas obras estão apenas disponíveis em polaco — incluindo algumas das que foram referidas esta quinta-feira pelo Comité do Nobel.

Num momento como este, em que o perigo do extremismo anda sempre à espreita, e depois das promessas feitas pela Fundação Nobel, é difícil colocar os percursos individuais dos dois escritores de lado e olhar simplesmente para a literatura, sobretudo quando a vida de Handke está repleta de momentos pouco gloriosos.

Peter Handke é um caso diferente. Com uma carreira literária de mais de 50 anos e uma longa lista de obras publicadas e de distinções, o austríaco deveria ser um óbvio candidato, não fosse o facto de ser uma personagem altamente controversa. A embaixadora do Kosovo nos Estados Unidos da América, Vlora Çitaku, classificou a atribuição do Nobel da Literatura ao escritor como “absurda e vergonhosa” e acusou o austríaco de ter “glorificado Milosevic” e de ter “apoiado o seu regime genocida”. Não foi a única. Um dos episódios mais famosos e controversos da vida do autor é o da sua participação no funeral do ex-presidente da Sérvia e da antiga Jugoslávia, em 2006. Handke sempre negou ser defensor do regime de Slobodan Milosevic, mas isso não impediu de ser associado a ele.

Na já longa carreira literária e artística de Peter Handke, diversa em estilos e géneros, não faltam, aliás, momentos controversos e opiniões obscuras, quase sempre recebidas com uma enxurrada de duras críticas, da parte de simples anónimos mas também de personalidades reconhecidas no mundo das artes, como Salman Rushdie, e até mesmo de manifestações, como a que aconteceu em Oslo, Noruega, em 2014, quando o autor austríaco foi galardoado com o International Ibsen Award, que premeia anualmente um indivíduo, uma instituição ou uma organização que tenha contribuído com “novas dimensões artísticas” para o mundo do teatro. O drama é um dos géneros em que Handke tem sido mais prolífico desde a sua estreia literária, nos anos 60, e uma das razões da sua fama internacional.

Quando colocadas lado a lado, as duas escolhas da Academia Sueca para 2018 e 2019 parecem fazer pouco sentido. Para as compreender, Fiammetta Rocco defende que é preciso olhar para elas em conjunto. “Eles têm obviamente estilos de escrita muito diferentes, mas ambos escrevem sobre terras contestadas, sobre quem é dono da memória e sobre a necessidade humana de contar histórias”, disse ao The Guardian. Mas a verdade é que, num momento como este, em que o perigo do extremismo anda sempre à espreita, e depois das promessas feitas pela Fundação Nobel, é difícil colocar os percursos individuais dos dois escritores de lado e olhar simplesmente para a literatura, sobretudo quando a vida de Handke está repleta de momentos pouco gloriosos.

Handke e Milosevic

Peter Handke foi sempre controverso. A entrada em cena no meio literário aconteceu em 1966 (ano em que conheceu um dos seus colaboradores mais próximos ao longo das décadas seguintes, o realizador Wim Wenders), logo com uma declaração de intenções pública em que arrasava os escritores alemães da sua época. As posições provocadoras e beligerantes evidenciaram-se também no campo artístico, com peças de teatro em que desafia diretamente os espectadores. Foi, contudo, pela sua posição fora do campo das artes, no âmbito cívico e político, que criou uma onda de indignação esta quinta-feira, sobretudo nas redes sociais.

Peter Handke fotografado em Paris, depois do anúncio do Nobel

AFP via Getty Images

A simpatia com que Handke via o regime jugoslavo sempre foi indisfarçável e a sua conivência com a ação autocrática e violenta de Slobodan Milosevic suficiente para que o antigo acusado de crimes de guerra lhe pedisse para depor em seu favor durante o julgamento no Tribunal Criminal Internacional da antiga Jugoslávia. O escritor recusou, mas assistiu às sessões judiciais como espectador, inspirando-se para escrever um livro publicado originalmente com o título Die Tablas von Daimiel.

Numa entrevista, chegou a dizer: “Não tenho opinião sobre Milosevic. Nenhuma. Não consigo considerá-lo bom ou mau. Não quero compará-lo a Hitler ou Ceausescu ou Saddam Hussein, considero isso errado. Falar do Milosevic como o grande vilão das guerras nos Balcãs é uma simplificação excessiva”. Numa outra, ao The New York Times, considerou Milosevic “um ser humano trágico” que “não era um herói”, mas acrescentou logo: “Sou um escritor e não um juiz. E sou um apaixonado pela Jugoslávia — não tanto pela Sérvia, mas pela Jugoslávia”.

Sobre as sessões de julgamento do antigo político jugoslavo — que numa entrevista chegou a ter reticências em chamar sequer “autocrata”, destacando antes a sua dificuldade em “controlar o grupo de vigaristas que tinha à sua volta” —, considerou que houve erros graves motivados por enviesamento dos juízes e sugeriu que o julgamento devia ter acontecido na Sérvia. Mais tarde, quando Milosevic morreu, Peter Handke foi ao seu funeral e troçou da perspetiva do mundo sobre o antigo político. “O mundo sabe tudo sobre a Jugoslávia e sobre a Sérvia. Sabe tudo sobre Slobodan Milosevic. (…) Olho, sinto, tenho memória. Por isso, estou aqui hoje — perto da Jugoslávia, perto da Sérvia”, disse.

Em 1999, Salman Rushdie escreveu que o austríaco “deixou atónitos até os seus admiradores mais fervorosos pela sua série de defesas apaixonadas do regime genocida de Slobodan Milosevic” e que este parecia quase sugerir “que os muçulmanos em Saravejo se massacravam regularmente a si próprios e depois culpavam os sérvios”

Pela sua pretensa afinidade com o antigo presidente da Jugoslávia e da Sérvia, Slobodan Milosevic, acusado de ter liderado um regime sanguinário e julgado nos tribunais por crimes de guerra (a sentença não chegou antes da sua morte), Peter Handke, que é filho de uma mulher que pertencia a uma minoria étnica eslava, transformou-se com o passar do tempo num espécie de proscrito. A qualquer tentativa de homenagem, seguem-se inevitavelmente manifestações de descontentamento e acusação de que é um “negacionista de genocídios” e um “fascista”. Foram exatamente estas as palavras usadas pelos sobreviventes da guerra na Bósnia e no Kosovo que se manifestaram em Oslo no seguimento da atribuição do prémio Ibsen ao escritor austríaco, em 2014.

No mundo das letras, as críticas também não têm sido leves. Na revista The American Scholar, Michael McDonald descreveu o austríaco como alguém que é, em simultâneo, o “mais forte e mais inventivo escritor a aparecer na literatura alemã desde Günter Grass” e “um dos mais proeminentes defensores do ditador sérvio Slobodan Miloseviv”. Para sustentar esta afirmação, recolheu declarações de Handke sobre o político jugoslavo e lembrou a sua posição crítica em relação aos bombardeamentos da NATO que acabaram com o conflito no Kosovo. Em 1999, Salman Rushdie escreveu que o austríaco “deixou atónitos até os seus admiradores mais fervorosos pela sua série de defesas apaixonadas do regime genocida de Slobodan Milosevic” e que este parecia quase sugerir “que os muçulmanos em Saravejo se massacravam regularmente a si próprios e depois culpavam os sérvios”.

Handke parece ter consciência da má fama que o persegue. Há 13 anos, em entrevista ao jornal The New York Times, revelou que não acreditava na hipótese de alguma vez vir a ser distinguido pela Academia Sueca. Confessando que “quando era mais novo” se importava com a hipótese de vencer, acrescentou: “Agora, acho que [esse capítulo] está fechado para mim, depois da forma como me exprimi acerca da Jugoslávia”.

Talvez ainda mais descrente com a hipótese de ser premiado, oito anos depois, em 2014, arrasava o prestígio do prémio, dizendo que deveria ser abolido porque servia apenas para criar atenção momentânea e mediática sobre um autor e patrocinar uma “falsa canonização” da obra. Já para a promoção da leitura e à reflexão literária, contribuía pouco, entendia então. Esta quinta-feira, quando lhe disseram que tinha recebido o Prémio Nobel da Literatura, perguntou: “É mesmo verdade?”. É fácil acreditar que a surpresa era genuína.

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