Nove moradores do Vale de Mulatas, uma zona situada no concelho de Setúbal, queixaram-se de problemas gastrointestinais depois de beberem água da torneira imprópria para consumo. Tudo aconteceu depois de uma rutura na rede de água potável ter coincidido com o aparecimento de uma fissura numa conduta de esgotos, o que levou a fugas de líquidos sujos do esgoto para a canalização comum.
Na semana passada, foram vários os moradores a queixarem-se de que a água saía da torneira turva e com um cheiro “nauseabundo”, “a esgoto”. Depois de diversas queixas, as entidades competentes garantem que desde esta segunda-feira a água já está própria para consumo. Mas ao Observador os moradores criticam a falta de informação transmitida nesse período e a forma como a situação foi gerida.
“Não quero que surjam dúvidas de que a água que temos nas torneiras é segura. Mas o que nos parece é que não há plano de contingência nestas situações ou, se há, alguma coisa falhou”, diz ao Observador uma moradora, que pediu para não ser identificada. A mesma descreve que os residentes do Vale de Mulatas pouca informação receberam, à exceção de quatro mensagens breves e respostas vagas dos técnicos que se deslocaram para resolver o problema.
Outra moradora, de 80 anos, conta como ficou doente após o consumo de água. “Acidentes acontecem. Agora, há os que são cuidadosos e querem resolver a situação e os que não ligam e querem empurrar com a barriga“, diz, descrevendo que ficou “num estado deplorável” e teve de ser assistida no hospital.
Ao Observador os Serviços Municipalizados de Setúbal (SMS) — entidade gestora do abastecimento de água naquela zona — garantem que todos os moradores foram contactados logo que o problema foi detetado e que foram feitos todos os possíveis para resolver a situação o mais rapidamente possível. Já a Câmara Municipal de Palmela, que tem um protocolo para o fornecimento de água na rede em alta ao Município de Setúbal, que abrange o Vale de Mulatas, garante também que o problema “foi prontamente identificado e resolvido”.
Água das torneiras veio “turva e com cheiro a esgoto”
O caso aconteceu numa zona de moradias, onze no total, situadas em Setúbal, muito perto da fronteira com Palmela. Tudo começou com a tal rutura na conduta de abastecimento local. Mas sobre a data há discórdia. Os moradores garantem que aconteceu na quarta-feira, 31 de julho. Já o município de Palmela diz que foi no dia seguinte.
“Na quinta-feira passada, dia 1 de agosto, verificou-se uma rutura numa conduta de abastecimento nessa zona, com intervenção de reparação por parte do Município de Palmela”, começa por explicar a autarquia, esta semana, numa resposta escrita ao Observador. “No decorrer da reparação, verificou-se que o coletor de águas residuais existente próximo da conduta de água possuía uma fissura, o que originou derrame da água residual“, acrescenta.
Ao Observador, a moradora de 80 anos, que também pediu anonimato, diz que na quarta-feira passaram o dia praticamente sem água. “Notei que só tínhamos um fiozinho de água. Como acontece muitas vezes, fica pouca água a correr. Foi o dia todo assim”, descreve. À noite, acrescenta, já havia água, mas vinha “barrenta”. “Já aconteceu haver uma rutura e, depois de reparada, a água, por estar parada nos canos, vir com alguma cor. Portanto, aceitámos aquilo como sendo natural. Fizemos a nossa vida normal e utilizámos a água para aquilo que precisávamos“, diz.
Outra residente do Vale de Mulatas diz que se apercebeu de um técnico a trabalhar junto a um ponto de abastecimento de água nessa quarta-feira, quando estava a chegar a casa, por volta das 17h. O homem fazia descargas de água no local e, ao perguntar-lhe o que se passava, recebeu apenas por resposta a informação de que a água já tinha sido reposta e que “estava tudo certo”. “Nesse dia ainda consumimos água normalmente, nós e os nossos vizinhos. Mas na manhã seguinte quando fomos usar as torneiras a água vinha turva, com cheiro a esgoto e percebemos, claro, que não podíamos continuar a consumi-la”, relata a mulher.
“Depois de ter havido uma descarga deveria ter havido análises e um comunicado nesse dia às pessoas de que haveria risco de contaminação. E isso só começou 24 horas depois, quando já tinha havido consumos, quando já tínhamos tomado consciência do problema. Ou seja, fomos nós que avisámos os serviços de que a água não estava em condições e não o contrário“, denuncia.
O vídeo acima foi filmado já na quinta-feira, cerca de uma hora após a abertura da boca de incêndio para que a água corresse. Segundo os moradores, o estado da água manteve-se com esse aspeto durante mais uma hora e, decorrida outra hora mais, a água ainda continuava turva e com odor.
As queixas de falta de informação e os avisos para se passar a consumir água engarrafada
Depois de na manhã de quinta-feira alguns moradores se aperceberem de que a água estava turva e com mau cheiro, informação que foi circulando num grupo de mensagens entre os residentes, pelo menos um contactou por telefone os Serviços Municipalizados de Setúbal e o município de Palmela para saber o que se passava.
Perante a ausência de respostas e, sobretudo, de uma solução para o problema, o morador decidiu enviar uma queixa por email às câmaras municipais de Setúbal e Palmela, à Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) e à Direção-Geral da Saúde (DGS). “[Os serviços municipalizados] não souberam informar sobre os procedimentos adequados, nem conseguiram garantir que iria obter qualquer tipo de contacto com esclarecimentos”, lamentava, no email a que o Observador teve acesso. Apesar disso, não obteve qualquer resposta das autarquias.
No email, datado de dia 2 de agosto, descrevia-se que uma rutura ocorrida no dia 31 de julho tinha provocado “a entrada de uma quantidade considerável de águas negras de esgoto na canalização de águas públicas”, expressando-se um “profundo descontentamento e preocupação com a forma como foi gerida a situação de contaminação da rede de fornecimento de água pública”.
O morador referia também que, durante a tarde do dia 1, técnicos estiveram a realizar purgas pela boca de incêndio a montante das residências afetadas — visíveis no vídeo acima. “Perguntei sobre os riscos para a saúde e a segurança dos trabalhos, mas não obtive respostas concretas”, acrescentava. À tarde um engenheiro no local garantiu-lhe que, quando a água fosse restabelecida, cada casa deveria realizar uma purga até deixar de cheirar a esgoto e que a água estaria segura assim que os níveis de cloro e pH fossem normais.
Nessa quinta-feira, apenas um dia após o restabelecimento da água, os moradores receberam três mensagens dos Serviços Municipalizados de Setúbal sobre o consumo de água. A primeira só chegou pelas 18h41, “depois de várias pessoas terem já consumido a água contaminada pela manhã, inclusivamente eu, a minha esposa e os nossos filhos de 6 e 3 anos”, referia a mesma queixa.
Na primeira dessas três mensagens dos serviços municipalizados, a que o Observador teve acesso, lia-se: “Estimado cliente, por se ter verificado um risco de contaminação da água para consumo humano, recomendamos que, após a ligação da água, efetue uma descarga de água em cada torneira da sua casa, durante 5 minutos.”
Uma hora depois chegavam outras duas mensagens de texto seguidas. “Recomendamos ainda a utilização de água da rede pública para todos os usos que não o consumo humano. Para consumo humano recomenda-se o uso de água engarrafada”, dizia a primeira. A segunda acrescentava que isso deveria ser feito até às 24h desta quarta-feira, “momento a partir do qual, e não existindo indicação em contrário, se recomenda a utilização da água de rede pública para todos os usos”. “Só recebemos mensagens muito vagas e já tardias tendo em conta os problemas”, queixa-se uma moradora, acrescentando que nunca foram informados do tipo de contaminação que estava em causa.
“Todos os residentes com contrato ativo e número de telemóvel registado na nossa base de dados foram contactados por mensagem, logo que o problema foi detetado. Isto é, durante a fase de limpeza da rede de abastecimento e antes da reposição do abastecimento”, garantiram ao Observador os SMS, quando questionados sobre o porquê de a comunicação ter sido tardia. Dois residentes sem telemóvel registado foram contactados por telefone fixo e a informação deixada também na caixa de correio, acrescentou fonte oficial.
As medidas tomadas após a rutura e os problemas gastrointestinais
Confrontados com esta situação por email, os Serviços Municipalizados de Setúbal confirmaram que tiveram conhecimento de problemas com a qualidade da água por relato de moradores no dia 1, “tendo-se decidido de imediato fechar o ponto de abastecimento”. Os SMS reportaram o caso à Autoridade Regional de Saúde (ARS) e informaram também a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos.
Acrescentam ainda ter recebido uma queixa através do call center e outra via Câmara Municipal de Palmela, após a qual foi enviada uma equipa técnica para o local. “Os técnicos no local foram contactados por vários residentes, logo no primeiro dia e posteriormente nas deslocações seguintes. A equipa técnica dos SMS acompanhou a situação e prestou esclarecimentos aos moradores afetados”, referem.
Questionados sobre quantas pessoas ficaram doentes após o consumo de água, os SMS responderam que nos contactos com os residentes foram informados de “nove pessoas com problemas gastrointestinais”. Não é certo que todos se tenham deslocado ao hospital, que foi o caso da moradora de 80 anos ouvida pelo Observador, mas não do marido, de 76, apesar de também ele ter tido sintomas associados a uma gastroenterite, alguns dos quais ainda perduram.
A moradora decidiu deslocar-se ao Hospital da Luz, em Lisboa, queixando-se de que vários serviços de urgência estavam a “funcionar a meio gás” em Setúbal. Tinha passado os últimos dias a sentir-se doente e a dormir mal, com dores de cabeça e diarreia, enjoos e falta de forças. O diagnóstico foi gastroenterite, que na maioria das vezes é provocada pela ingestão de alimentos ou água contaminados por bactérias (Salmonella, Shigella, Campylobacter, E. coli, entre outras) ou vírus (Rotavirus, Norvovirus, Adenovirus, entre outros).
Questionada também sobre o assunto, a Autoridade de Saúde Local da Unidade de Saúde Pública (USP) da Arrábida, Polo de Setúbal, assume ter sido contactada pelos SMS logo no dia 1, pelas 18h, mas que “não foram recebidas notificações no Sistema de Vigilância Epidemiológica de Doenças de Notificação Obrigatória”. A Autoridade de Saúde disse ainda ao Observador ter contactado o serviço de urgência do hospital de referência, que indicou não ter registos de utentes da zona afetada com queixas gastrointestinais.
“Aquando da visita técnica ao local realizada pela equipa da USP, no dia 6 de agosto, foi contactada a população servida pelo sistema, que informou da existência de algumas situações autolimitadas de diarreia sem complicações”, refere, acrescentando que mantém a vigilância.
Autoridades garantem que qualidade foi reposta: “Todos os parâmetros estão dentro dos valores regulamentares”
Contactado também por email, o Gabinete de Apoio à Presidência de Palmela explicou ao Observador que depois de se detetar a fissura que originou o derrame da água residual “os serviços municipais alargaram, de imediato, o seccionamento da zona e informaram os Serviços Municipalizados de Setúbal”.
Questionada sobre as substâncias detetadas após a rutura e que tornaram a água imprópria para consumo, a mesma fonte disse apenas que “os parâmetros que foram detetados, de imediato, como impróprios foram a coloração e o cheiro, o que levou à rápida intervenção dos serviços”. Lamentando o incidente, indicou ainda que se procedeu à descarga das redes e à desinfeção, bem como à realização de análises à água.
Os moradores queixam-se de que começaram por ser feitas “purgas aleatórias” em algumas casas e que não houve qualquer menção ao tipo de contaminação que podia estar em causa. Uma residente diz mesmo que só esta quarta-feira, dia em que se previa que a situação ficasse resolvida, se deslocaram à sua casa pela primeira vez. “Só na quarta, depois de o meu marido ter insistido no dia anterior, foram a mais casas, cerca de 50%, fazer mais análises”, diz, criticando o facto de os resultados não serem disponibilizados.
A USP refere que logo no dia 1, pelas 20h30, recebeu resultados do controlo operacional referentes a alguns locais e que apresentavam valores de concentração de cloro residual “que garantia a barreira sanitária”. No dia 2 de agosto foram colhidas novas amostras de água, cujos resultados foram recebidos a 6 de agosto: “Evidenciaram a qualidade microbiológica da água, e considerou-se a água própria para o consumo humano, pelo que a Autoridade de Saúde Local levantou a restrição.”
“Todos os parâmetros [estão] dentro dos valores regulamentares”, confirma também o município de Palmela. Os SMS acrescentam que os moradores foram “prontamente informados” da normalização da situação. Uma última mensagem enviada esta quarta-feira para os moradores, pelas 16h, dizia isso mesmo.
Apesar de as análises serem uma prova de que a situação está aparentemente resolvida, a moradora de 80 anos ainda não se sente confortável para voltar a usar a água para consumo e por agora tem evitado usá-la. A outra moradora ouvida pelo Observador não tem problemas em fazê-lo, mas critica a atuação das autoridades: “Quero acreditar que não é normal ter uma conduta de esgoto que contamina uma conduta de água de abastecimento normal, mas tem de haver um plano de contingência, que não funcionou”.