O realizador catalão Albert Serra não está preocupado com convenções, juízos, sensibilidades ou noções de politicamente correto. No festival de San Sebastián deste ano, de onde saiu com a Concha de Ouro por Tardes de Solidão, coprodução com Portugal através da Rosa Filmes de Joaquim Sapinho e da RTP, passeou-se como um filho rebelde que regressava a casa. Óculos escuros e barba mal aparada davam o sinal de que faz pouco caso dos protestantes que se aglomeraram contra o documentário que ali apresentou.
Duro, gráfico, sem pedir licença, em Tardes de Solidão Serra traz-nos um olhar que admite estar dividido, “não sei se é beleza ou violência” — é, acima de tudo, “um filme, apenas um filme”. Isto porque a narrativa acontece enquanto acompanhamos a relação entre um touro e um matador em Espanha — antes, durante e depois daquilo que se passa na arena. Sobre as críticas — e sobre a hipótese de um realizador ter de se posicionar na vida pública sobre qualquer que seja o tema — Albert Serra só tem uma resposta: “Não tenho de me posicionar, as imagens é que têm de falar, quero que a câmara revele, com inocência, cenas que não consigo ver com os meus olhos”.
Em Tardes de Solidão não se esconde nada, nem a morte do próprio touro. O filme passa no próximo domingo, dia 24 de novembro, às 21h45 no Festival Porto Post Doc (que começa na sexta-feira, 22), apesar de ainda não ter marcada a estreia no circuito comercial português ou confirmada uma distribuição por cá via plataformas de streaming ou clubes de vídeo. Quanto ao financiamento do serviço público português, a RTP reagiu ao protesto da plataforma Basta de Touradas, que fez um pedido de esclarecimento à estação, alegando que “a Provedora do Telespectador da RTP referiu na Assembleia da República que as linhas estratégicas do conselho independente falam no bem-estar animal, assegurando que o canal não pode ir contra esta questão ‘quase institucional’ com a transmissão de touradas”. O presidente do conselho de Administração, Nicolau Santos, respondeu: “Não há qualquer incumprimento legal (que será sempre o limite a considerar). Existe apenas uma eventual questão de apreciação subjetiva, que é discutível, mas que não deve condicionar a emissão de conteúdos de qualidade”, revelou. Sobre a transmissão de touradas na RTP1, esta terminou em 2021, ao abrigo do novo contracto de concessão.
[o trailer de “Tardes de Solidão”:]
É também sobre estes questionamentos e protestos que o realizador se posiciona, dizendo que não tem de o fazer: “As imagens é que falam, o realizador não tem de se impor, não tem de se posicionar. Nos meus filmes, não falo com atores, não me interessa. Não tenho nada para lhes dizer. Quero que a câmara revele com inocência as cenas que o meus olhos não veem. Quero que revelem algo novo.” É assim que Albert Serra começa a conversa com o Observador no hotel Maria Cristina em San Sebastián. Autor de filmes como Pacification (2022) e História da Minha Morte (2013). Filmou 14 corridas de touros durante três anos. Foram cerca de 700 horas de rodagem para um projeto que nasceu de um convite da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. Albert Serra disse-lhes, depois de ter sido desafiado para fazer um documentário, que não tinha “nada de interessante para filmar”. “Vou falar do meu problema com a minha casa? São problemas tontos de burgueses. Até que me ocorreu o tema das touradas, que deixa toda a gente louca”, disse.
Em Espanha, a tauromaquia é considerada património cultural desde 2013, ainda que já tenha sido proibida em algumas regiões (proibição essa que também já foi levada a tribunal em diferentes ocasiões e revertida em casos como o da Catalunha). O número de touradas tem vindo a diminuir, fruto também do impacto da pandemia de Covid-19. As vozes contra vão falando cada vez mais alto. E este ano não foi entregue o prémio nacional de tauromaquia (decisão tomada com a vontade que se transforme em definitiva). Arte ou entretenimento sangrento? Para Albert Serra, essa não é questão.
Foi por isso que procurou olhar de perto para a legião de devotos que anda atrás de Andrés Roca Rey, provavelmente o matador mais popular em Espanha na atualidade — onde o touro morre na arena e Roca Rey é “um ídolo de massas”, como o apresenta a respetiva página oficial. O matador mostra-se em Tarde de Solidão quase como uma figura divina entre discípulos, gente que o venera por toda a parte, dentro e fora da arena.
“Há muita gente que admira o Andrés, muitos dos que estão à volta dele são matadores frustrados que nunca conseguiram ser grandes, não foram capazes de chegar ao nível dele. Estão sempre a dizer que o Andrés é o melhor, há algo de profundamente humano neste fanatismo. É quase como um amor entre pai e filho. Muita ternura, mas também muita sexualidade latente. É como se fossem todos marinheiros do mesmo barco”, refere. Neste filme, o risco de vida do toureiro conjugado com o endeusamento no final de cada corrida, muitas vezes manchado a sangue e suor, desagua sempre no mesmo momento final, num plano apertado, dentro do automóvel oficial de Andrés e da sua equipa.
Albert Serra nunca quis entrevistar o matador. Quis observá-lo, nada mais. A vestir-se. A rezar. A existir antes e depois de enfrentar o touro. Estiveram os dois juntos apenas uma vez de forma mais próxima. Sempre que foi questionado durante o festival de San Sebastián sobre o facto de estar a romantizar um espectáculo tão polémico como as touradas, o realizador quase que encolhia os ombros. “Não tenho ideias sobre nada, quis manter a inocência durante o processo de busca com a câmara, sem interferir, nada mesmo”, afirmou. E se muitos têm revelado algum choque com Tardes de Solidão pelas imagens reveladas, Serra admitiu ter imposto um limite ao que queria mostrar. “Esta versão final é a mais leve, tenho imagens com sangue e não só que não coloquei. E, sim, resolvi manter a morte do touro. A vida escapa-lhe, abandona-o, essa cena recorda-nos do ciclo da vida. É duro e é poético, porque o touro não sabe que vai morrer”, argumentou.
Um grupo de militantes do partido animalista espanhol, o PACMA, surgiu em protesto durante o festival de San Sebastián. Mas sobre críticas ou eventuais polémicas, o realizador catalão destaca o facto de os toureiros não terem apoiado a decisão de integrar no filme a morte do touro. “Seria má publicidade”, garante. “Acharam que seria um argumento a favor dos que estão contra, mas sem esta morte, o que seria o filme? Não teria a mesma força. Não teria a mesma verdade”, disse.
O som desempenha um papel fundamental no filme: as respirações do touro, os gritos do matador para atrair o animal, os lamentos e as frases de apoio dos mais próximos de Roca Rey. Albert Serra usa até explicações tecnológicas para mostrar como aqui chegou: “Há uns anos usavam-se pilhas nos transmissores, agora não, é tudo wireless. Podes estar cinco horas a gravar todos os diálogos. Tinha técnicos a captar o touro e depois microfones no matador”, conta. Nunca vemos os espectadores, são irrelevantes para a história — ou melhor, não são irrelevantes, mas é mais relevante o ambiente que geram, a tensão e a admiração que atiram para a arena, do que as caras que a rodeiam. Não há entrevistas e os comportamentos de quem vemos giram mais ou menos em volta de um eixo comum: ansiedade, gritos, confrontos.
Tal como já fez na rodagem de ficções (História da Minha Morte, A Morte de Luís XIV ou Pacifiction), Albert Serra voltou a trabalhar com uma equipa pequena, ainda que numa produção que lhe exigiu mais tempo do que tem sido habitual. Muita corrida filmada e uma pandemia pelo meio não alteraram o método de produção: “Usei duas de três câmaras para irem atrás do que quisessem e para terem autonomia em busca da realidade”. É nesse registo intimista, entre o grotesco e o fraterno, que cabe este filme.
Foi Albert Serra à procura de embelezar a violência? Foi à procura do escândalo, de lançar mais achas na fogueira de um velho conflito cultural e social? Para um cineasta como o catalão, pouco dado a regras ou opiniões, a resposta nem importa. Sobretudo depois de vencer um prémio num dos festivais mais políticos da Europa. “Não digo que não estou a romantizar. Qualquer filme é um ato de romantização. Mas se tens o desejo de romantizar, romantiza.” E assim segue e continuará a seguir.