“Continuar a marchar.” O lema é simples. Num país estilhaçado pela guerra, a população ucraniana depende exclusivamente da ferrovia para se deslocar, uma vez que o espaço aéreo para fins comerciais continua fechado desde fevereiro. E não é só: os comboios permitem transportar ajuda humanitária, mantimentos e armamento, que são essenciais para resistir a uma invasão, da mesma forma que foi de comboio que líderes e figuras mundiais como Boris Johnson, Ursula von der Leyen e até António Guterres. Em entrevista ao Observador desde paradeiro desconhecido (que não pôde ser revelado por motivos de segurança), Alexander Kamyshin, diretor executivo da Ukrzaliznytsia — a empresa que gere os caminhos de ferro da Ucrânia —, assume que os últimos meses têm sido um “grande desafio”, mas reforça o país tem mesmo de “continuar a marchar”. E resistir.
Apesar das dificuldades em gerir a ferrovia de um país invadido, Alexander Kamyshin garante que a empresa “nunca quebrou” nem “nunca se afastou da sua responsabilidade”. “Temos um papel muito importante nesta guerra”, diz, descrevendo que os caminhos de ferro funcionam como “um segundo exército”. “Transporta-se milhares de pessoas a bordo, fez-se um programa de evacuação nas primeiras horas da invasão”, elencou como principais conquistas da empresa desde 24 de fevereiro, acrescentando que a população ucraniana também tem consciência da relevância que esta estrutura significa para o país.
Para desempenhar esta tarefa de contornos hercúleos, é necessário um nível de organização elevado que acaba por se espelhar no dia-a-dia do diretor executivo da Ukrzaliznytsia. Normalmente, acorda cedo — se não tiver despertado de madrugada com o som de alguma “explosão” provocada pelos constantes bombardeamentos russos. Depois, há uma espécie de briefing, que lhe é passado pelos seus auxiliares, para estar informado sobre o que aconteceu durante as primeiras horas do dia. “Põem-me a par se há perigos no trânsito”, conta ao Observador.
Se houver uma situação urgente, Alexander Kamyshin poderá ter de se deslocar a algum local para avaliar os danos que, por exemplo, uma “explosão pode originar” nalgum troço dos caminhos de ferro ucranianos — num país com cerca de 24 mil quilómetros de ferrovia, a 13ª maior do mundo. A intervenção do responsável por esta infraestrutura colossal tem de ser “rápida” para que não haja impedimentos que possam criar constrangimentos em toda a ferrovia: “Temos de ver que partes estão bloqueadas e desbloqueá-las”, exemplifica, salientando que, se esse processo não for realizado rapidamente, isso pode impedir a retirada de civis em caso de um ataque surpresa, ou quebrar uma determinada rota do transporte de mercadorias, mantimentos e até equipamentos militares essenciais para o sucesso do conflito.
A manhã de um dia de trabalho de Alexander Kamyshin é, por isso, dedicada a resolver problemas. À tarde, as principais tarefas passam por “falar com outras empresas” e dedicar algum tempo a reuniões de acompanhamento de uma situação extretamente volátil e imprevisível. “Mesmo durante uma guerra, há que fazer negócios”, assinala, ainda que refira que, durante um conflito, manter estes serviços operacionais é um “desafio a dobrar”.
“A espinha dorsal” da Ucrânia e as perspetivas europeias
Além de serem quase um “segundo exército” — pelo papel fundamental que exercem no contexto atual —, Alexander Kamyshin utiliza outra expressão para descrever a importância da ferrovia: ela é, diz “a espinha dorsal” da segurança da Ucrânia. “Transportamos ajuda humanitária, transportamos mercadorias, algo que é bom para a economia. Quanto mais exportações fizermos, mais ajuda financeira recebemos.”
É fácil compreender porque é que, pelo papel que desempenha, a ferrovia seja, muitas vezes, alvo dos ataques da Rússia, que tenta bloquear o transporte de mercadorias e de armamento para outras partes da Ucrânia. Porém, Alexander Kamyshin rejeita que os ataques contra os caminhos de ferro sejam meramente “estratégicos” — um argumento utilizado pelo Kremlin para justificar essas ações. “Não percebo porque é que [os russos] dizem isso”, desabafa, vincando que não existe nenhum motivo, a não ser a pura destruição. “Os russos bombardeiam escolas, hospitais e casas. Tudo o que bombardeiam é estratégico? Acredito que não.”
O diretor executivo da ferrovia ucraniana enfatiza que, atualmente, uma das prioridades é “restaurar as conexões com países vizinhos”, tais como a Roménia, a Polónia ou a Moldávia. Sobre este último país, Alexander Kamyshin indica que foi recentemente reaberta a linha ferroviária que ligava a capital moldava, Chișinău, à ucraniana, Kiev, suspensa desde 1998. “Temos um programa preparado para aumentar as deslocações com os nossos vizinhos”, afirma o responsável, frisando a “oportunidade” atual para apostar na ferrovia, uma vez que “os aeroportos estão fechados”.
Esta decisão de se ligar à Europa pode ter benefícios para as populações dos países do leste europeu, mas marcam igualmente uma aproximação à União Europeia. A ferrovia é, não opinião do diretor executivo, uma prova de que Kiev se quer alinhar com o Ocidente. “A Ucrânia tem tomado estas decisões também com o objetivo de estar mais próxima da Europa. Pagámos muito por esta decisão — a guerra foi em parte por causa disso. A Rússia não quer que nós pertençamos à União Europeia.”
“O único caminho da Ucrânia é para a União Europeia”, reforça Alexander Kamyshin, afirmando que existe um plano para os próximos anos para “conectar” as infraestruturas ucranianas às europeias. “Nos próximos anos, focar-nos-emos nisso”, assegura.
O Twitter: a rede social em que o diretor executivo partilha o dia-a-dia
“Passei cinco das últimas sete noites num comboio. A melhor maneira para verificar o nível de serviço no terreno.” Na segunda-feira, às 5h54 da manhã (menos duas horas em Lisboa), Alexander Kamyshin partilhava um pouco do seu atarefado quotidiano. Tem sido assim desde 30 de março, data em que criou uma conta pessoal do Twitter para informar o mundo sobre como é o seu dia-a-dia. No feed da sua conta pessoal são partilhadas informações que vão desde visitas ao terreno que vai realizando regularmente até aos atrasos na ferrovia.
Last week I spent 5 nights out of 7 on a train. Best way to check your service level on the ground.
— Alexander Kamyshin (@AKamyshin) November 7, 2022
A 10 de outubro, Alexander Kamyshin partilhou uma mensagem em que alertava os passageiros para o facto de que, às 21h, havia “42 comboios atrasados”, 14 dos quais com um atraso no máximo de uma hora. “Peço desculpa pela inconveniência. Fazemos o nosso melhor para circular no horário previsto, mas haverá atrasos durante mais um pouco”, escreveu no twitter. Esse foi também o dia em que a Ucrânia voltou a ser arrasada por “ataques massivos com armas de alta precisão dirigidos a alvos do setor energético, militar e comunicações” — palavras do próprio Vladimir Putin —, como retaliação pelo ataque ucraniano contra a ponte de Kerch, que liga a Rússia à Crimeia. A preocupação do responsável dos caminhos de ferro ucranianos mantinha-se, ainda assim, inabalável: garantir o melhor serviço possível em nome do sucesso da guerra contra Moscovo.
As of 21.00 we have 42 trains delaying:
⁃14 trains >1hr, max = 6:40
⁃2 trains 30-60min
⁃26 trains <30minI feel sorry for inconvenience. We do our best to get back on schedule, but will be still delaying for a while.
— Alexander Kamyshin (@AKamyshin) October 10, 2022
Adicionalmente, ao longo dos meses, embora rejeite que sejam alvos estratégicos, Alexander Kamyshin foi partilhando as consequências e os danos dos ataques da Rússia. “Os russos continuam a bombardear as infraestruturas e os caminhos de ferro ucranianos. Continuamos a reparar e vamos avançando. Às vezes, temos casos sofisticados, como uma bomba que acabou por não explodir [e que ficou] presa nos carris”, detalhava no Twitter, a 5 de abril, o diretor executivo da Ukrzaliznytsia. No dia seguinte, uma publicação idêntica: “Outra explosão no leste da Ucrânia. Vamos continuar a reparar e a progredir até ao final.”
Another shelling of the #railwaystation in the east. This #RussiaUkraineWar is totally destroying our railway infrastructure. #StandWithUkraine pic.twitter.com/2GKwZSNOss
— Alexander Kamyshin (@AKamyshin) April 2, 2022
As obras dos caminhos de ferro também são partilhadas no Twitter. Feitas praticamente em tempo recorde, Alexander Kamyshin partilhava a 15 de abril, por exemplo, que uma ponte tinha sido reparada “em apenas sete dias”. “A conexão ferroviária acelera o regresso da cidade à vida normal e ao trabalho”, destacou, aludindo à retirada das tropas russas do oblast de Chernihiv.
This railway bridge was restored in only 7 days. Had to work fast to send first train to #Chernihiv today. UZ Infra team is doing magic. pic.twitter.com/IuAt9ugc7B
— Alexander Kamyshin (@AKamyshin) April 15, 2022
“A equipa da Ukrzaliznytsia está a fazer magia”, sinalizava Alexander Kamyshin. Ainda sobre Chernihiv, o diretor geral da empresa informava que, “nos três primeiros dias” da reconquista de abril da linha férrea daquela localidade para o restante território ucraniano, “havia 100% de ocupação”. Por isso, a entidade pública ia “colocar maiores comboios na rota durante o final [daquela] semana”.
Ao Observador, o diretor executivo da Ukrzaliznytsia conta que estas partilhas são o reflexo de um princípio de transparência que defende para a empresa que dirige. E também transparecem o que diz serem “valores europeus”. “Isto prova que estamos abertos mentalmente, aliás, estamos a provar isso desde o início da guerra. Transportamos os valores europeus”, como a integridade e a transparência. “Não existe nenhum motivo para esconder. Quero ser transparente.”
“Porque é que o diretor executivo russo dos caminhos de ferros fica em silêncio?”, questiona-se Alexander Kamyshin, respondendo depois à sua própria pergunta: “Porque está a fazer coisas erradas com as quais não se sente bem. Não quer mostrar certas coisas à sua família. Eu estou aberto, até à minha família (…) Estou a lutar pelo meu país e gosto de o fazer desta maneira.”
O transporte de líderes mundiais (que agradecem à Ucrânia)
António Costa, Boris Johnson, Justin Trudeau, Emmanuel Macron, Mario Draghi, Olaf Scholz, entre outros. Com as deslocações aéreas suspensas, devido ao risco de um possível ataque, os líderes mundiais que visitaram a Ucrânia e que se reuniram com Volodymyr Zelensky nos primeiros meses após a invasão viajaram de comboio — alguns dos quais estiveram várias vezes em território ucraniano. E a rede férrea teve de adaptar-se também a essa nova função: transportar figuras de relevo mundial por centenas de quilómetros de um território na mira das forças russas.
Aliás, na ida do primeiro-ministro português a Kiev, em maio, o próprio Alexander Kamyshin deixou-lhe uma mensagem na sua conta pessoal do Twitter: “Espero que tenha desfrutado da sua visita. Ficaríamos contentes de o ter a bordo outra vez, no nosso dia da vitória.”
Hope that your journey was enjoyable. Would be happy to have you on board again, for our Victory day :)
— Alexander Kamyshin (@AKamyshin) May 22, 2022
As imagens da viagem de comboio do Presidente francês, Emmanuel Macron, do chanceler alemão, Olaf Scholz, e do primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, tornaram-se virais. E alguns líderes mundiais até gravaram vídeos de agradecimento à Ukrzaliznytsia. Um deles foi o ex-chefe de governo britânico, Boris Johnson: “Estou a viajar num comboio fantástico até Kiev. Só quero agradecer a todos os funcionários. Transmite o espírito da Ucrânia em manter-se firme à agressão da Rússia.”
Da mesma forma, Justin Trudeau agradeceu ao serviço de linhas férreas ucranianas na sua passagem pelo país, no início de maio. “Quero tirar um momento para dizer obrigado a todos os trabalhadores dos caminhos de ferro da Ucrânia. Têm sido tempos extraordinariamente difíceis, mas continuam lá para transportar as pessoas, para levar bens essenciais, estão a empenhar-se para manter a Ucrânia livre e forte.”
O escândalo da ferrovia que levou Alexander Kamyshin ao cargo
Um grande escândalo manchou, em setembro de 2021, a credibilidade da empresa que gere os caminhos de ferro na Ucrânia. Na origem desse escândalo esteve um esquema de corrupção baseado na compra de peças de baixa qualidade, que não estavam em consonância com os standards das linhas férreas do país. Os dirigentes da entidade pública “compraram componentes para reparar as linhas férreas” a uma empresa privada de Kiev, que praticava preços elevados por produtos que não cumpriam os parâmetros mínimos.
Foram os serviços de segurança ucranianos que denunciaram o caso. Nos meses anteriores, já tinham sido revelados escândalos idênticos e os prejuízos da empresa atingiram níveis históricos, o que obrigou o governo ucraniano a ordenar a criação de uma comissão de gestão da crise para analisar a situação da entidade pública. Entretanto, o executivo substituiu o então diretor-geral da Ukrzaliznytsia, Ivan Yurik, e indicou o antigo conselheiro do Ministério das Infraestruturas da Ucrânia, Alexander Kamyshin, para o cargo.
Chegado em novembro, Alexander Kamyshin tentava resolver os problemas que a empresa pública tinha acumulado até esse momento. O novo diretor executivo estava longe de imaginar que, três meses depois, o país entraria em guerra — e que teria de enfrentar dificuldades muito maiores. No entanto, como realça, “sente sempre no coração o que tem de fazer”. E garante que “nunca vai ceder”, apesar das dificuldades que enfrentou e enfrenta. “Lutarei pelo país. O tempo que for preciso. Continuarei a lutar.”