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“Tive e ainda tenho muito medo”, sussurra, revelando que este segundo álbum está completamente diferente daquilo que as pessoas estavam habituadas a ver de Surma. “Aqui vou ser eu a 100%”

Rui Palma

“Tive e ainda tenho muito medo”, sussurra, revelando que este segundo álbum está completamente diferente daquilo que as pessoas estavam habituadas a ver de Surma. “Aqui vou ser eu a 100%”

Rui Palma

"alla": o grito de libertação de Surma

O que estava contido em “Antwerpen”, explode agora num álbum em que Surma dilui géneros e convoca nomes como Cabrita, Selma Uamusse ou Ana Deus para criar uma androgenia existencial e artística.

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Alla é uma palavra sueca que significa “todos”, sem género. É um grande abraço linguístico que não olha a masculino nem a feminino. Integra, expande. Alla é Surma quando se vê ao espelho ou quando brinca com todas as possibilidades musicais que tem à mão – seja um riff que lhe vem durante o sono e que ela grava remelosa no dictafone (foi assim que “Hemma” e “Maasai” foram concebidas), seja a campainha de aviso de “próxima paragem” do metro que ela harmoniza na sua cabeça. “O que é que não é música? Nós estamos sempre rodeados de música”.

Débora Umbelino, mais introvertida do que party animal, como nos viria a confidenciar mais à frente nesta entrevista, fala-nos destas curiosidades a partir do seu estúdio, onde se tem estado a preparar para os concertos de lançamento de alla, o disco. “Tive e ainda tenho muito medo”, sussurra, revelando que este segundo álbum está completamente diferente daquilo que as pessoas estavam habituadas a ver de Surma. “Aqui vou ser eu a 100%”.

Não é que em Antwerpen, a música de 27 anos nascida em Leiria — numa casa de pais liberais que a inundavam de jazz, country, rock e de todas as ferramentas para ela formar a sua identidade fora de qualquer caixinha convencional — Surma não tivesse sido verdadeira consigo. Afinal, esse foi o seu “primeiro bebezinho”, disco do ano para várias publicações nacionais e nomeado pela Associação Europeia de Editoras Independentes como melhor disco independente de 2017.

[“Islet”, a primeira amostra do novo álbum de Surma, “alla”:]

Porém, ao ouvirmos alla, ficamos com a sensação de que Antwerpen era apenas a pontinha do iceberg de todo o estofo emocional e criativo de Surma. Ela agora prostra-se à nossa frente sem subterfúgios, um bloco de gelo por inteiro, a flamejar, devorando-se a si para se renovar e se conceber novamente, sem vergonhas, sem medos, sem géneros.

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Um álbum nascido do caos e de várias colaborações

O álbum, diz-nos, veio no tempo e na altura certas. A pandemia deu-lhe a pausa e a espera que necessitava para explorar um caminho mais autobiográfico e vulnerável que ela ainda não tinha conseguido abordar, fosse por falta de maturidade ou por falta de oportunidade. Isso aliado a uma entrevista de Nick Cave, que a inspirou, foram os gatilhos criativos que Débora precisava para se lançar de cabeça no novo álbum: “Nessa entrevista ele disse que sempre usou uma máscara para ser aceite pela sociedade e quando a retirou, não se reconhecia. Isso disse-me muito, porque eu não quero ser essa pessoa.”

De rompante, Surma tirou a máscara e estilhaçou-a no chão. “É muito esgotante estar sempre a ser uma pessoa que não és”. Ela, longe de ser a party animal como muitos a veem, gosta da sua casinha, é introvertida e adora criar no meio do caos. “Sou muito caótica em tudo o que produzo, adoro esse fator surpresa”, confessa, e alla é, do início ao fim, a materialização desse caos.

Cada canção é uma viagem e um reboliço emocional em si que, por sua vez, se apresenta como um capítulo de uma viagem maior que é o disco. Há faixas que começam cândidas, como por exemplo “Tous Les Nuages”, e pelo meio são sacudidas por uma tempestade punk ingovernável, saída dos universos de João Cabrita e de Victor Torpedo; outras, como “Huvasti”, correm vertiginosas ao sabor do techno, com uma mãozinha insana do contrabaixo de João Hasselberg e da percussão de Pedro Melo Alves, para logo ascenderem ao éter; ou o que dizer do exercício transcendental de Selma Uamusse em “Nyanyana”, onde a música vai a fundo nas suas raízes moçambicanas, lançando o seu cantar em changana primeiro com delicadeza, depois com visceralidade, ao ponto de não se distinguirem já o que são palavras ou uivos, como se naquele momento Selma não quisesse mais do que que dar à luz uma nova vida, fosse ela uma música ou um ser humano.

De rompante, Surma tirou a máscara e estilhaçou-a no chão. “É muito esgotante estar sempre a ser uma pessoa que não és”. Ela, longe de ser a party animal como muitos a veem, gosta da sua casinha, é introvertida e adora criar no meio do caos. “Sou muito caótica em tudo o que produzo, adoro esse fator surpresa”, confessa, e alla é, do início ao fim, a materialização desse caos.

Mas há mais convidados: o cantar falado de Ana Deus, que parece uma extensão natural do micado sonoro de Surma, é lançado em “Tergiverso”; Ecstasya leva-nos para uma trip psicadélica existencialista em “Did I Drop Acid And This Is My Ego Death”; Noiserv faz as suas brincadeiras ambientais, sem o peso da gravidade a esmagarem-lhe os sintetizadores e a voz, em “Myrtise”; e “Biyelka”, na reta final do álbum, leva-nos para o fundo do mar ou para o espaço (não serão o reflexo natural um do outro?) com os subtis dedilhados da harpa de Angélica Salvi e o chorar do violoncelo de Joana Guerra.

O som de garrafa e o “maninho” Rui

“Ter várias colaborações de vários músicos no álbum ajudou-me muito na abertura que quis alcançar”, refere. De fora ficaram Dino D’Santiago e Bruno Pernadas, que não puderam participar em alla por estarem envolvidos noutros trabalhos. Quem nunca fica de fora do processo criativo de Surma é Rui Gaspar, produtor do álbum e músico dos First Breath After Coma. “O Rui passa-se muito comigo, porque eu gravo tudo sem metrónomo e depois chego à beira dele com os tempos todos trocados”, ri-se.

A verdade é que, dentro ou fora do ritmo, os dois lá acabam por se entender. Em “Islet”, o single de avanço do disco, andaram a experimentar todo o material de estúdio que tinham à mão. “Até pusemos um beat eletrónico no final de um Casio de bebé que tínhamos por lá”. No total, a canção tem mais de quatrocentas faixas sobrepostas de instrumentos. Foi feita em “puzzle”, explica Surma, um processo “muito divertido de gravar”.

De rompante, Surma tirou a máscara e estilhaçou-a no chão. “É muito esgotante estar sempre a ser uma pessoa que não és”

Rui Palma

Lá para o meio há também sons de tigelas, colheres e ainda uma “voz de garrafa”: “Eu tinha uma termos de água vazia e estava a fazer sons com a boca dentro da garrafa. Disse ao Rui para meter o microfone, porque estava a soar bem, e ficou a voz da garrafa. Foi a coisa mais estranha que aconteceu na produção do álbum”.

O que Surma solta em “Islet”, dentro e fora da termos, é um grito de libertação total, um jorrar de versos violentos:

“Live your life
Lay your mask
Be the child that you forgot
Shave your head
Shave your legs
Wear no panties
Wear no bra”

E continuando para “Raise your finger / I don’t wanna be your friend”, para lembar um episódio pessoal de bullying sofrido no secundário. O videoclip gravado com a colaboração da CASOTA Collective, dá ainda mais força à música, que visualmente se parece com uma curta-metragem de seis minutos.

Bandas sonoras japonesas e o regresso a casa

O disco, aliás, tem uma certa aura cinematográfica, que não terá sido alheia às influências de Surma aquando da sua conceção. “Na altura andava a ouvir muitas bandas sonoras japonesas de Sakamoto, coisas mais etéreas, Rodrigo Leão e vi muitos filmes freaks que me deram uma inspiração mais louca”. É natural se a certa altura nos sentirmos presos em “Lost in Translation”, como também é natural se sentirmos uma pulsão de ritmos africanos – do afrobeat ao kuduro – que nos põe as ancas a mexer. Surma foi do Japão a África, da Islândia (que já sentíamos como seu habitat natural em Antwerpen) ao Berghain, em Berlim, num abrir e piscar de olhos, acabando por se deitar na country americana, no seu derradeiro tema, “Nico, My Love”.

“Vai ser uma coisa diferente que as pessoas não estão à espera de Surma. Não vai ser só um concerto, vai ser mais em jeito de performance. Vou explorar uma persona ao vivo, não vou estar eu ‘normal’”. Afinal, o que é normal Surma?

Este foi precisamente o grande ponto de discórdia entre Surma e Rui. Ele não queria incluir a faixa no disco, ela começou a gravá-la às escondidas dele e bateu o pé para que ficasse. Só temos a agradecer essa teimosia. Com Nico e os Velvet Underground, Débora regressa a casa, aos discos dos pais, à infância.

A gravação artesanal e o pitch da voz alterado, parecendo que é uma criança a cantar, reforçam esse sentimento caseiro. Depois de dez temas de intensa renovação, expansão, luta e libertação, nada melhor do que voltar ao ninho, ao princípio de tudo, ao ponto em que não precisávamos de procurar palavras como alla para justificarmos a vontade de abarcar tudo e todos.

O próximo capítulo da história de Surma – que este ano conheceu a ídolo St. Vincent e abriu para os James em Portugal e em Manchester, “é um sonho e uma sorte inacreditável” – passa pelos espetáculos de apresentação do novo disco. Leiria, (Teatro José Lúcio da Silva, 6 dez.), Braga (gnration, 10 dez.), Porto (Novo Ático, 11 dez.), Aveiro (Gretua, 16 dez.) e Lisboa (Culturgest, 17 dez.) são as cidades já anunciadas.

Em palco, ela estará com Pedro Melo Alves e João Hasselberg, bem como com cinco bailarinos. “Vai ser uma coisa diferente que as pessoas não estão à espera de Surma. Não vai ser só um concerto, vai ser mais em jeito de performance. Vou explorar uma persona ao vivo, não vou estar eu ‘normal’”. Afinal, o que é normal Surma? Haverá normalidade em alla? Cremos que não e, para o bem da música e da arte, ainda bem que assim é.

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