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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

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Amadeo de Souza-Cardoso é finalmente uma estrela, com o seu próprio filme

Vicente Alves do Ó vai levar ao grande ecrã a vida do pintor vanguardista que quase ficou esquecido pela história. Numa noite fria em Sintra, o Observador assistiu às filmagens.

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É sexta-feira de dezembro e já passa das 11 da noite quando começam a filmar num palacete da Serra de Sintra. De repente é Paris em 1911, uma pequena casa da Rue Colonel Combes com grafonola na sala de estar, mesa posta na cozinha e quadros espalhados pelas paredes. Terceira semana da rodagem do filme biográfico sobre o pintor Amadeo de Souza-Cardoso, fecho de uma trilogia que o realizador Vicente Alves do Ó tem vindo a dedicar a artistas portugueses que o influenciaram como pessoa e criador: Florbela Espanca, depois Al Berto, agora Amadeo.

As cenas desta noite são leves e festivas. O pintor convida amigos para uma exposição na casa que divide com a futura mulher, Lucie Pecetto, e mostra aguarelas e alguns desenhos, enquanto o amigo Modigliani exibe as esculturas que ficariam conhecidas como “cabeças”. Picasso está presente, Apollinaire, Max Jacob, Eduardo Vianna e Emmerico Nunes também. Convive-se à luz das velas. O guião informa que serão gravadas cinco cenas. Eis as primeiras três. Interior, noite, cenas 51 e 52. “Festa e boémia em casa de Amadeo, com o seu círculo de amigos artistas, a que se junta toda a entourage de Pablo Picasso”. Interior, noite, cena 60. “Durante a festa em casa de Amadeo, Apollinaire lê poemas do seu livro Le Bestiaire.”

Os atores ensaiam antes de ouvirem “ação”, sob o olhar atento do diretor de fotografia, Rui Poças, enquanto o realizador faz marcações. Vicente Alves do Ó explica a Amadeo que tem de atravessar uma sala e quando chegar à porta que liga à cozinha deverá dizer “…deixar Paris”, depois seguir em frente e dar passagem a Picasso. Há vários figurantes neste espaço exíguo. A equipa mostra alguma tensão, mas o ambiente é sereno.

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Estamos no primeiro andar do palacete da Quinta de Vale-Flor, um edifício degradado que alguém diz ser propriedade do banco Montepio e que desde há vários anos serve de cenário a rodagens de publicidade e cinema. A produção é da Ukbar Filmes, de Pandora da Cunha Telles, e a distribuidora do filme já está assegurada, a NOS Audiovisuais, que esta noite convidou jornalistas para assistirem às filmagens (iniciariam-de em novembro e devem terminar na próxima quarta-feira, dia 18).

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No rés-do-chão, está montado um refeitório e uma ampla sala de maquilhagem e guarda-roupa, com aquecedores a gás pelos cantos, insuficientes para o frio da noite. Sandra Pinto, chefe da equipa de maquilhadores e cabeleireiros, é uma das mais atarefadas. Durante quatro horas, está responsável pela caracterização das personagens principais e algumas implicam uma hora de trabalho, sempre de pé frente a um espelho largo com muitas lâmpadas redondas. “Como se trata de figuras que existiram, temos sempre de observar bem as fotografias e imagens existentes”, conta. “É uma pesquisa que eu própria faço. Ao mesmo tempo tenho de perceber quem são os atores. Posso aproveitar características físicas que os tornem semelhantes às personagens ou posso precisar de alterar algumas coisas. Às vezes, só aqui na cadeira, durante a maquilhagem propriamente dita, é que se percebe bem as alterações a fazer. No fundo, é um jogo”, classifica Sandra Pinto.

Os outros são conhecidos e ele não

Duas horas ante do início da rodagem, depois de ter jantado com a equipa técnica e os atores, Vicente Alves do Ó tinha explicado ao Observador que esta é a última etapa na sua fase de cinema biográfico de ficção e que talvez os três filmes sejam menos biográficos do que aparentam. “Tenho levado pancada, porque há quem diga que supostamente assumo um ponto de vista que depois não se vê no ecrã. Não sei até que ponto são filmes verdadeiramente biográficos. Há a preocupação de não deturpar a pessoa, mas tenho uma interpretação, um olhar. No caso da Florbela, o sumo do filme eram quatro dias da sua vida. No caso do Al Berto, foram dois anos. Os meus filmes são biográficos no sentido em que olho e penso: ‘Quando é que tu te tornaste tu, quando é que te transformaste na pessoa que eu admiro, que conheço, que tenho vontade de saber.’ Não estou preocupado em contar a história toda.”

"Às vezes, saindo dos meios artísticos, as pessoas perguntavam-me porque é que o Amadeo não é conhecido, porque é que não se sabe muito da vida dele. Este filme tenta responder a isso. Porque é que ele não está tão inscrito na história da arte?"
Vicente Alves do Ó, realizador

Com Amadeo – o artista plástico que morreu aos 30 anos, hoje considerado um dos mais inventivos criadores do século XX, próximo dos movimentos de vanguarda, interessado em experimentar linguagens novas e decidido a ir além do que elas –, o realizador, que é também o argumentista, volta a não contar a história toda.

“Quis responder a uma pergunta muito importante. Às vezes, saindo dos meios artísticos, as pessoas perguntavam-me porque é que o Amadeo não é conhecido, porque é que não se sabe muito da vida dele. Este filme tenta responder a isso. Porque é que ele não está tão inscrito na história da arte? Porque é que todos os amigos dele estão, os amigos que estão aqui esta noite na casa dele em Paris?”

Os historiadores da arte assinalam que só nas últimas décadas se iniciou a redescoberta do pintor nascido em 1887 na pequena aldeia de Manhufe, concelho de Amarante. Sobre ele tem pairado um manto de esquecimento. Sem as retrospetivas na Fundação Gulbenkian em 1987,  em Washington há 20 anos e em Chicago há 19, mas principalmente sem a muito falada exposição “Diálogo de Vanguardas”, também na Gulbenkian, comissariada por Helena de Freitas e Catarina Alfaro, a que acorreram mais de 75 mil pessoas, a vida e obra de Amadeo seria hoje uma inexistência.

Filho de Emília Ferreira Cardoso e de José de Souza-Cardoso, grande proprietário rural e viticultor, Amadeo passou a infância com os nove irmãos entre Manhufe e Espinho. Mudou-se para Lisboa aos 18 anos para estudar na Academia de Belas-Artes e logo se desiludiu com o ambiente da capital, decidindo rumar a Paris em 1906, o que o levou a conhecer os jovens artistas plásticos que ali se concentravam em vidas boémias e criativas, nomes que depois marcaram a tintas carregadas a arte moderna do século.

O realizador, Vicente Alves do Ó

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Um detalhe assinalado desde há muito por estudiosos terá contribuído para que Amadeo se tornasse quase invisível após a morte, em 1918, vítima da pandemia de gripe espanhola. A promissora carreira de 550 obras em escassos 14 anos, admirada em Portugal por franjas das elites mas já bem reconhecida em França, na Alemanha ou nos EUA, ficou esquecida porque a viúva, Lucie Meynardi Pecetto (1890-1987), guardou a maior parte dos quadros em casa, sem saber o que lhes fazer ou com a melhor das intenções para os preservar – e sem obra em museus e leilões o pintor eclipsou-se.

Daí que esta noite em Sintra, antes do início da filmagem, seja importante perguntar à atriz Ana Lopes, no papel de Lucie, se a sua personagem surge de alguma forma como vilã. E a reposta é “não, de todo”, porque Lucie foi “uma força da natureza”. “Acho que ela era a âncora do Amadeo, teve um papel importantíssimo na arte dele.”

Aos 27 anos, Ana Lopes tem neste filme a primeira experiência em cinema, oportunidade que lhe apareceu depois de ter participado na minissérie “A Vida Começa Agora”, onde conheceu Maria João Matos Silva, primeira assistente de realização de Vicente Alves do Ó. Convidada por Maria João a participar no casting do filme, arrecadou o papel. “Fiz o curso do Conservatório, que terminei em 2014, e até agora tenho-me dedicado ao teatro, até estou a formar uma companhia que se chamará Parada de Elefantes”, resume Ana Lopes. “Só a partir dos 25 é que decidi agenciar-me e tentar fazer alguma ficção televisiva e agora surgiu esta oportunidade maravilhosa de fazer um filme.”

A pesquisa e o ator de Los Angeles

Lucie e Amadeo conheceram-se em Paris e em 1914 vieram passar férias a Portugal, mas quando quiseram regressar a França o eclodir da I Guerra Mundial impediu-os. Instalados em Manhufe, aí ficaram a viver por poucos anos, até Amadeo adoecer e morrer.

“Ela ficou sem nada”, prossegue Ana Lopes. “A mãe já tinha morrido, não tinha contacto com o pai, não tinha irmãos. O único contacto era a família do Amadeo, mas foram-se afastando e ela foi finalmente para Paris e levou o espólio do marido. No fundo, a Lucie salvou a obra do Amadeo, porque penso que a família dele não se interessava muito. Sim, ela esteve num apartamento, rodeada pelos quadros, alguns até debaixo da cama. Tratava-os como filhos. Acho que protegeu a obra, talvez não da melhor forma. Tentou que ele fosse conhecido, que houvesse exposições em grandes museus, mas não conseguiu. Não a vejo como vilã, mas como uma mulher de boas intenções. Infelizmente, o resultado foi apagar um pouco a memória do Amadeo.”

"Estivemos em convívio e em trabalho, sempre a falar do Amadeo e a estudá-lo, chegámos a visitar a casa dele. Foi uma experiência muito emocional e sensorial, que me permitiu criar raízes com esta história”
Ana Lopes, atriz

A atriz pesquisou bastante sobre a personagem e em outubro passou uma semana com o restante núcleo principal de atores em residência artística numa casa de turismo rural de Amarante, por sugestão do realizador, que já em “Al Berto” tinha experimentado este método antes da rodagem. “Não conhecia ninguém e foi muito importante, porque me ajudou a criar laços de confiança com os outros atores, o que depois gera uma ligação em cena. Estivemos em convívio e em trabalho, sempre a falar do Amadeo e a estudá-lo, chegámos a visitar a casa dele. Foi uma experiência muito emocional e sensorial, que me permitiu criar raízes com esta história”, recorda Ana Lopes.

Por sua parte, o ator que dá corpo a Amadeo de Souza-Cordoso – e são óbvias as semelhanças físicas entre ambos –, da pesquisa que fez destaca as cartas do artista a Lucie e à família, que considera “lindíssimas”. “Foi o que me permitiu perceber quem ele era, porque é nessa correspondência que ele se abre como pessoa, como artista, como sonhador”, explica Rafael Morais, acrescentando que o filme se debruça “sobre a vida pessoal do Amadeo e sobre o drama interior dele, mais do que que sobre a arte, que é o aspeto mais conhecido”.

O projeto representa “um desafio enorme” para o ator, por ser a primeira que assume uma personagem que existiu na vida real. Natural de Coimbra, tem 30 anos e tornou-se conhecido em 2011 através de “Sangue do Meu Sangue”, de João Canijo, mas há mais de dez anos deixou Portugal e rumou aos EUA à procura de trabalho. Vive agora em Los Angeles e conta que há pouco tempo terminou as gravações de uma série da Netflix, “White Lines”, realizada pelo mesmo autor da série “Casa de Papel”, Álex Pina, onde também entrou o português Nuno Lopes.

“Cresci a ver filmes americanos e desde muito novo percebi que queria viver nos EUA, porque queria conhecer Los Angeles e Hollywood”, conta, já vestido de Amadeo, pouco antes de começar a filmar. “Ao mesmo tempo, foi uma forma de fugir à maneira como esta profissão infelizmente é tratada em Portugal. As coisas têm melhorado, mas para conseguir uma vida decente cá teria de fazer trabalhos que pouco me dizem.”

Amadeo por mero acaso

“Amadeo”, assim se chama o filme – tal como os dois anteriores de Vicente Alves do Ó foram apenas “Florbela” (2012) e “Al Berto” (2017) – deve chegar às salas em novembro do próximo ano e inclui no elenco nomes bem conhecidos, como os de Eunice Muñoz (avó de Amadeo), Rogério Samora (pai do pintor), Manuela Couto (mãe) e Lúcia Moniz (irmã). Além do ambiente de Paris, a longa-metragem recria os últimos dias da vida de Amadeo e ainda a exposição de 1916 no Jardim Passos Manuel, no Porto, momento em que o pintor chegou a ser agredido, tal o escândalo que a novidade da sua pintura modernista provocou. Essa exposição foi evocada em 2016 e 2017 através de uma iniciativa no Museu Nacional Soares dos Reis e no Museu do Chiado, com curadoria de Raquel Henriques da Silva e Marta Soares.

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Ora, foi precisamente em 2016 que Vicente Alves do Ó decidiu avançar com este filme. Tinha acabado de filmar “Al Berto”, estava a descansar por uns dias no Porto e ao passar pelo Soares dos Reis decidiu entrar e ver as obras de Amadeo. “Uma decisão muito instintiva”, diz. “A exposição incluía frases ditas pelo Amadeo que me chamaram a atenção. O interesse começou a aumentar para lá dos quadros. É um homem muito interessante. Viveu 30 anos, tem coisas com que me identifico um pouco. Nunca fez parte do meio, marginalizou-se, tinha uma visão muito solar da vida, combatia aquele cliché do artista que só cria se estiver triste e deprimido. Amava a tourada e a caça e depois adorava arte moderna e os futuristas. Era muito religioso, mas foi viver para Paris onde conviveu com gente completamente louca. Fascina-me, porque é uma súmula, tem qualquer coisa de Fernando Pessoa e de António Variações, a força, o talento, a sedução. O filme não o vai definir, mas se se conseguir aproximar dele já não é mau.”

De resto, foi assim com as outras duas películas desta trilogia “perfeitamente pessoal”: meras aproximações, a partir da ligação do realizador àqueles que admira. “Acho que são pessoas que de alguma forma viveram uma encruzilhada e a quem a vida fez questões que sinto que a vida também me fez. Estas pessoas não só me deram a literatura e a arte deles, mas também algumas respostas. É uma espécie de troca que faço com eles: deram-me muita coisa e eu devolvi com um filme.” Além disso, há uma aspeto íntimo, que Vicente Alves do Ó sublinha: “Não venho de uma família muito estruturada e desde miúdo tive de inventar a minha própria família, principalmente através dos livros e dos filmes. Aliás, é por isso que faço cinema. Estes três filmes servem de algum modo para contar a história de parte da minha família empestada, são três artistas que me acalentaram.”

Depois da conversa, o realizador subiu ao primeiro andar do palacete e viajou até 1911. As filmagens só terminaram por volta das cinco da madrugada. No rés-do-chão uma ceia esperava a equipa.

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