A exposição de Amadeo de Souza-Cardoso no Grand Palais de Paris, incluída no ciclo de comemorações dos cinquenta anos da presença da Fundação Calouste Gulbenkian na capital francesa, ficará por longo tempo na história da diplomacia cultural (no pressuposto ingénuo de que temos efectivamente uma) e decerto por algum tempo na memória daqueles franceses, portugueses, outros europeus, norte-americanos ou asiáticos que a visitem. Embora os seus quadros já tenham sido mostrados na Europa e América fora, em exposições só dele ou dele com outros, sobretudo depois da grande exposição lisboeta de 2006-7 (quando foram pela primeira vez vistos sistematicamente ao lado de obras doutros artistas de vanguarda nos idos 1910), a privilegiada e mítica centralidade do lugar, as entidades e os meios envolvidos, os historiadores de arte estrangeiros que escreveram para o catálogo, e destacadamente o trabalho das curadoras Helena de Freitas e Leonor Oliveira com congéneres parisienses (afirmando, no plano internacional, fortes competências nossas neste sector, além dos já reconhecidos João Fernandes e Pedro Gadanho), permitem-nos confiar na excepcionalidade feliz desta realização que busca colocar o pintor de Amarante, tão precocemente desaparecido, de uma vez por todas na alta-roda das vanguardas europeias do início do século passado.
Já foi muitas vezes equacionado o que teria Amadeo de Souza-Cardoso podido fazer se em Outubro de 1918 não tivesse sido colhido por um devastador surto de gripe espanhola que dizimou parte da sua família e muitos milhares de norte a sul do do país — e deixou de algum modo “órfãos” os de Orpheu, Portugal Futurista e arredores. Mas essa consciência, que foi entre nós muito tardia, pode agora crescer um pouco mais, pois de 2006 a 2016 assinaláveis progressos na historiografia das vanguardas estéticas foram estimulados por grandes exposições e monografias. (No periférico caso português, o centenário da revista Orpheu é o mais relevante.) “Entre 1918 e 1956 — escreveu Helena de Freitas no catálogo comprovado de 2008 (também agora reimpresso e “acrescentado”) —, sabe-se que Amadeo existe, ouve-se falar da sua genialidade mas desconhece-se a verdadeira dimensão da sua obra”, o que o tornou “uma lenda” e, por isso, “objecto de uma obstinada reivindicação: a necessidade de o ver”. Algo a que Fernando Rosa Dias chamaria, lapidarmente, “a forte presença da sua irrealidade e excepção”.
Da periferia para o centro
À parte do exultante José de Almada Negreiros, a recepção crítica das exposições de Amadeo na Liga Naval de Lisboa e no Jardim Passos Manuel do Porto, em 1916, foi de tal ordem adversa ao pintor, que a sua viúva e herdeira, Lucie Cardoso, depois de ter promovido uma retrospectiva da obra de Amadeo numa prestigiada galeria parisiense em 1925 — aquando, sublinhe-se, da grande Exposição de Artes Decorativas — terá considerado ser uma inútil e inconveniente maçada demover do seu apartamento em Paris os quadros para que fossem vistos uma segunda vez por quase-cegos e tontos meridionais. Há quem considere, como Alexandre Pomar, que teria sido melhor para a fortuna artística de Amadeo que a retenção atávica — ainda que certamente amorosa — dos quadros de Amadeo pela sua viúva desse lugar à sua revelação ao mercado internacional de arte, onde a sua qualidade seria exposta a escrutínio e reconhecida. Foram afinal necessárias as suaves persuasões de Paulo Ferreira, que com ela trabalhava na Casa de Portugal (também houve tentativas do embaixador Guilherme de Castilho), para que enfim os cedesse para ali mesmo serem vistos no Porto, Lisboa e Amarante em 1951 e 1956. O a todos os títulos grande António Pedro escreveu então (1956): “É de facto extraordinário que, existindo oficialmente um prémio Souza-Cardoso, existindo um Museu de Arte Contemporânea em Portugal, e sendo relativamente fácil recolher, para uma exposição total, a obra deste artista que está na mão de meia dúzia de pessoas, se tenham esperado 38 anos depois da sua morte e se deva a uma iniciativa particular, sem recursos além dos da boa-vontade, esta exposição incompleta. | Sirva ela para chamar a atenção de quem de direito sobre este lapso imperdoável e já valeria a pena tê-la feito.”
Nessa altura, como sublinha Helena de Freitas, foram sobretudo pintores quem melhor escreveu sobre a obra de Amadeo, referindo-se, creio, a Fernando Lanhas, Nikias Skapinakis e José Escada. Certa hostilidade dos meios artísticos a um pequeno e segundo livro de José-Augusto França sobre Amadeo (editora Artis, 1960) ficou demonstrada num ácido desenho de João Abel Manta saído no Diário de Lisboa, mas o intrépido crítico e historiador cultural viria a emendar a mão vinte e seis anos depois, num livro dedicado conjuntamente a Amadeo e a Almada, chamando-lhes, respectivamente, “o português à força” e “o português sem mestre”.
Também aqui o calendário foi determinante: no centenário de Amadeo de Souza-Cardoso, em 1987, a Fundação Gulbenkian colocou-se firmemente na primeira linha desse resgate essencial, após sete décadas em que o Estado português nada fez além de adquirir, em 1953, cinco obras para o museu de arte contemporânea, no Chiado. Em primeiro lugar, comprou uma quantidade significativa de obras centrais (quem não se lembra de Os Galgos a abrir a antiga exposição permanente do Centro de Arte Moderna?…) e recebeu doações da longeva Lucie Cardoso, entre as quais Procissão de Corpus Christi. Um catálogo de 634 páginas dá-nos, ainda hoje, a irrefutável medida do esforço feito pela Fundação para remediar esse perturbante gap cultural, mas o maior benefício alcançado, além duma primeira sistematização informativa e de localização de obras dispersas em coleccionadores privados, foi sem dúvida a aquisição e salvaguarda qualificada do espólio do pintor (em rigor, só uma parte dele), de há anos a esta parte organizado e disponibilizado online pela Biblioteca de Arte da Gulbenkian. Outro progresso — bem auspicioso, como verificamos — consistiu no aparecimento e colaboração de dois jovens historiadores de arte, recém-formados pela Universidade Nova de Lisboa: a própria Helena de Freitas (1958-) e o malogrado António Rodrigues (1956-2008), autor de trabalhos ainda hoje fundamentais sobre Christiano Cruz e Jorge Barradas. Da mesma geração e formação, Bernardo Pinto de Almeida (1954-) assinaria em 2008 o longo verbete “Souza-Cardoso” no Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português coordenado por Fernando Cabral Martins.
A abordagem expositiva e a ciência historiográfica davam então evidentes saltos qualitativos, e uma primeira grande oportunidade de internacionalização da obra do pintor surgiria pouco depois, de Setembro a Dezembro de 1991, na Europália de Bruxelas. No catálogo, a comissária Margarida Acciaiuoli afirma que Amadeo de Souza-Cardoso, cuja obra “permanece em suspenso no silêncio das pontes lançadas para o futuro”, se “presta mais do que ninguém a uma revisitação”, enquanto Pierre Cabanne (um crítico francês especializado em Picasso e famoso entrevistador de Duchamp) destaca que, “de todos os jovens pintores portugueses que Paris atraiu, Souza-Cardoso é o único que aborda a modernidade, a sua modernidade”. Em 1999 uma escolha de quadros foi até Washington e Chicago, integrando Amadeo na reavaliação historiográfica em curso de uma importante exposição de arte europeia em Nova Iorque, Chicago e Boston, conhecida por The Armory Show, em que ele participou em 1913. Laura Coley escreveu para o catálogo sobre “Amadeo and America”, Rosemary O’Neill sobre Amadeo e os Delaunays, Kenneth Silver sobre “Amadeo in the Tower of Babel” (no caso, ainda Paris), e numa revista especializada Robert J. Loescher admitiu ser Amadeo “um artista negligenciado” (é o próprio título do artigo), e “o segredo mais bem guardado do primeiro modernismo”. Exposta em Hamburgo em 2007, a obra de Amadeo provocou um idêntico sentimento de descoberta e de revelação, reconhecendo a crítica de arte afinidades plásticas com o modernismo alemão. De facto, ele havia exposto em Berlim, na galeria da revista Sturm, em 1915.
Essa extraordinária ou extravagante evidência dum pintor da periferia europeia que passou pelo olho do furação vanguardista para depois, num curto período frenético, no isolamento dum recanto minhoto (a sua casa em Manhufe, Amarante), produzir o melhor da sua experimentação plástica, e de seguida, por uma coincidência obtusa, acolher e dialogar com Robert e Sonia Delaunay, pintores exilados em Vila do Conde e encantados com a arte popular portuguesa (com os quais sonhou expor em Barcelona), seria cada vez mais avaliada nos anos seguintes, até à exposição de 2006-7 que, sob o conceito dum “diálogo de vanguardas”, mobilizou durante dois ou três anos um considerável laboratório comparativo de história da arte dos dois primeiros decénios do século XX, e cujo sucesso foi confirmado por 117 000 visitantes em três meses de exibição.
O génio esquecido
Pode dizer-se que, em Portugal, só a capacidade financeira e a tradição ou prestígio de cooperação institucional além-fronteiras da Gulbenkian poderia ter levado a cabo tão exigente e dispendioso projecto, que nos deixou também três álbuns ilustrados, documentalmente riquíssimos, e como brinde a primeira edição facsimilada d’A Lenda de São Julião Hospitaleiro de Gustave Flaubert, que Amadeo ilustrou e caligrafou em 1912. Estamos a falar de cerca de 1700 páginas de considerável formato dedicadas a um único artista, o que faz de Amadeo de Souza-Cardoso — de que a Gulbenkian detém a maioria das obras: 200 no total — o pintor português a que a fundação dedicou a mais contínua, complexa e consistente atenção museológica e arquivística. Não por acaso, creio, o bolo de aniversário da festa dos trinta anos do Centro de Arte Moderna, em 2013, foi inspirado num pormenor de um quadro seu.
A campanha da exposição de Paris deste ano não é uma réplica simples do trabalho feito para 2006, nem poderia sê-lo, de facto. Nestes dez anos — uma década cheia de efemérides de grandes artistas e movimentos estéticos (o nosso Orpheu, o Armory Show norte-americano, e outros mais) e de reexame da influência da primeira guerra na arte europeia — novos campos de pesquisa foram criados pelo acesso livre ou facilitado a arquivos pessoais e institucionais (em particular na Bibliothèque Kandinsky, de Paris), pela expansão da consulta digital de periódicos da época e pela curiosidade crítica ou historiográfica pelos ditos “modernismes périphériques”. Nesse contexto retrospectivo globalizado, a “questão Amadeo” ganha uma boa oportunidade para ser encarada internacionalmente como o tal “tesouro escondido” a que o norte-americano Loescher se referiu. Internamente, novas abordagens de Amadeo surgiram entretanto, com Joana Cunha Leal em destaque.
No catálogo da exposição de Amadeo no Grand Palais, Sylvie Hubac, presidente da Réunion des musées nationaux, diz de Amadeo que “L’histoire de l’art a pourtant longtemps oublié son génie” (algo como “a história da arte tem desde há muito esquecido o seu génio”), uma afirmação alarmante e auspiciosa. Colaboram, além de Helena de Freitas, com o belo e inspirado ensaio “O salto do coelho” (referência ao quadro de Amadeo adquirido em 1913 por um importante coleccionador norte-americano), os historiadores de arte Christian Briend, que apresenta a recepção crítica do pintor no seu período parisiense, Javier Arnaldo, que foca as relações do pintor com o movimento berlinense Blaue Reiter, enquanto Christine Gernier escreve sobre identidade e modernidade em Amadeo, Jean-Claude Marcadé discute as cabeças-máscaras da última fase. Filomena Molder, prefaciadora do Flaubert de Amadeo, publica um novo ensaio intitulado “A biblioteca em chamas”, e Catarina Alfaro, que já colaborara na exposição de Lisboa e é autora duma monografia sobre Amadeo, assina uma biografia do pintor, mas há manifestamente aqui um passo adiante, dado pelo predomínio e variedade de atenções estrangeiras sobre a sua obra. E se esse protagonismo crítico sobre Souza-Cardoso não pode ser tido como uma estrita novidade, ele é também um bom indicador da boa condução desta campanha pela sua valorização internacional, que aproveita, como disse, o movimento geral de reavaliação da história das vanguardas plásticas e estéticas. Pode ser que — como aconteceu com Fernando Pessoa — sejam doravante “especialistas” estrangeiros a comandar o estudo e reconhecimento do “nosso melhor pintor de todos os tempos”.
Trabalhando “como um animal” (palavras do próprio) no seu estúdio em Manhufe, Amadeo planeava voltar a Paris e mostrar o que havia feito. Pois ele aí está, finalmente, no lugar certo e no tempo certo.