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Este texto foi inicialmente publicado a 10 de setembro de 2023 e é agora republicado de forma adaptada a 15 de maio de 2024, devido ao ataque a Robert Fico.

A 10 de maio de 2022, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discursou perante os deputados que se sentam no Parlamento da Eslováquia por videoconferência, uma prática que se repetiu nos primeiros meses da invasão em vários países como sinal de solidariedade a Kiev. Contudo, o líder da oposição do governo eslovaco não esteve presente. O também antigo primeiro-ministro Robert Fico justificou a sua decisão com acusações ao chefe de Estado ucraniano, que “mentia todos os dias” e que incentivava “a guerra”.

Dois anos depois, o ex-governante e líder do partido de esquerda Smer-SD tornou-se primeiro-ministro e, desde então, seguiu não só uma política ambígua face à Ucrânia, como tem aplicado reformas polémicas que alguns dizem poder violar o Estado de Direito. Esta quarta-feira, o chefe do governo do país foi atingido a tiro por um eslovaco de 71 anos, cujas motivações ainda estão por conhecer.

Algumas das figuras mais relevantes do país, contudo, já ligaram o ataque ao ambiente que se vive no país. “A retórica odiosa que testemunhamos na sociedade leva a atos odiosos. Por favor, vamos parar com isto”, pediu a Presidente Zuzana Čaputová. Uma posição reforçada pelo procurador-geral Maroš Žilinka: “Isto é o culminar de determinados sentimentos que são alimentados na sociedade”, lamentou.

Mas que figura polarizadora é esta e que ambiente se vive atualmente na Eslováquia? Reunimos quatro pontos para ajudar a compreender quem é Robert Fico.

O líder de um governo que vai da direita radical ao centro-esquerda

Robert Fico acabou por vencer as eleições legislativas de setembro de 2023, com o seu partido (o partido social-democrata eslovaco, pertencente ao grupo da aliança progressista dos socialistas no Parlamento Europeu) a obter 42 mandatos no hemiciclo — aquém dos 76 necessários para ter maioria na câmara de 150 lugares.

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[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]

Durante as negociações, Fico conseguiu rapidamente conquistar um aliado para formar governo: o SNS (o Partido Popular Nossa Eslováquia), abertamente contra a presença de Bratislava na União Europeia e na NATO. Ainda assim, esta coligação, que partilha entre si o conservadorismo social e uma posição pró-russa e contra o Ocidente, não tinha o número de deputados necessários para atingir a maioria absoluta, já que o SNS contava apenas com dez deputados. Foi então preciso procurar um terceiro parceiro: o Hlas, um recente partido de centro-esquerda no panorama político eslovaco, que surgiu como resultado da insatisfação de antigos dirigentes do Smer-SD relativamente ao rumo que a força partidária vinha tomando.

Fundado em 2020, o Hlas é um partido liderado pelo também antigo primeiro-ministro Peter Pellegrini, que pertencera ao Smer-SD e era considerado um “protegido” de Robert Fico. Foi o terceiro partido mais votado nas eleições, elegendo 27 deputados.

O entendimento foi possível, mas é um exercício de equilíbrio complicado. Por um lado, por conta do passado em comum, existem simpatias dos dirigentes do partido relativamente ao Smer-SD; mas, por outro lado, a retórica anti-Ocidente preocupa Peter Pellegrini.

Ainda assim, a decisão de incluir o SNS na coligação teve consequências profundas: em outubro, ainda durante as negociações, o Partido Socialista Europeu anunciou a suspensão quer do Smer, quer do Hlas, por considerarem uma aliança com um partido “de direita radical”, nas palavras daquele órgão. A Presidente eslovaca, Zuzana Čaputová, também levantou entraves — que acabaram por ser resolvidos com a substituição do ministro do Ambiente proposto (Rudolf Uliak, do SNS, conhecido pelo seu negacionismo climático) por outra figura.

Apesar da posição pró-ocidental de Peter Pellegrini, do Hlas, o governo liderado por Fico prometia manter a retórica anti-Ucrânia e anti-Ocidente. Desde então, a Eslováquia tem mantido uma postura ambígua: ora mantém o apoio financeiro e de armamento à Ucrânia, ora faz declarações pró-russas. “O que é que eles esperam, que os russos saiam da Crimeia, do Donbass e de Luganks? Isso não é realista”, afirmou em janeiro deste ano, por exemplo.

O uso da retórica anti-ucraniana e as medidas polémicas na Justiça e nos media

Um discurso em Bruxelas, outro diferente para consumo interno. E porquê? Porque é certo que os eslovacos parecem desconfiar da Ucrânia e do Ocidente. Um estudo elaborado em maio de 2023 pelo think tank Globsec — com sede em Bratislava —, mostra que 34% dos inquiridos eslovacos acreditam que os países ocidentais provocaram a Rússia e que, por esse motivo, o Presidente russo, Vladimir Putin, teve de invadir o território ucraniano. Ainda que 40% dos inquiridos culpem Moscovo pela ofensiva que começou em fevereiro do ano passado, certo é que a Eslováquia é o país do estudo (que incluiu ainda a Hungria, a Polónia, a Chéquia, a Roménia, a Lituânia, a Letónia e a Bulgária) que mais apoia a tese de culpabilização do Ocidente.

E não é só este dado que mostra a apreensão eslovaca relativamente ao apoio dado pelo Ocidente à Ucrânia. Cerca de 56% dos inquiridos na sondagem elaborada pelo Globsec não acreditam que as sanções aplicadas contra a Rússia resultem — a maior percentagem de todos os países, superando inclusivamente a Hungria. Apenas 38% parecem concordam com a continuidade da política sancionatória que tem sido aplicada contra Moscovo.

Além disso, segundo o mesmo estudo, 69% dos eslovacos são contra o envio de armamento para a Ucrânia, uma vez que consideram que essa atitude “provoca a Rússia” e traz a guerra mais perto da fronteira da Eslováquia. Aquela mesma percentagem de inquiridos do país centro-europeu considera que os “refugiados ucranianos recebem apoios às custas dos cidadãos nacionais pertencentes aos setores mais vulneráveis da população”.

Apesar de o apoio à Ucrânia ser colocado em causa, certo é que 58% dos inquiridos eslovacos veem com bons olhos a permanência da NATO. Para mais, 54% da população avalia a Rússia como uma “ameaça”. E o país também parece avaliar positivamente a atuação do Presidente ucraniano (53%), ao passo que Vladimir Putin recolhe uma taxa de aprovação de apenas 27%.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre Robert Fico.

Quem é o eslovaco, amigo de Putin, que poderá vir a ser primeiro-ministro?

Tendo em consideração este cenário, Robert Fico tem aproveitado para transmitir uma mensagem que ecoa junto do público eslovaco. Não defendendo abertamente nem a saída da NATO nem da União Europeia, o político de 59 anos advogou durante a campanha o fim do apoio à Ucrânia. Num evento partidário no início de setembro de 2023, o antigo primeiro-ministro lembrou a existência de “fascistas” nas tropas ucranianas, apresentando como prova o batalhão Azov.

“Devemos resistir o fascismo e o nazismo em todas formas”, declarou Robert Fico, que acusou as autoridades eslovacas de compactuarem com as tropas “fascistas” ucranianas. “Eles mantêm-se quietos, porque têm medo de ser castigados por Bruxelas e por Washington”, atirou. Sobre entregas de armas, o candidato de Smer-SD disse igualmente, em maio, que o Ocidente estava a patrocinar “mortes” ao decidir apoiar as tropas ucranianas.

O que explica então a permissividade da opinião pública da Eslováquia, que faz fronteira com a Ucrânia, que assimila vários pontos que são repetidos pela narrativa russa? A Presidente eslovaca explicou, em várias entrevistas, que a Rússia consegue espalhar facilmente a sua propaganda em território eslovaco, contando com a cumplicidade de vários deputados. “Alguns líderes políticos, incluindo deputados, espalham este tipo de informação diretamente no Parlamento, contando com o apoio de meios de comunicação sociais”, denunciou Zuzana Čaputová, citada pelo Politico.

Um relatório publicado pelo Ministério do Interior da Eslováquia dá conta de que, após a invasão da Ucrânia, a internet do país “começou a ser inundada com desinformação, manipulações e operações de informação como nunca antes”, um movimento incentivado, em grande medida, pelo Kremlin. Chegou a haver reuniões organizadas por agentes pró-Moscovo “com o objetivo de prestar tributo a pessoas associadas à Rússia ou à União Soviética”, que funcionariam como portadores da retórica russa.

Muita dessa desinformação foi veiculada precisamente pelo Smer-SD e por Robert Fico. Como explicou o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Wlachovsky, ao Washington Post, existem “algumas afinidades históricas e alguma ingenuidade sobre a Rússia que é aproveitada com cinismo e oportunismo pela elite política eslovaca”. “É a tempestade perfeita”, define, no sentido em que leva ao surgimento de sentimentos pró-Kremlin e contra a Ucrânia.

Ainda assim, os líderes do Smer-SD rejeitam este cenário e apresentam uma versão diferente. Como nota a Deutsche Welle, a mensagem dos dirigentes é que a Eslováquia deve ter boas relações não apenas com os Estados Unidos, como também com a Rússia. No entanto, certo é que Robert Fico tem acusado os rivais políticos de serem agentes norte-americanos e também “fantoches” de George Soros, o milionário com nacionalidade húngara e norte-americana que é constantemente atacado por movimentos mais à direita.

Mas existe ainda outro fator que explica esta animosidade em relação ao apoio ucraniano — e que se relaciona com a conjuntura política eslovaca. Neste sentido, Zuzana Čaputová avisou que o país está a enfrentar um “período muito difícil”: “Não vejo apenas polarização, mas também fragmentação na nossa sociedade”. E isto é, em grande medida, fruto da instabilidade política. A antiga coligação que governou a Eslováquia desde 2020 até dezembro de 2022 (tendo depois dado origem a um governo de minoria, a uma moção de censura e depois a um governo interino) demonstrava inúmeros diferendos internos — e não se conseguia colocar em acordo em vários tópicos.

Além disso, a coligação teve de enfrentar a pandemia, o início da guerra na Ucrânia e o aumento de custo de vida gerado pelo conflito. Tudo isto levou a que apenas 18% dos eslovacos confiem no governo e 37% na Presidente, segundo dados do relatório do think tank Globsec. “A governação instável e caótica, incluindo a queda do governo em dezembro de 2022, foi acompanhada por tentativas de atores domésticos e estrangeiros que tentavam minar o laço transatlântico e a democracia, tendo contribuído para uma queda histórica na confiança das instituições públicas”, refere o estudo.

Como os atuais governantes (e os antigos) mantinham um posicionamento pró-Ucrânia, persiste igualmente, na sociedade eslovaca, uma espécie de associação ao apoio da Ucrânia à instabilidade e aos falhanços governativos. Cria-se, assim, um terreno fértil para a difusão de propaganda russa abertamente contra o Ocidente e a NATO.

Um passado de múltiplos escândalos

Em 2018, milhares de eslovacos saíram às ruas. O motivo? Recaía sob o governo chefiado pelo primeiro-ministro de então, e atual candidato do Smer-SD, Robert Fico, uma grave acusação: vários elementos que pertenciam ao executivo estariam envolvidos no assassínio de um jornalista de 27 anos, Ján Kuciak, e da sua noiva, Martina Kušnírová. Kuciak estava a investigar alegadas fraudes fiscais praticados por altos dirigentes políticos, que estariam ligadas à máfia italiana.

O episódio causou uma verdadeira crise política, ainda para mais com as relevações de que a morte de jornalista tinha sido politicamente motivada. O ministro do Interior, Robert Kaliňák, demitiu-se na sequência do escândalo, estando ainda para mais o seu nome ligado com o caso que Ján Kuciak investigava. Entrando num verdadeiro braço de ferro com a presidência e com a oposição, Robert Fico tentava resistir, mas acabou por se demitir.

Apesar deste percalço, Robert Fico não abandonou a vida política. Confiou o governo a Peter Pellegrini e o Smer-SD continuou a governar a Eslováquia até 2020, ano em que o seu protegido foi novamente o rosto do partido nas eleições parlamentares daquele ano. Mas perdeu as eleições, dando lugar a uma coligação de direita.

Esta não foi a única derrota política de Robert Fico, um veterano da política eslovaca, que passou pelo Partido Comunista da Checoslováquia e por várias formações partidárias de centro-esquerda. Nascido na cidade de Topoľčany em 1962, o homem ocupou o cargo de primeiro-ministro eslovaco de 2006 a 2010 e de 2012 a 2018 (com uma maioria absoluta pelo meio) e que entretanto voltou ao poder. Durante os primeiros anos em que governou, acumulou escândalos, mas isso raramente beliscou a sua popularidade, conseguindo afastar-se sucessivamente das controvérsias de que era alvo.

Ainda no ano passado, em agosto de 2023, rebentou mais um escândalo. O chefe dos serviços de contraespionagem da Eslováquia, Michal Alac, foi detido, depois de ser acusado de estar envolvido numa rede de corrupção que tinha como finalidade manipular as investigações abertas contra antigos altos dirigentes, incluindo aqueles que fizeram parte dos governos do Smer-SD.

O chefe dos serviços de contraespionagem e também o seu antecessor, Vladimir Pcolinsky, tentavam descredibilizar a reputação e pressionar os juízes envolvidos em investigações de corrupção de membros de antigos governos liderados por Robert Fico. Por conta da proximidade com as eleições, o tema entrou invariavelmente na campanha — e o líder do Smer-SD aproveitou para denunciar o que diz ser uma cabala política contra ele.

Juntando-se às acusações, tornadas públicas em 2022, de que Robert Fico tinha apoiado a formação de grupos criminais dentro das instituições estatais, o político descreveu, num comunicado citado pela Deutsche Welle, que havia uma “guerra dentro da polícia”. “Os representantes do governo, da Presidente e do espetro político progressistas na Eslováquia estão a tentar controlar o Estado”, criticou, falando mesmo num “golpe policial” e numa tentativa de manipular as eleições.

De regresso ao poder em 2023, Fico manteve alguns desses comportamentos. Como primeiro-ministro, tentou travar várias investigações judiciais a membros do Smer, promovendo alterações legislativas para desmantelar o gabinete do procurador especial que investiga este tipo de casos. Ao mesmo tempo, assumiu posições críticas dos media e tentou criar um organismo novo para controlar os órgãos estatais.

Durante o processo de discussão dessas leis, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que pedia que, caso as alterações se concretizassm, a Eslováquia fosse incluída na lista de países que colocam em causa o Estado de Direito. Tal decisão por parte da Comissão Europeia — que até agora não aconteceu — poderia por em causa a entrega de fundos europeus ao país.

A proximidade com Viktor Orbán

A mensagem contra o Ocidente e contra os apoios à Ucrânia de Robert Fico encontram paralelismos com o que Viktor Orbán tem defendido desde o início da invasão. As medidas tomadas pelo primeiro-ministro húngaro são mesmo muitas vezes elogiadas pelo Smer-SD. A própria Presidente da Eslováquia disse publicamente temer que um governo de Fico viesse a adotar uma política externa “similar” à da Hungria. 

Se bem que em termos de políticas sociais e de formação de governo a história seja diferente, certo é que a Eslováquia poder-se-á juntar à Hungria na oposição ao apoio ucraniano dentro da NATO e na União Europeia, terminando com o aparente isolamento húngaro de manter uma atitude de apoio bastante limitado a Kiev e de neutralidade face à Rússia. Em meio ano de governo, tal não se concretizou: Fico não só não levantou barreiras aos apoios europeus à Ucrânia, como reforçou a própria contribuição do seu governo em algumas áreas.

Ao mesmo tempo, contudo, manteve a retórica crítica do regime de Kiev. Aquando da discussão de um dos pacotes de ajuda europeus, Fico classificou a Ucrânia como “um dos países mais corruptos do mundo” e exigiu garantias de que o dinheiro não seria desviado. Meses mais tarde, fez declarações públicas em linha com a narrativa do Kremlin, dizendo que a Ucrânia “não é um país independente e soberano”, mas sim uma nação sob “influência e controlo totais” dos Estados Unidos.