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Amy Bix, historiadora da ciência na Universidade do Estado de Iowa
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Amy Bix, historiadora da ciência na Universidade do Estado de Iowa

Amy Vinchattle/Iowa State University

Amy Bix, historiadora da ciência na Universidade do Estado de Iowa

Amy Vinchattle/Iowa State University

Amy Bix, cientista das vacinas, conta as polémicas desde a Idade Média. Há uma princesa de Gales, vacas e até Elvis Presley nesta história

Historiadora Amy Bix conta em entrevista como se injetava varíola na Idade Média e a princesa de Gales importou a prática. As experiências em órfãos e presos. E porque vem da palavra 'vacca'.

    Índice

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A história começa muito anos antes das peculiares e questionáveis experiências que levaram Edward Jenner a criar a primeira vacina do mundo. Já na Idade Média as civilizações procuravam induzir alguma imunidade que pudesse evitar quadros clínicos mais graves da varíola, uma doença que matava três em cada 10 infetados, deixava cicatrizes terríveis nos corpos de quem sobrevivia e dizimou os aztecas e os incas.

Naquela altura altura, e nem sequer depois, quando se inventaram as vacinas como agora as conhecemos, ninguém sabia exatamente o que estava a fazer. Os microscópios estavam por inventar, as bactérias e vírus estavam por descobrir, mas a promessa de escapar a doenças mortíferas como a varíola bastava para que as pessoas esticassem o braço e aceitassem que alguém lhes fizesse um corte para introduzir um pouco de um líquido amarelado repleto de microorganismos infecciosos.

Muito mudou desde então, mas agora o mundo vê-se novamente a braços com uma pandemia, a de Covid-19, que promete revolucionar uma vez mais a história da medicina, sobretudo no que à vacinação diz respeito, e que Amy Bix, investigadora do Departamento de História da Universidade do Estado do Iowa, estuda há anos. Em entrevista ao Observador, a historiadora revela como a evolução das vacinas envolve uma Princesa de Gales, uma bonita mulher desfigurada pelas doenças, vacas e, mais tarde, Elvis Presley.

Percebeu que havia essa prática, havia um grupo de curandeiras, mulheres mais velhas, que inoculavam pessoas com um pouco de varíola fazendo cortes nos braços. Os cortes em compridos e fundos, mas ela tinha com tanto medo disso que decidiu que queria o seu próprio filho protegido dessa maneira. Achou aquilo uma coisa tão maravilhosa que escreveu aos amigos em Inglaterra sobre a técnica
Amy Bix, historiadora da ciência da Universidade do Estado de Iowa

Quando é que alguém teve a ideia de criar imunidade a uma doença?
A história da vacinação começa em algumas partes da Ásia e de África, na Idade Média. Estas civilizações perceberam que era possível dar às pessoas o que elas esperavam ser um caso moderado de varíola, tirando um pouco de pus na ponta de uma agulha de alguém infetado e colocando-o sob a pele de outra pessoa. A ideia era desenvolverem um caso leve e impedir quadros clínicos mais graves. Ora, eles não estavam minimamente perto de explicar em termos biológicos porque é que isto funcionava, não sabiam como funcionava o sistema imunológico. Foi mais uma coisa observacional.

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Mas, considerando o quão má a varíola era, até mesmo estas noções impressionistas eram valiosas porque a doença era devastadora em todo o mundo. Matou cerca de 30% ou mais das pessoas que a apanharam. Mesmo aqueles que sobreviviam ficavam desfigurados, com cicatrizes muito graves no rosto e no corpo, a ponto de algumas pessoas terem cometido suicídio por aquilo ser tão devastador.

Como é que essa técnica chegou ao ocidente?
A figura-chave é uma mulher chamada Lady Mary Montagu, que era muito bonita e cresceu na classe alta britânica, mas contraiu varíola e ficou com cicatrizes graves, o que a deixava muito constrangida. Mesmo assim, talvez por ser rica, fez um casamento muito bom e o marido tornou-se embaixador na Turquia no final do século XVII. Enquanto estava lá, conviveu com mulheres turcas nativas nos banhos comunitários e reparou que elas não pareciam ter as cicatrizes de varíola que ela e tantas mulheres na Europa Ocidental tinham.

Decidiu saber um pouco mais sobre isso e percebeu que havia essa prática, um grupo de curandeiras, mulheres mais velhas, que vacinavam pessoas com um pouco de varíola fazendo cortes nos braços. Os cortes em compridos e fundos, mas ela tinha tanto medo da doença que decidiu que queria o seu próprio filho protegido dessa maneira. Achou aquilo uma coisa tão maravilhosa que escreveu aos amigos em Inglaterra sobre a técnica e, quando voltou para casa, tentou importar essa prática — tentou convencer médicos e mulheres de que eles deveriam adotar aquela forma de deliberadamente dar às pessoas um pouco de exposição à varíola, para tentar prevenir um caso mortal.

Lady Mary Montagnu com o filho Edward Wortley Montagu, que recebeu o tratado contra a varíola. Apesar das cicatrizes, a mulher foi retratada sem elas.

Wikimedia Commons

Foi logo aceite?
O problema era, em parte, o facto de ser uma mulher sem qualquer tipo de formação médica a tentar chegar aos médicos que tinham frequentado as grandes escolas de medicina de Edimburgo e Oxford. Eles limitavam-se a dizer: “Porque é que te deveríamos ouvir?”. Outro problema era ser uma prática vinda de países que muitos deles, infelizmente, consideravam atrasados. Então questionavam-se: “Porque é que a Inglaterra, com os seus grandes eruditos e tanto conhecimento, deveria adotar esta prática vinda de mulheres camponesas do meio do nada?”.

Existiam todos esses preconceitos, mas como Lady Montagu era bem relacionada, conseguiu convencer algumas pessoas importantes, nomeadamente a Princesa de Gales, um membro da família real! A Princesa também estava desesperada para proteger os seus filhos, por isso quis que as suas filhas fossem tratadas daquela forma. Mas quando se tratou de vacinar o filho, o futuro rei de Inglaterra, o pai disse: “Bem, não tenho muitas certezas sobre essa prática, é um pouco estranha”. Ou seja, ainda mantinha algumas suspeitas.

As cobaias eram bebés e crianças, muitos deles órfãos, ou reclusos que estavam no corredor da morte, que eram libertados se não lhes acontecesse nada. O primeiro teste que o Edward Jenner fez foi num rapaz pequeno, que foi deliberadamente infetado com a varíola bovina. Recolheu um pouco do pus de uma leiteira e depois inseriu-o sob a pele do rapaz.
Amy Bix, historiadora da ciência da Universidade do Estado de Iowa

Como chegamos então à verdadeira vacina contra a varíola?
O que realmente fez a diferença, pelo menos no mundo ocidental e no que diz respeito à ciência da vacinação, foi quando um médico rural chamado Edward Jenner percebeu que as leiteiras, que trabalhavam com vacas a toda a hora, desenvolviam uma doença chamada varíola bovina, que parecia estar relacionada com a varíola normal em alguns aspetos — por exemplo, nos efeitos que tinha na pele — mas que nunca foi tão mortal. E embora ele não conseguisse explicar porquê, porque não tinha o conhecimento biológico do que se passava, essa observação foi suficiente para começar a fazer experiências. Alguns dos testes que fez seriam considerados completamente antiéticos de acordo com nossa prática moderna de bioética.

Vacina, uma palavra que vem do latim ‘vacca’, mas que foi testada de forma pouco ética

É daqui que vem a palavra “vacina”, certo?
A palavra “vacina” vem do trabalho que Edward Jenner fez porque é derivada — e provavelmente sabe melhor do que eu por ser portuguesa — da palavra latina “vacca”, que significa “vaca”. É divertido pensar que, no nosso uso das palavras “vacina” e “vacinação”, tenhamos esse histórico da varíola bovina e da varíola humana embutida nelas.

Como eram então testadas essas vacinas da tal forma pouco ética?
As cobaias eram bebés e crianças, muitos deles órfãos, ou reclusos que estavam no corredor da morte, e que assim eram libertados se não lhes acontecesse nada. O primeiro teste que o Edward Jenner fez foi num rapaz pequeno, que foi deliberadamente infetado com a varíola bovina. A ideia era a mesma: recolheu um pouco do pus de uma leiteira que tinha varíola bovina e depois inseriu-o sob a pele do rapaz. E, claro, isto tudo sem grupos de controlo, sem ensaios clínicos em ratinhos ou qualquer coisa do género.

Edward Jenner introduz a primeira vacina do mundo a James Phipp, a cobaia de oito anos

Wikimedia Commons

Portanto, não é uma parte bonita da história, mas definitivamente que aconteceu. É como a história de algumas das primeiras cirurgias ginecológicas, que foram feitas primeiro em escravas aqui nos Estados Unidos. Para os nossos olhos modernos, isso é absolutamente terrível. Mas, na época… Algumas pessoas levantaram questões, houve alguns médicos que olharam para coisas deste género e avisaram que era um abuso, era moralmente errado. Mas não havia regulamentos formais que o impedissem.

Com o passar do tempo, começaram mesmo a desenvolver-se alguns instrumentos médicos especializados que foram concebidos propositadamente para este fim e entraram nos kits de ferramentas dos médicos. Durante muitos séculos não houve as grandes empresas farmacêuticas que temos hoje. Nada era padronizado nem foi controlado, não havia nenhum tipo de diretrizes ou regulamentos. Portanto, a produção e distribuição destas vacinas era bastante informal e os médicos geralmente faziam isso a nível local. Agora estamos habituados a vacinas que vêm em pequenos frascos pré-medidos, todos recebem exatamente o mesmo, há controlo de qualidade, temos todos esses sistemas de testes e regulamentação. Mas eles não tinham nada parecido com isso. Só no século XX é que se começou a ter essa padronização.

Mas foi uma descoberta valiosa o suficiente para que a ideia fosse adotada muito rapidamente ao ponto de, no final do século XVII e início do século XVIII, haver várias pessoas em Inglaterra, em algumas partes da Europa e depois na América recém-independente a adotar estas práticas contra a varíola. E isto fez muita diferença. A questão é que, desde o início, sempre houve algumas pessoas mais céticas. Naquele tempo as pessoas diziam que não queriam receber vacinas porque não entendiam como funcionavam, por isso não confiavam.

Que outros problemas e polémicas já houve na história da vacinação?
Houve o caso da vacina contra a poliomielite. Essa vacina é baseada no vírus inanimado, mas houve alguns casos de pólio que foram provocados pela vacinação porque houve um problema num lote, que acabou por levar o vírus ativo. Essa é a parte triste: nada é absolutamente perfeito e estes casos foram realmente uma tragédia. Não estou familiarizada o suficiente com a Europa, mas sei que os Estados Unidos têm um programa que fornece uma compensação para pessoas que foram vacinadas ou que vacinaram os filhos e desenvolveram uma reação negativa. Pronto, não é propriamente um consolo, mas é uma forma de perceber que nada é 100% eficaz. Quando se aplicam milhões e milhões de vacinas, muitas pessoas vão ter reações negativas, mesmo que sejam só 1% do total.

Mas provavelmente a controvérsia mais popular é a falsa associação entre vacinas infantis e autismo. Houve um médico, chamado Andrew Wakefield, que publicou um artigo a afirmar que tinha encontrado uma ligação. Mais tarde, descobriu-se que realmente não existia nenhuma ligação, que as evidências que ele tinha apresentado não existiam. A revista que publicou o artigo retratou-se e agora está muito, muito claro — porque tem havido muitos, muitos estudos — que não há uma conexão direta entre a vacinação infantil e o autismo. Muito do que aconteceu é uma infeliz coincidência: a idade específica em que as crianças mais provavelmente começam a mostrar sinais de autismo acontece na altura em que recebem as vacinas na infância. Portanto, as pessoas presumiam que havia uma conexão causal quando, na verdade, era apenas uma coincidência no tempo.

Chegou-se ao ponto de se ter grupos de pessoas em certas comunidades que se recusavam a vacinar os filhos — e o principal problema é, claro, o termo com que todos estamos familiarizados agora: a imunidade de grupo. A proteção contra algo como o sarampo só funciona se houver um número suficiente de pessoas na comunidade protegidas para que a doença não se torne comum.Quando há uma quantidade crítica de crianças que não foram vacinadas… o sarampo é incrivelmente contagioso: se se estiver numa sala onde alguém com sarampo esteve duas horas antes pode-se ficar infetado à mesma.

Pensaram: "Bem, quem é a maior celebridade que podemos convencer a ser vacinada publicamente, basicamente para chamar a atenção?". Naquela época, só havia uma pessoa: o Elvis Presley. Há um episódio onde o Elvis aparece para um programa de televisão e um médico lhe diz: "Olha, antes de subires ao palco para cantar, e se deixasses que nós te vacinássemos no camarim, tirássemos umas fotos e distribuíssemos pela comunicação social?".
Amy Bix, historiadora da ciência da Universidade do Estado de Iowa

Houve alguns surtos à conta disso. Muitos médicos foram apanhados de surpresa porque muitos deles nunca tinham visto um caso de sarampo antes, porque era tão raro. Mas, de repente, essas doenças voltam a surgir e os médicos tiveram que descobrir o que fazer com eles. Tiveram de voltar aos livros de medicina, aos livros de história. Essa é provavelmente a dimensão da vacinação mais controversa na história recente.

Quando foi preciso usar o Elvis para vacinar pessoas contra a poliomielite

Mas a poliomielite não atingia apenas crianças.
Era conhecida como paralisia infantil porque atingia principalmente crianças, mas podia atingir adultos. O caso com o qual a maioria das pessoas está familiarizada é Franklin Roosevelt, que apanhou poliomielite em adulto. Ele era um homem muito vigoroso e atlético, por isso ficar paralisado daquela maneira foi devastador física e psicologicamente, foi preciso muito esforço para a família e amigos o tirarem daquela depressão. Mas quando voltou para a política, e quando se tornou Presidente dos Estados Unidos, tornou-se um grande defensor das crianças com pólio: organizava recolhas de fundos, ajudou a criar instituições para que elas fossem tratadas.

Eleanor Roosevelt as Disk Jockey

Eleanor Roosevelt faz de DJ numa brincadeiras com crianças com poliomielite. O objetivo da transmissão era gerar interesse num programa de talentos e recolher dinheiro para ajudar crianças.

Bettmann Archive

Mas a poliomielite continuou a ser uma ameaça devastadora até se ter conseguido o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite, trabalho de Jonas Salk e Albert Sabin. E quando ela surgiu levou alguns anos para que a prática de vacinar crianças fosse concluída. Uma história divertida é que se chegou a um ponto em que os médicos queriam convencer mais pessoas a tomar a vacina contra a poliomielite — as crianças mais novas estavam vacinadas, mas ainda havia muitos adolescentes desprotegidos — e queriam experimentar uma grande façanha de relações públicas.

Então pensaram: “Bem, quem é a maior celebridade que podemos convencer a ser vacinada publicamente, basicamente para chamar a atenção?”. Naquela época, só havia uma pessoa: o Elvis Presley. O Elvis era o tipo que todo mundo amava! Portanto, há um episódio onde o Elvis aparece para um programa de televisão e um médico lhe diz: “Olha, antes de subires ao palco para cantar, e se deixasses que nós te vacinássemos no camarim, tirássemos umas fotos e distribuíssemos pela comunicação social?”. Ele concordou e aquilo resultou.

Elvis Presley é vacinado contra a poliomielite nos bastidores de um programa de televisão nos anos 50.

Department of Health Collection, NYC Municipal Archives

Um pouco como agora tivemos Obama, por exemplo, a ser vacinado também.
Sim, porque continua a ter impacto quando todos esses líderes são vacinados publicamente para mostrar confiança no sistema. Se bem que algumas pessoas dizem que agora, com as redes sociais, não é tanto uma questão de ver as celebridades serem vacinadas — é mais uma questão de ver os amigos e familiares no Facebook a serem vacinadas, pessoas do nosso círculo imediato.

Mas uma das coisas importantes sobre as vacinas é que é uma espécie de prova negativa. Nunca se sabe realmente… Podemos adivinhar, mas as pessoas realmente nunca percebem bem quantas vidas foram salvas. Quer dizer, olhe o caso do sarampo. A maioria de nós pensa nisso agora como: “Ah, sim, fica-se com alguns inchaços vermelhos na pele e é isso”. Mas nem sempre foi assim, o sarampo podia matar crianças e matou mesmo! Agora temos algumas pessoas contra as vacinas que dizem: “Não vou vacinar os meus filhos porque não é uma doença assim tão grave”. Pois, mas o sarampo ainda pode ser mortal.

Porque é que a varíola foi a única doença erradicada até agora? 
Estivemos perto de eliminar a poliomielite, mas ainda não chegámos lá. Os locais onde a poliomielite ainda persiste no mundo são alguns dos mais difíceis de tratar — são áreas que estão a meio de uma guerra ou que são de difícil acesso. Mas esse é o triunfo soberano na história da medicina — o facto de termos chegado ao ponto em que fomos capazes de erradicar literalmente a varíola do mundo. Essa é uma daquelas vitórias incríveis. Só de pensar em quantos milhões de vidas foram salvas ao longo das gerações ao eliminar a varíola e depois erradicá-la…

Contava-me sobre os receios que as pessoas tinham de levar as vacinas quando elas foram desenvolvidas. O que motivava esses receios?
Como acontece com qualquer vacina, há sempre a possibilidade de alguma coisa correr mal. Quero dizer, mesmo com as nossas vacinas modernas ainda existem algumas pessoas para as quais não é recomendado clinicamente que tomem a vacina porque podem ser alérgicas a ovos ou alérgicas a alguns componentes de uma vacina específica, ou podem ter algum tipo de condição médica pré-existente. Portanto, há sempre casos, infelizmente, em que há reações más e isso acontece até hoje.

Mas acontecia ainda mais no passado por causa da falta de padronização. Portanto, ter-se medo da vacina não era uma coisa completamente irracional e os humanos são muito maus para estimar o risco — há pessoas que têm medo de voar, embora estatisticamente se corram mais riscos apenas por conduzir ou estando em casa. Só que nós sentimo-nos seguros na nossa própria casa, sentimo-nos confortáveis ​​com ela ao ponto de nem sempre reconhecermos os perigos.

Então os movimentos anti-vacinas são tão antigos quanto a própria vacinação?
Sim, sempre houve este tipo de resistência à vacinação e ela continuou até o século XXI. O que realmente faz a diferença é quando se recebem vacinas que protegem as crianças porque, naturalmente, os pais investem nisso. Um grande exemplo da História é a vacina contra a poliomielite: as pessoas hoje em dia não percebem bem o quanto os pais estiveram aterrorizados durante gerações a fio. É algo que felizmente a maioria de nós no mundo ocidental realmente não viu ou viveu.

Depois, como ninguém entendia exatamente como a doença se espalhava, havia superstições. As pessoas colocavam saquinhos com alho à volta do pescoço dos filhos na esperança de os proteger. Fechavam as piscinas no verão se parecesse haver um surto de poliomielite porque pensava que já se estava a espalhar.

Os medos da vacinação e o caso da Astrazeneca

Quando é que essa padronização começa a ocorrer?
Muito graças a grupos como a Organização Mundial da Saúde. Depois da II Guerra Mundial, fizeram-se esforços muito conscientes por parte de médicos, funcionários de saúde pública, membros do governo e de grupos sem fins lucrativos. Começaram a trabalhar para estender o atendimento de saúde o mais amplamente possível. Uma globalização.

Houve alguns episódios maus nas últimas décadas, quando tentaram desenvolver uma vacina contra a gripe suína porque pensaram que poderia haver um surto e uma epidemia. No fim não houve nada disso e descobriu-se que as reações adversas à vacina eram, na verdade, mais sérias do que a própria doença. Mas esse não foi o caso com a Covid-19.
Amy Bix, historiadora da ciência da Universidade do Estado de Iowa

Quer dizer, houve epidemias e pandemias muito antes da era das viagens aéreas modernas. A peste negra na Europa Medieval espalhou-se mais lentamente do que as pandemias hoje, mas ainda assim espalhou-se porque havia navios entre Itália, Espanha e Inglaterra, e havia viagens por terra. Mas, em meados do século XX, começou-se a perceber que, especialmente com o início das viagens aéreas, a era do jato, era literalmente possível alguém apanhar um avião, entrar num país de manhã e espalhar uma doença ao longo da noite. E perceberam que, se se vai fazer algo como erradicar a varíola, isso precisa de ser um esforço global, porque senão erradica-se num país e alguém vem de outro país com ela e volta-se ao mesmo. Por isso é que grupos como a Organização Mundial da Saúde começaram esta colaboração global, que veio fazer diferença no final do século XX.

É algo interessante com esta pandemia de Covid-19. Viu-se quão internacional a doença em si era e quão internacional foi a resposta, mas ainda assim há estas divisões muito profundas globalmente entre os países que têm mais acesso aos cuidados de saúde e os países que têm menos. E até as pessoas dentro de um país, as subpopulações que têm mais acesso e os segmentos da população que não têm essas vantagens.

Hoje em dia há motivos para se ter medo da vacinação?
É importante que as vacinas passem por todo o processo de testagem. É uma questão importante na Covid-19: as vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde, houve esta incrível concentração de investigação e talento médico a trabalharem no desenvolvimento da vacina. Mas não se limitaram a lançá-las no mercado, sem testar. Passaram pelo processo de testes ampliados — testes em animais, em pequenos grupos com controlo e com uma observação muito próxima. Configuraram tudo o máximo que puderam em pouco tempo, mas o suficiente para não comprometer os resultados. Ainda há um acordo muito claro na comunidade científica sobre o que é importante no que diz respeito a lançar uma vacina.

A questão é que houve alguns episódios maus nas últimas décadas, quando tentaram desenvolver uma vacina contra a gripe suína porque pensaram que poderia haver um surto e uma epidemia. No fim não houve nada disso e descobriu-se que as reações adversas à vacina eram, na verdade, mais sérias do que a própria doença. Mas esse não é o caso com a Covid-19: já era claro que a doença era mortal o suficiente e que se estava a espalhar o suficiente para que fosse importante obter uma vacina.

E assim, sabendo que a cobiçada vacina passou por todas essas rondas internacionais de testes e observação, o fundamental é que as pessoas tenham essas conversas com os médicos e farmacêuticos para se certificarem de que não têm quaisquer doenças pré-existentes que podem tornar clinicamente desaconselhável a toma da vacina. Mas tirando esses casos, não parece que haja muitos motivos para temer a vacina.

Na sua opinião, justificam-se as suspensões à vacina da AstraZeneca?
Pois, a questão da AstraZeneca… Não é claro neste momento se a associação com a coagulação é real ou se é outra daquelas correlações estatísticas. Mas é algo que os médicos estão a observador imediatamente. Portanto, não é como se estivéssemos preocupados em receber hoje uma vacina que só daqui a 10 anos causará coágulos sanguíneos. A biologia não parece funcionar dessa maneira.

Mas, para as pessoas se sentirem confortáveis, acho que pode ter sido uma boa decisão suspendê-la, pelo menos durante algum tempo, até que possamos olhar para os dados mais de perto e descobrir se realmente existe algum tipo de conexão médica ou se é apenas uma coincidência — porque, lá está, quando se faz alguma coisa numa escala tão ampla, vão obter-se casos destes, mas podem ser apenas flutuações estatísticos onde, por uma questão de acaso, houve um aglomerado que está acima do que se poderia esperar. Pode ser uma anomalia estatística, um acaso, ao invés de uma conexão causal.

Mas acho que, para fazer com que as pessoas tivessem confiança, era importante não tentar enterrar isto, não tentar esconder, mas dizer: “Muito bem, vamos olhar para isto de perto”, como se fez com a vacina da poliomielite. O desafio é que estamos literalmente numa corrida contra o tempo, ainda para mais com estas variantes mais contagiosas que já se estão a espalhar.

Mas a questão com a AstraZeneca vai ainda mais longe, porque há esta tensão entre os governos europeus e a farmacêutica por causa do incumprimento dos prazos para entrega das vacinas. Há outros exemplos desta relação tensa no passado? 
Não, não me recordo de nada que seja comparável a isso na história das vacinas. Essa é uma pergunta interessante… Não sei de nenhum paralelo exato, embora fosse interessante examinar. Sabe, isso é outra coisa interessante da Covid-19: temos todas estas vacinas que foram desenvolvidas por empresas diferentes em países diferentes e tornaram-se conhecidas dessa forma — a vacina chinesa, a vacina russa, a vacina britânica. E isso adiciona aquele elemento de política internacional que determina que vacinas acabam por ser exportadas para onde.

Há casos em que me parece justo estabelecer algumas regras. Aqui nos Estados Unidos, algo que acontece há vários anos é que os hospitais e lares de idosos, para protegerem os pacientes, podem exigir que se tome uma vacina anual contra a gripe como uma condição de emprego. Também se exige que os militares recebam vacinas como condição para estar no exército. Suspeito que pode acontecer o mesmo para a Covid-19.
Amy Bix, historiadora da ciência da Universidade do Estado de Iowa

Qual é a sua opinião sobre o passaporte para vacinados?
O melhor exemplo com o qual as pessoas se familiarizaram foi o das viagens. Não se pode entrar em alguns países a menos que se mostre uma prova de como se foi vacinado para determinadas doenças, principalmente contra a febre amarela. Essa é a questão com a Covid-19: vamos avançar em direção a esses passaportes de vacina? O problema não está em poder invadir a casa das pessoas, imobilizá-las e dar-lhes uma injeção. Mas pode-se dizer: “Muito bem, pode optar por não ser vacinado, mas sendo assim não vai poder embarcar num avião ou entrar num país”.

Nesses caso, as pessoas têm que escolher as vantagens e desvantagens: querem tomar vacina e usar um passaporte como a prova que lhes permite ter essa liberdade ou optam por não tomar a vacina e sabem que isso simboliza alguns constrangimentos em determinadas áreas da vida.

Mas qual acha que é a coisa mais razoável a fazer: ter esses passaportes ou não?
Essa é uma questão política, uma questão filosófica. Forçar as pessoas… Uma coisa em que passámos a acreditar no século XXI foi no princípio bioético da autonomia sobre os nossos próprios corpos. Temos de dar consentimento informado em medicina antes de fazerem experiências de investigação em nós, precisamos de assinar documentos que explicam quais são os riscos antes de se fazer uma cirurgia. E dizem-nos: “Estes são os benefícios que se pode esperar e estes são os riscos. A decisão é tua”. Especialmente depois do Holocausto, temos regras bioéticas muito importantes no que diz respeito ao que deve e não deve ser feito em termos de princípios sobre o respeito a violar o controlo das pessoas sobre os seus próprios corpos. Esta questão envolve todo o tipo de debates éticos complicados.

Por outro lado, há casos em que me parece justo estabelecer algumas regras. Aqui nos Estados Unidos, algo que acontece há vários anos é que os hospitais e lares de idosos, para protegerem os pacientes, podem exigir que se tome a vacina anual contra a gripe como uma condição de emprego. Também se exige que os militares recebam vacinas como condição para estar no exército. Com a Covid-19 não se está a fazer isso ainda porque ela ainda tem este estatuto de vacina experimental. Mas suspeito que, quando chegar ao ponto em que a vacina passa para o próximo nível de formalidade médica, também se possa seguir estes moldes.

Mas as crianças precisam de apresentar um boletim com determinadas vacinas para se inscreverem na escola, por exemplo. Não é a mesma coisa?
Nos Estados Unidos isso tornou-se problemático porque havia alguns estados que permitiam que os pais obtivessem uma isenção religiosa ou uma isenção filosófica. Bastava encontrar um médico simpático que concordasse com eles. O problema é que, se um número suficiente de pais fizer isso, perde-se a imunidade de grupo. Por isso, requerer vacinas antes de as crianças entrarem na escola é um nível importante de proteção. Mas é a tal coisa: ninguém vai bater à porta dos pais dessas crianças e vaciná-las à força — ou seja, não é absolutamente obrigatório, nem 100% eficaz. E com adultos a tarefa torna-se ainda mais árdua porque não há esse mecanismo que é a escola.

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