É uma defensora acérrima da geringonça e não tem gostado de ver António Costa a pedir insistentemente a maioria absoluta — que é sempre “perigosa e indesejável” — deixando para trás uma solução à esquerda que fez o país “crescer excecionalmente”. Considera mesmo a atitude de Costa, ao recorrer a Marcelo Rebelo de Sousa para assegurar que o Presidente da República pode garantir o equilíbrio do sistema em caso de maioria, “patética”.
Em entrevista à Vichyssoise, Ana Gomes apresenta-se, como sempre, com poucos filtros — diz que isto é sinal de que tem “críticas construtivas” a fazer e não pensar “pela cabeça do chefe”. O chefe, agora, é António Costa; mas não esconde que um dia quer ver Pedro Nuno Santos como primeiro-ministro. Quão cedo? Nos desafios a que tem de responder no final do programa, assume: daqui a um ano, preferia ver Pedro Nuno — e não Costa — a chefiar o Governo.
[Oiça aqui o programa completo da Vichyssoise:]
https://observador.pt/programas/vichyssoise/a-patetice-de-costa-e-o-nao-papao-pedro-nuno/
Acompanhou o debate de ontem (entre Rio e Costa) e foi dando disso conta através do Twitter. No fim deu a vitória a António Costa, embora criticando a pouca discussão política e a preocupação com a Europa e o mundo. O líder do PS não deixou claros todos os cenários de governação? Isso deve preocupar um eleitor socialista?
A questão foi tratada, mas de forma insuficiente. Não foi perguntado a Rui Rio o que fará se precisar de uma aliança com a extrema-direita para governar e devia ter sido; também não foi perguntado ao primeiro-ministro se o PS deixará o PSD entregar-se à extrema-direita em caso de o PSD ter condições para formar Governo.
Devia deixar claro que viabilizaria esse Governo.
É uma questão de sanidade do regime democrático. O PS devia pronunciar-se claramente nesse sentido e o primeiro-ministro, esteja ou não esteja [nessa altura], vincula o PS.
António Costa está limitado nos cenários que tem à disposição? Uma maioria absoluta começa a ser o único caminho para que Costa consiga liderar um governo?
Esse é claramente o objetivo do primeiro-ministro, foi muito explícito depois do debate. (Risos) Achei muito singular que ele se tivesse encostado ao Presidente da República para dizer que ele jamais deixaria que uma maioria absoluta pudesse o pé em ramo verde, como no passado…
Não acredita que Marcelo fosse o grande garante do equilíbrio do sistema.
Acho quase patético que isto seja evocado como argumento para o objetivo da maioria absoluta, ainda por cima quando há uma contradição fundamental: tanto o primeiro-ministro como o PR, que tem também a sua quota parte no precipitar da crise que levou a estas eleições, acenaram sempre com a estabilidade como grande objetivo do país. A estabilidade e governabilidade não são compagináveis com algumas das alternativas que o primeiro-ministro admitiu, designadamente a ideia de poder ficar a governar diploma a diploma. Onde é que há estabilidade aí?
Acha que uma maioria absoluta de um Governo de Costa seria perigosa?
Uma maioria absoluta por qualquer Governo seria perigosa e indesejável, contrária à saúde democrática do país neste momento. Não concordo que por um lado se diga — como o primeiro-ministro ontem bem marcou — que foi graças à geringonça que o país cresceu excecionalmente, e isso tem a ver com políticas que até tiveram origem nos parceiros, e depois se deixe cair essa geringonça, que ainda por cima não teria atingido esses objetivos se não tivesse tido também a paz social que ela implicou. Não percebo que agora se ponha isso de lado e se acene com uma estabilidade obviamente muito inferior aos anos de geringonça, de governar diploma a diploma ou com orçamentos de queijo limiano.
Agrada lhe este cenário que António Costa colocou em cima da mesa de uma coligação com o PAN? Parece lhe também um parceiro confiável?
É uma questão que tem de ser vista depois dos resultados, e sabemos que o PAN está disponível para governar ou apoiar uma solução. Tem contribuições positivas, não pode de maneira nenhuma ser desperdiçado. Agora, eu sou de esquerda e quero um Governo à esquerda, não compreendo que se troque uma geringonça que deu estabilidade, crescimento e paz social pelo objetivo dificilmente alcançável de uma maioria absoluta.
Costa diz que perdeu a confiança na geringonça. A culpa foi do primeiro-ministro?
Isso não aconteceu agora, mas em 2019, quando havia a possibilidade de se fazer uma geringonça de outro tipo — o PCP tinha-se posto fora — e isso foi descartado pelo PS. O PS tem responsabilidade nisso.
Como é que a geringonça funcionaria melhor? Com PAN, BE, PCP…
Não quero dar para esse peditório porque fundamental vai ser o resultado das eleições. O que deve ser claro é que não se fazem alianças ou viabilizam Governos com a extrema-direita envolvida. Nesta fase é mais útil discutir os assuntos de substância e ver as diferenças. E ontem no debate houve muitas questões interessantes e discutidas, está longe de ter resolvido a corrida — mas considero que o primeiro-ministro ganhou e que Rui Rio, tendo levantado muitas questões que suscitam preocupações as cidadãos, não tem boas soluções na manga; algumas até são perigosas.
Na Justiça?
Na Justiça sem dúvida — tem algumas ideias fixas que não correspondem aos principais problemas. Mas perigoso parece-me sobretudo o modelo de privatização do SNS, que é o que ele trouxe para cima da mesa. O PS tem de pedir explicações e todo o país tem de esmifrar melhor o que significam essas propostas.
É do PS. Mas em algum momento pensou que seria mais útil votar no Livre ou no BE ao longo desta campanha?
Não. Ser do PS não implica ser acrítica; acho que justamente ser do PS é ser crítico e as minhas críticas têm um propósito construtivo. No PS há muita gente que não pensa só pela cabeça do chefe. Embora o debate esteja muito afunilado como se estivéssemos a fazer a escolha entre dois primeiros-ministros, estamos também a escolher deputados. Aqui as responsabilidades são do PS e há muitas questões em que tem de ter soluções para o país. Não pode estar determinado apenas por uma estratégia, que é a deste primeiro-ministro.
Se o PS tem essa responsabilidade e teve culpa na crise, em que é que deve ceder à esquerda a partir de agora? Costa ainda ontem dizia que tinha o Orçamento pronto a entregar, mas se precisar de apoio à esquerda vai ter de voltar a negociar.
Devo dizer que essa foi uma das passagens do debate de ontem que me deixou mais perplexa. O primeiro-ministro está a agarrar-se a um orçamento que já foi chumbado. Por outro lado, tem razão quando diz para aguardar pelos resultados de dia 30 e que tudo tem de estar em aberto. Continuo a pensar que, se for possível uma aliança do PS, esperando que o PS seja o partido mais votado, o PS tem que estar disponível para uma aliança com os partidos que estiverem disponíveis à esquerda. É daí que vai derivar a estabilidade e as mudanças de que o país absolutamente precisa. Não podemos de continuar sem as mudanças de fundo.
Mudando leis laborais, por exemplo?
As questões das leis laborais são óbvias, basta ver o se que está a fazer em Espanha e em Portugal não. As questões da fiscalidade também são de facto essenciais. Não são mudanças cosméticas que são precisas, são mudanças de fundo que não continuem a agravar tanto quem vive dos rendimentos do trabalho e a dar tantos benefícios a quem vive dos rendimentos de capital. O primeiro-ministro esteve bem a defender, apesar de tudo, as melhorias nos escalões de IRS, enquanto nessa matéria Rui Rio atira para as calendas. Em contrapartida, penso que a resposta do PSD de baixar o IRC é mais clara, mas nenhuma dessas questões resolve a questão de fundo do desequilíbrio entre o agravamento do trabalho e de quem vive dos rendimentos de capital que é uma questão que tem de ser assumida para não continuarmos a alimentar as desigualdades que põem em causa a própria sustentabilidade da democracia.
Disse que o PS tem pessoas que não pensam só pela cabeça do chefe, um deles é Pedro Nuno Santos, não pensou pela cabeça do chefe nas presidenciais e apoiou-a publicamente. Como é que olha para a hipótese que Rui Rio colocou ontem da saída de António Costa e este surgimento de Pedro Nuno Santos para viabilizar um governo mais à esquerda?
Pedro Nuno Santos não é nenhum papão. [Risos]
Nem um fantasma, António Costa disse ontem que não era um fantasma, que era uma pessoa bem real.
Não é nenhum papão e tem demonstrado quer como negociador fundamental nos quatro anos de geringonça, quer agora com a prestação como ministro das infraestruturas que é sério, tem uma perspetiva de futuro, é determinado, quer mudanças para o país. Sem dúvida que Pedro Nuno Santos é uma alternativa.
Pedro Nuno Santos teria melhores condições que António Costa para reabrir esse diálogo
Essa questão neste momento não se põe. O candidato que o PS apresenta a primeiro-ministro é António Costa, depois de dia 30 veremos. No futuro não tenho dúvida nenhuma que Pedro Nuno Santos será um grande primeiro-ministro deste país.
Consegue olhar, agora que chegaram ao fim os debates, e fazer um balanço do desempenho do primeiro-ministro? É positivo?
É misto. Basta ver o que disse o primeiro-ministro ontem, que também me surpreendeu, de admitir que não tinha cumprido a promessa que por duas vezes fez, em 2015 e 2019, de dar um médico de família a cada português e a conclusão normal seria ‘agora é que é, mas não, largou e não faz mais essa promessa. É o tipo de contradição que depois também explica as razões de fundo de muita gente estar inquieta sobre o Serviço Nacional de Saúde e que dá origem à indignação de que Rui Rio se fez eco, sendo que depois Rui Rio tirou dessa indignação consequências do meu ponto de vista muito perigosas e negativas que podem pôr em causa o SNS. Esta ideia de dar médicos assistentes provisórios, transitórios, sem quantificar quanto custaria ao Estado. Sabemos que isso é uma medida que depois nunca seria retirada. O que era preciso fazer era aquilo que não foi feito, contratar mais médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar com perspetivas de carreira para não continuarem a sair para o privado ou emigração.
Catarina Martins, Rui Tavares ou mesmo Inês Sousa Real, os três também estiveram bem
Acho que houve excelentes prestações nestes debates e que foram úteis embora muitas matérias não tenham sido abordadas. Preocupa-me muito que questões essenciais, desde logo a questão na natalidade, do combate à emigração dos jovens mais qualificados e a organização e integração da imigração que temos necessidade. Os parceiros sociais vieram dizer que é preciso combater os vistos gold, nenhum dos dois líderes do PSD ou PS foram confrontados com essa pouca vergonha que são os vistos gold e os efeitos perniciosos, designadamente na natalidade como dizem os parceiros sociais. As questões da segurança, em particular da cibersegurança. Estamos a ver o ataque a sete ministérios na Ucrânia, na semana passada o Expresso e a SIC viveram um ataque também e que isto não entre no debate no momento em que temos de fazer a transição digital. As questões da transição climática, da educação e ciência essenciais. Não foram tratados no debate de ontem e em poucos foram tratados, acho que foi útil ter estes debates e que houve muito boas prestações, desde logo Rui Tavares que foi uma excelente surpresa. As prestações de Catarina Martins foram muito boas, de grande preparação. Penso que as contribuições do PAN também são úteis. O PAN tem uma perspetiva especial, com muita sensibilidade aos aspetos, não é só do bem-estar animal, mas do modelo de produção extrativista de que nós não precisamos e temos de nos livrar, para poder responder, de facto, aos desafios que temos para salvar o planeta. Portanto, são diferentes contribuições que acho que foram todas muito úteis, incluindo as do PCP que esteve obviamente diminuído na prestação de Jerónimo de Sousa, mas que também foi muito significativa com a contribuição de João Oliveira há dois dias.
Há pouco falava na prestação de Rui Tavares, ele que ganhou grande projeção pela maneira como enfrentou André Ventura, que foi também, aliás, um dos seus adversários nas Presidenciais. Os líderes partidários têm sabido enfrentar e debater com o líder do Chega? Já disse, por exemplo, que Francisco Rodrigues dos Santos esteve bem.
Não. Francisco Rodrigues dos Santos decidiu ir à lama e fazer o combate na lama com as armas de um partido da extrema-direita, deu gozo a muita gente, incluindo a mim, mas obviamente não é o tipo de combate que eu recomendasse a quem quer que fosse de líderes de partidos mais substanciais. (Risos)
Deu-lhe algum gozo ver Francisco Rodrigues dos Santos a enfrentar André Ventura?
Deu-me, sem dúvida. Mas obviamente não poderia fazê-lo e, em certo sentido, o Rui Tavares demonstrou como é que efetivamente se pode, pela substância, combater André Ventura.
Também foi corrosiva e agressiva no debate que teve com André Ventura. Talvez um misto entre André Ventura e Francisco Rodrigues dos Santos.
Aqui, além dos políticos terem responsabilidades porque, no fundo, acabam por se deixar contaminar pela agenda da extrema-direita, é isso que estamos a ver no nosso país, há uma particular responsabilidade da justiça e, em particular do Tribunal Constitucional, que se tenha tido em relação a questões processuais, designadamente em relação ao partido da extrema-direita, e não vai às questões de fundo. Questões de fundo que foram até assinaladas por Rui Rio recentemente quando disse que estamos perante um partido que quer destruir o regime democrático. E que o TC não tenha tomado ainda, até hoje, posição sobre isso deixa-me muito preocupada.
Carne ou peixe: Quem deve ser primeiro-ministro daqui a um ano? “Pedro Nuno Santos”
Passamos agora para o segmento Carne ou Peixe, em que tem de escolher uma de duas opções Quem é que preferia fosse primeiro-ministro daqui a um ano: António Costa ou Pedro Nuno Santos?
Pedro Nuno Santos.
Com quem preferia indicar para a substituir no espaço de comentário na televisão, se não estivesse disponível: Rui Tavares ou Catarina Martins?
Depende dos temas. Sou amiga de Rui Tavares e também muito respeito e vejo que Catarina Martins sabe preparar-se e tem por trás uma força política que dá peso às suas posições.
Se tivesse que pintar os lábios de alguém com baton vermelho eram os de André Ventura ou de Francisco Rodrigues dos Santos?
Só pinto os meus lábios.
A quem é que confiava a sua palavra passe do Twitter: Rui Pinto ou Paulo Pedroso?
(Risos) Isso não se confia a ninguém.