Alzira Quevedo
76 anos, Barraca da Boavista
"O fogo veio todo de baixo. Eu e o meu marido começámos a ouvir uma zoada muito grande para o lado de Pedrógão. Vimos o fumo, depois veio a trovada. Disse para o meu marido: ‘Ou fugimos, ou morremos queimados’. O meu marido é muito agarrado à casa e só quando viu lume ao pé do vizinho é que aceitou sair comigo e com o nosso sobrinho. Fui buscar as chaves do carro, desci a escada. Quando abri a porta do carro veio um furacão muito grande e já nem tive tempo de ir para o volante. Fugimos os três a pé. Mas o meu marido olhou para trás e viu que abriu uma fogueira atrás da casa. Deu-lhe na cabeça para voltar para trás. Eu gritei muito por ele, gritei, gritei, gritei, mas ele não voltou. Só via lume, os pinheiros estouravam, os cavacos caíam por todo o lado. Pensei que se voltasse atrás para ir buscá-lo morríamos ali os três. Fugi com o meu sobrinho, descemos a estrada a correr. O meu marido ficou para trás.
Chorei logo a morte do meu marido. Não o encontrava por lado nenhum. Mesmo assim, fui a um barracão aqui de um vizinho, onde estava muita gente, e perguntei por ele. Apontaram-me para um cantito e ele lá estava. Parecia um ninguém. Disse-me que veio a arrastar-se pela estrada, porque ele não podia com as pernas. Só depois é que chegou uma equipa de bombeiros, da Castanheira de Pera, que o levaram para o hospital. Eu fiquei sozinha na rua, com o meu sobrinho."
Ivone Silva
71 anos, Salaborda Velha
"Isto foi no domingo. Domingo?! Estou tão baralhada… Já não sei se foi sábado ou se foi domingo. Sábado, sábado. Foi no sábado. Ele começou aqui mesmo em frente a nós. Lá do outro lado da ribeira [de Pera]. E depois começou a ir para o lado de Pedrógão Grande. O vento mudou de repente, começou a soprar mais forte. E ainda era de dia quando chegou aqui ao pé de nós. Ficou tudo escuro de um momento para o outro, não se via nada, nadinha. Aquilo até parecia que caíam bolas à nossa frente – nem sei explicar bem –, como que bolas de fogo. Havia tornados e bolas de fogo que caíam à nossa frente. Eu e o meu marido estávamos a jantar na casa de um primo meu, lá no fundo da aldeia. Entretanto, quando vimos que o fogo estava a chegar ao pé da nossa casa, saímos da casa do meu primo, chegámos aqui, a família em frente estava a ir embora – diziam-nos: ‘Vão-se embora, vão!” –, o meu marido ainda tentou ligar. Ainda tentámos ligar aos bombeiros mas os telefones não funcionavam. Foi então que gritei para o meu marido: ‘Armando, vamos fugir ou morremos todos queimados'. E fugimos."
Maria do Céu Ferreira
57 anos, Pobrais
“O que nos salvou foi o tanque, que estava cheio de água – mergulhámos lá dentro quando o fogo chegou e salvámo-nos. Só aqui na casa à frente da minha morreram-me duas raparigas – uma ainda é minha prima, a outra é afilhada. Mas a casa delas não ardeu – morreram na estrada. A minha Tânia tanto pediu, tanto gritou para elas virem para o tanque e não irem. Não quiseram ficar e a casa está interinha. Inteirinha!… A casa onde vivemos não ardeu, não. Mas os barracões aqui atrás ficaram todos queimados. Como é que foi? Nem sei.
Nós estávamos em casa, aquilo chegou por todos os lados, o vento tinha uma força como nunca vi – até levantou o telhado de metal dos barracões. Nem sei como escapou a casa. Nem sei… Os barracões tinham roupa, cobertores, televisões, mobília de sala, as bicicletas dos netinhos, moto-serras, tinha uma máquina de lavar, um frigorífico – a minha filha mudou-se de Peniche para cá e tínhamos de guardar aqui o que era da outra casa. Mas conseguimos salvar os carros e o trator. Fui eu que os levei daqui, debaixo do fogo. Nem sei como é que consegui. Não sei como é que consegui conduzir o trator até ao largo, não via nada com o fumo, havia labaredas por todo o lado, e pensei: 'Pronto, é o fim… Vou morrer!' [Chora.] Nem me quero lembrar disso.
[Toca o telemóvel de Maria do Céu no avental. Atende-o e volta a emocionar-se mal o faz: ‘Estou? Natalina? Oh… estou mais ou menos. Preciso de ir ter consigo, não temos nadinha, estamos bem, mas preciso de ir ter consigo…’] As galinhas salvaram-se, mas estão a morrer. Os pintainhos estão todos a morrer. Nem me quero lembrar, tudo a arder, tudo a explodir. A nossa sorte foi ter atirado as botijas de gás ao tanque. Ainda lá estão. A seguir fomos nós lá para dentro. Não sei quantas horas é que estive no tanque. Talvez desde as oito da noite até de madrugada. Perdi a noção das horas. Depois de sairmos do tanque, o meu marido ainda foi pedir uma escada emprestada a um vizinho, subiu para cima do telhado, e estivemos a carregar baldes de água do tanque lá para cima, para ele molhar o telhado todo e a casa, para que não ardesse.”
Tony Platt
57 anos, Escalos Fundeiros
"O fogo começou aqui mesmo, em Escalos Fundeiros. Foi mesmo lá em baixo. Nem sei bem onde. Mas sei que foi ao começo da tarde, depois do almoço. Não estava em casa. Estava a sair da aldeia quando me apercebi do fumo. Então, voltei logo para trás. A minha primeira reação foi tirar coisas de valor de dentro de casa e colocá-las no carro. Depois, fui ver se estava alguém na casa do meu vizinho – estava; então ajudei-o a tentar salvar as coisas dele também. Não vieram cá os bombeiros; passavam por aqui, mas só para seguir para outro sítio onde o fogo estava. Isto foi tudo muito veloz, em poucos minutos chegou aqui, em poucos minuto — como o vento era muito forte — estava lá mais abaixo. O fogo chegou às traseiras da casa mas não passou para o lado de cá da estrada. Não sei como é que não passou. A casa está bem."
André Pais
21 anos, Barraca da Boavista
"Eu tinha ido a Pombal com o meu pai tratar de umas coisas para a empresa e chegámos a casa por volta das 19h00. Estava um fumo imenso. O fogo estava para os lados de Pedrógão Grande e então pegámos no trator para o levarmos para longe daqui. Lá onde fomos também havia chamas por todo o lado, eu e o meu pai ainda chegámos a ligar para o 112. Às tantas disseram: ‘Desenrasque-se, isto está tudo a arder e os bombeiros não conseguem chegar aí’. Desisti de procurar ajuda. Comecei logo a dizer mal da vida, porque as chamas estavam mesmo ao nosso lado e tinham cerca de 20 metros de altura.
Nisto tudo, a minha mãe estava sozinha em casa com a minha irmã. Assim que deixámos o trator eu e o meu pai voltámos para trás. Quando passámos na estrada, a nacional 236, já tinha ardido tudo. Estava tudo preto e havia fumo por todo o lado. Vimos três senhoras no chão, deitadas no alcatrão, que quase atropelámos. Queríamos pedir ajuda, mas já não havia rede para os telemóveis, já não havia nada. O meu pai ficou lá e eu fui com o carro pedir ajuda. Falei com a GNR, que só chegaram lá depois de uma hora e tal. Daquelas senhoras, duas acabaram por morrer. E havia ainda um senhor que nem o vimos, mas a polícia encontrou-o com uma lanterna.
Quando vim até casa, vi que o fogo já tinha limpado tudo. Vi uns vizinhos sentados num banco, na rua, e perguntei pela minha mãe. Eles disseram que tinham vindo cá e ninguém tinha dito nada. Fiquei logo a pensar o pior. Quando cheguei a casa só sabia gritar pela minha mãe. Mas depois lá a encontrei. Estava na cave, com a minha irmã."
Maria Edite
53 anos, Vale da Nogueira
"Comecei a ouvir a zoada, a zoada do lume a chegar. Aqui o fogo chegou por volta das seis e meia. Às sete horas a minha casa já ardia. Não tive tempo para tirar nada. O meu homem só conseguiu fugir das chamas com o trator. Não houve hipótese de mais nada. Se a gente tivesse tido hipótese tínhamos levado o porco que estávamos a matar – ao menos tínhamos aproveitado o porco para comer. Ninguém me ajudou. Nós ligámos ao INEM para vir buscar-nos, eles atendiam mas diziam: ‘Tenham calma que a gente já vai’. Mas não vieram. Os bombeiros nem atendiam. Só ardeu a minha casa e a de um vizinho na aldeia."