Considerada a maior reconversão urbanística de um antigo espaço industrial, o loteamento da Matinha em Marvila prevê o reaproveitamento de três dos quatro gasómetros que marcam a paisagem da antiga fábrica de gás de Lisboa, à beira do Tejo. As estruturas dos antigos depósitos serão incorporadas na arquitetura dos projetos a implantar na área.
Estes equipamentos resistiram à desativação do polo industrial de petróleo e gás que durante décadas ocupou a zona oriental de Lisboa. O fecho das unidades de produção e armazenamento de combustíveis (da Petrogal e outras petrolíferas) e de gás foi acelerado pela exposição internacional de 1998, a Expo 98, que abriu caminho à urbanização daquela área da capital no final do século passado.
Com o loteamento B do plano de pormenor da Matinha, que entrou agora em consulta pública, avança-se com “a maior reconversão em Portugal de um antigo, e altamente degradado, espaço industrial, com os respetivos problemas de descontaminação de solos que o mesmo acarreta, numa das mais sustentáveis e integradas zonas habitacionais em Lisboa”. Estes esclarecimentos foram prestados ao Observador pela proprietária e promotora, a VIC (Valuable Investment Capital) Properties.
De acordo com a empresa imobiliária, este loteamento representa cerca de 38% da área total abrangida pelo plano de pormenor da Matinha e será instalado na continuidade de outra grande operação imobiliária, o Prata Riverside Village, desenvolvido pelo mesmo proprietário. Os documentos disponibilizados indicam um investimento de 320 milhões de euros, mas em resposta ao Observador, fonte oficial da empresa remete valores mais concretos para uma fase mais avançada do projeto.
Um dos focos centrais e marcantes desta intervenção passa pelo aproveitamento das estruturas metálicas dos gasómetros (antigos depósitos de gás da Lisboagás) que, no entanto, serão desmontadas da sua atual localização. Três delas serão reintegradas na estrutura dos edifícios e apenas uma será demolida.
Está previsto que “dois destes gasómetros sejam ocupados por uma unidade hoteleira, sendo o terceiro cedido à Câmara Municipal de Lisboa como equipamento”, de acordo com as explicações avançadas por fonte oficial da VIC Properties ao Observador.
No plano de pormenor está indicada a intenção de construir uma estufa, mas este é um projeto que dependerá da autarquia e não do promotor.
A reciclagem destas estruturas resulta do plano de pormenor para a Matinha, segundo o qual as “estruturas dos três gasómetros assinalados na planta de implantação constituem elementos a preservar como memória da ocupação industrial anterior, sendo suscetíveis de reutilização em projetos de equipamento e de hotel, podendo para o efeito a respetiva implantação ser objeto de relocalização. Ou seja, é o próprio plano que impõe que sejam relocalizados e reaproveitados”.
Este princípio remete para a salvaguarda da torre da antiga refinaria da Petrogal que sobreviveu com novas roupagens no cenário do Parque das Nações.
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O estudo de impacte ambiental que acompanha a consulta pública admite a existência de efeitos negativos muito significativos relacionados com a “demolição de ocorrências patrimoniais” (antigos gasómetros). No entanto, os promotores reconhecem a “importância destas estruturas como memória da atividade industrial anterior” e pretendem utilizá-las como elementos estruturais do que vier a ser construído.
Os gasómetros são estruturas usadas para produzir e armazenar gás natural ou de cidade e estão inventariados na carta municipal do património edificado e paisagístico de Lisboa. A fábrica da Lisboagás (empresa que foi integrada na Galp) foi desativada no início deste século. Não em consequência direta da Expo 98, mas pela substituição do gás de cidade (então produzido industrialmente a partir do petróleo — gás de petróleo liquefeito GPL) por gás natural que atualmente é importado via gasoduto e pelo terminal de Sines.
Em conjunto com o Prata Riverside Village, que fica ao lado na frente ribeirinha de Marvila, o projeto da Matinha, segundo a informação dada ao Observador pela VIC Properties, “irá concluir a maior e mais importante requalificação urbana jamais feita por capitais privados privados após a Expo 98”.
Os promotores ainda não têm projetos concretos para a arquitetura, mas referem a existência de vários precedentes espalhados por diversas capitais europeias, “onde tais aproveitamentos de estruturas idênticas foram autênticos sucessos socioeconómicos para as respetivas populações, por exemplo em Kings Cross (Londres) ou em Estocolmo na Suécia”.
A Matinha tem uma área de 20 hectares e um total de 260 mil metros quadrados de área de construção prevista acima do solo. A VIC Properties detém 100% dos loteamentos A e B da Matinha e cerca de 25% do loteamento C.
O loteamento A, que esteve em consulta pública em 2019, foi dividido em três zonas num total de mais de 80 mil metros quadrados. Na zona A, com quase sete mil metros quadrados, está incluída a nova catedral de Lisboa (já falada desde 2005, mas que tem sido adiada). A zona B terá seis quarteirões para fins residenciais e a zona C prevê quatro parcelas para habitação e atividades económicas. Na documentação apresentada estava prevista a construção de 771 fogos num investimento de 250 milhões de euros. Ainda não se iniciou qualquer construção.
Da Galp a Luís Filipe Vieira. Do BES/Novo Banco ao atual proprietário
Antes de chegar à empresa imobiliária, a Matinha teve outros donos privados que não conseguiram concretizar a reconversão urbanística da área.
O desmantelamento da fábrica da Lisboagás aconteceu ao longo da primeira década do século e desde então tem estado prevista a urbanização dos terrenos industriais. A Matinha foi vendida pela Galp a uma empresa de Luís Filipe Vieira em 2001 por valores próximos de 100 milhões de euros.
O negócio deu ao então recém-presidente do Benfica a fama de vice-rei da Expo e tornou-se no principal ativo do seu grupo imobiliário. O empresário/dirigente desportivo juntou-se ao Grupo Espírito Santo para desenvolver o projeto, criando um fundo que ficou a gerir estes ativos. Com a demora no arranque dos projetos imobiliários e a falta de fundos do grupo imobiliário de Vieira, estes terrenos acabaram por passar para o universo do Banco Espírito Santo e, após a queda deste, para o Novo Banco. Os terrenos que vão acolher este projeto foram vendidos à VIC Properties por 140 milhões de euros em 2019.
Como o Novo Banco se livrou (sem se livrar) da dívida do grupo de Luís Filipe Vieira
A VIC Properties é uma promotora imobiliária cujo capital é controlado por investidores institucionais da área financeira e de investimento (AlbaCore Capital, Mudrick Capital e Owl Creek) e a equipa de gestão portuguesa desde 2023. A VIC Properties é responsável pelos projetos do Braço de Prata e da Matinha em Lisboa e está a desenvolver a herdade do Pinheirinho na costa alentejana. Este empreendimento turístico foi antigo PIN (potencial interesse nacional), mas o promotor foi à falência, tendo o património executado ido parar ao BES e, mais tarde, ao Novo Banco, que o vendeu em 2020 à VIC Properties por cerca de 60 milhões de euros.
A operação de loteamento que agora avança para a consulta pública situa-se na freguesia de Marvila e abrange uma área de quase cem mil metros quadrados divididos por 12 lotes, sete para usos mistos, três para a habitação, um para o setor terciário e outro para fim turístico. Está previsto um investimento de 320 milhões de euros para ser desenvolvido ao longo de dez anos, sendo que um ano é o calendário previsto para a descontaminação dos solos que foram usados para fins industriais até aos anos de 1990 e que incluem as áreas ocupadas pelos antigos gasómetros.
De acordo com os documentos consultados pelo Observador, o projeto implica a desmontagem dos quatro gasómetros, dos quais três serão deslocados por ocuparem uma área que não está prevista no plano de pormenor para um equipamento hoteleiro. Um quarto gasómetro será desmantelado. Dois dos gasómetros para os quais está prevista a unidade hoteleira, ocupam uma área de mais de cinco mil metros quadrados. O terceiro que será aproveitado como equipamento municipal tem uma área de implantação de 1238 metros quadrados.
702 fogos e quatro torres
A superfície de construção é de 127 mil metros quadrados, dos quais a maioria (73%) destina-se a habitação. Os quarteirões residenciais vão ficar localizados na zona nascente na fronteira com os terrenos de domínio portuário para os quais estão previstos edifícios de sete pisos.
Na zona poente há quatro parcelas onde se planeia a construção de quatro torres de 18 a 12 pisos para habitação, para além de edifícios mais baixos para atividades económicas. O número máximo de fogos é de 702 ao qual estão associados uma população equivalente de 3.550 residentes (incluindo hotel) no ano horizonte do projeto. Está estimada a necessidade de 1.845 lugares de estacionamento privados.
A área de intervenção envolve ainda equipamentos de utilização coletiva, desde vias até um parque de estacionamento público, e um parque urbano com várias parcelas de espaços verdes numa área de 16 mil metros quadrados.
“O Parque Urbano, previsto no PPM (plano de pormenor da Matinha) será um parque perpendicular ao rio, que ocupará o espaço desde os gasómetros até à frente rio, permitindo manter e enquadrar as estruturas de três dos gasómetros existentes. O parque deverá ser o elemento centrípeto da estrutura ecológica, para onde todos os fluxos convergem, um todo que exige coesão”.
Estão planeadas infraestruturas rodoviárias na área do projeto, mas também na zona circundante, em particular o desnivelamento da Av. Infante D. Henrique com a Av. Marechal António de Spínola, a implantação de uma rotunda no cruzamento entre Av. Marechal Gomes da Costa e a Av. Infante D. Henrique, a remoção do viaduto da Matinha, a remoção da rua de cintura do Porto de Lisboa, para além do já referido parque ribeirinho na área nascente. Estes projetos complementares contribuem para o funcionamento do loteamento e incluem futuras fases previstas para a área, bem como as intervenções na zona da responsabilidade da Câmara de Lisboa.
O estudo de impacte ambiental que acompanha a consulta pública foi preparado em fase de estudo prévio e aborda o loteamento e os projetos de infraestruturas. Antes do licenciamento terá de ser verificada a conformidade ambiental do projeto de execução pelo promotor.