À primeira vista, é uma menina “feliz”. Chega a ser confiante na forma como expressa os seus sentimentos aos adultos. Mas, na verdade, Rafaela debate-se com “emoções diversas”. Por um lado, tem ressentimentos em relação à própria mãe, com quem não pode ficar, por ela ser dependente de drogas. Por outro, sofre demais quando, no dia em que a mãe devia ligar, o telefone não toca. Sente falta dela. Rafaela, 11 anos, é “imatura” quando comparada com os colegas da mesma idade. Mas tem noção do mundo à sua volta. Um dia disse à família de acolhimento inglesa que chegou a ter “vontade de experimentar a droga prateada, para que a mãe a amasse mais”.
Carla, 38 anos, “gosta da sua filha, mas, o impacto do abuso de droga, torna-a incapaz de atender às necessidades de Rafaela”. No dia em que as assistentes sociais a visitaram em casa, em Inglaterra, para perceber se estava a levar a sério o tratamento contra o consumo de droga, Carla estava “fragilizada”. Perguntaram-lhe se podiam fazer alguma coisa por ela. “Tragam-me a minha filha de volta”. Uma análise ao cabelo confirmou que o regresso de Rafaela, naquele momento, seria impossível. Continuava a consumir heroína.
Nuno, 37 anos, quer que a filha vá viver para a casa dele em Portugal. Acredita que ele e a atual mulher podem dar-lhe “um verdadeiro lar”, a segurança e a estabilidade que Rafaela precisa. Nuno admitiu ter consumido canabis em Novembro, mas afirmou ter sido uma situação casual. Garantiu não voltar a fazê-lo. Os exames ao consumo de droga deram negativo.
Os relatos constam do processo promovido pelas autoridades do condado de Surrey, no sudeste de Inglaterra, e a que o Observador teve acesso. Segundo o secretário de Estado das Comunidades, José Cesário, os serviços consulares estão a acompanhar três casos de crianças retiradas pelas autoridades inglesas aos pais portugueses. O governante admitiu, no entanto, haver mais: todos aqueles que não chegam a pedir ajuda aos serviços consulares. O caso de Rafaela é exemplo disso.
Corria o mês de março de 2013 quando os serviços sociais de Surrey tiveram conhecimento, pela primeira vez, de Rafaela. Foram alertados pelos funcionários da biblioteca local. Era aqui que a menina, na altura com dez anos, passava dias inteiros. Sozinha. Usava o cartão da mãe para aceder à internet. Um dia chegou mesmo a sair da biblioteca acompanhada por “dois miúdos de rua”. O mais grave, foi aquele dia em que os funcionários da biblioteca a viram a falar com um homem conotado com “crimes de abuso sexual”.
“Foram investigadas as circunstâncias em que vivia a criança e percebeu-se que Rafaela não estava inscrita na escola. Nem estava registada no centro de saúde local. Vivia com a mãe numa habitação imprópria. A mãe tinha uma história ligada aos consumos de droga”, revela a assistente social, num relatório concluído a 14 de fevereiro de 2014. Os serviços perceberam, também, que a menina já tinha vivido em vários locais, em Inglaterra, no País de Gales e Portugal. E, a 5 de abril, optaram por desencadear um plano de proteção da menor.
Duas semanas depois, numa busca ao apartamento onde viviam Carla e Rafaela, a polícia encontrou vestígios de droga. Mais. Rafaela continuava a não ir à escola e encontrava-se “exposta aos consumos da mãe”. Na altura, Carla vivia em casa de um amigo, ligado ao consumo de droga. Quando as autoridades a alertaram de que podia perder a filha, Carla assinou um compromisso com as autoridades. E prometeu mudar de casa. Os serviços britânicos ajudaram-na no alojamento e na escola. Encontraram uma vaga em Epsom.
“A frequência na escola era muito pobre”, concluíam os serviços já em junho.
Carla alegava que Rafaela não gostava da escola. Os serviços consideraram que a própria mãe não incentivava a filha, que entretanto perdera o hábito de frequentar a escola. Rafaela ainda veio passar as férias de verão a Portugal. Voltou a faltar à escola. A direção tentava falar com a mãe. Na maior parte das vezes, Carla não atendia as chamadas. Quando atendia, alegava que a filha estava doente em casa. Mentia.
Em setembro, a assistente social que acompanhava o caso começava a perder a paciência. Tentou várias vezes contactar por telefone ou pessoalmente Carla. Foram sete as tentativas de contacto. Nalgumas, a assistente social suspeitou que Carla estaria em casa, mas que não queria atendê-la. Chegou a adiar encontros e a faltar a outros. Só em três dessas tentativas, Carla esteve presente e prometeu que ia fazer tudo para manter a filha a seu lado. “Assim, não foi possível perceber verdadeiramente a sua capacidade de ser mãe e o seu compromisso em mudar o estilo de vida”, escreveu a assistente social.
Carla também deixou de responder ao coordenador do alojamento temporário que lhe fora atribuído. Por telefone, carta, visitas pessoais, mesmo com marcação prévia. A renda estava atrasada desde maio e suspeitava-se da venda e consumo de canabis na casa. A polícia fez nova busca. Não encontrou drogas, mas amostras recolhidas provaram haver vestígios de opiáceos.
Um dia depois desta busca, já a 2 de outubro, Carla contactou a polícia. A voz aflita dizia que estava a ser ameaçada de morte por “um traficante de droga” por causa de uma dívida de 420 libras (cerca de 520 euros). Como medida de segurança, as autoridades tiraram Carla e Rafaela de casa. Alojaram-nas num hotel. Mas o inspetor avisou-a: se voltasse ao apartamento, Rafaela ser-lhe-ía retirada. De nada valeu. Carla avisou a escola e a assistente social social que iria regressar ao apartamento porque o alegado traficante de droga garantira que “nada iria correr mal”. Ela acreditou nele e ignorou a polícia.
As autoridades locais retiraram Rafaela à mãe num plano de proteção considerado de emergência. A menina foi entregue a uma família de acolhimento. Quem a recebeu revelou que Rafaela ainda gostava de brincar com “patinhos e bonecas” na banheira. “Demonstrou ter perfeito conhecimento do problema da mãe com as drogas”, refere-se no processo. Rafaela chegou a contar que Carla lhe dava dinheiro para ela ir para a biblioteca.
Ficou acordado que Carla visitaria a filha na escola três vezes por semana. Entre 28 de outubro e 9 de dezembro, Rafaela só a viu três vezes. “Quando mãe e filha se encontram vê-se que há amor e carinho entre as duas, mas Rafaela mostrou-se revoltada por a mãe falhar alguns contactos”. Em janeiro, a criança aproveitou um dos raros encontros para confrontar a mãe. “Pecebes o quanto me estás a magoar? Acho que já não gostas de mim”. Carla chorou.
Negócio que correu mal em Portugal levou-os a emigrar
Ao contrário do que o seu pai lhe pediu, Carla não quis ir para a universidade. Conheceu Nuno quando tinha 19 anos. Foram viver os dois para a margem sul do Tejo. À assistente social em Inglaterra, diria que eram os dois felizes. Os pais tinham preferido que casassem na igreja. Mas o casal quis usar o dinheiro da festa para montar uma casa. Carla ainda trabalhou num supermercado, mas acabou por abrir um café com o companheiro. Rafaela nasceu em 2002.
Em 2008, o negócio corria mal. A vida a dois começava a enfrentar as primeiras dificuldades. Graves. Havia dívidas. Acabaram por separar-se. Um ano depois, Nuno decide emigrar para Inglaterra e acaba, mais tarde, por convencer Carla a juntar-se a ele. “Eu ainda gostava dele e aceitei”, recordou à assistente social inglesa. Garante que só ela trabalhava. Numa fábrica de carnes. Ele “já consumia drogas” e “como não trabalhava, tratava da casa e fazia a comida”. Carla acredita que os problemas entre os dois intensificaram-se em 2010. E que terá sido nessa altura, com 35 anos, que começou a consumir droga pela primeira vez. Insistiu.
Uma informação que os registos das autoridades britânicas contradizem. De acordo com as informações recolhidas pela assistente social, já em em outubro de 2009 tinha havido um episódio de violência doméstica entre o casal. Mas Carla acabou por não formalizar queixa. Já por esta altura Carla era referenciada como consumidora de droga. E tinha, até, sido suspeita do furto de um telemóvel na escola da filha.
“Investigações sugerem que as pessoas com adições de droga assumem falsas facetas e nunca ninguém sabe exatamente o que se está a passar na cabeça delas. São mestres em esconder a verdade”, cita a assistente social no relatório.
Nuno regressou a Portugal em 2011 e reconstruiu a vida ao lado de outra mulher, com quem tem um filho. Em novembro de 2013, quando soube que a filha tinha sido retirada à mãe, escreveu às autoridades britânicas a disponibilizar-se para receber a filha. “A Rafaela vem a Portugal todos os verões passar as férias comigo. E nunca me apercebi que houvesse problemas”, disse. E garantiu ter condições para a acolher, criar e educar.
Os serviços britânicos recolheram informações de todas as instituições em Portugal. Do centro de saúde, da escola, da polícia. Quiseram saber se Nuno tinha cadastro. E submeteram-no a todos os testes de droga para provar que não consumia. O registo criminal estava limpo e as informações recolhidas no seio familiar apontavam para boas condições para Rafaela.
A assistente social perguntou a Rafaela com quem é que ela gostaria de viver. “A Rafaela tem exprimido as suas vontades. Ela ama a mãe mas sabe que ela tem um problema com drogas. Tem sido muito madura. E disse-me que gostava de ir viver com o pai. Caso não fosse possível, com a avó, depois com a mãe e, por último, a família de acolhimento”. A vontade foi transmitida no relatório entregue ao juiz.
Nuno foi avisado em fevereiro que teria de ir a Inglaterra. Os serviços britânicos queriam ver de perto como era a relação entre pai e filha. Rafaela regressou com ele há cerca de um mês. “Já está na escola. Já tem médico de família. E está a ser acompanhada por psicólogos”, disse Nuno ao Observador. Sem querer prestar mais declarações.
As autoridades britânicas elogiaram as autoridades portuguesas por terem prestado todos os esclarecimentos de forma célere. Concluíram, ainda, que Rafaela devia falar com a mãe pelo telefone. Para que os laços que as unem não se percam. “Sim, já falaram. Está tudo bem”, confirma Nuno. E põe um ponto final na história.