Em 2014, Ricardo [nome fictício] estudava na Escola Básica João Villaret, em Loures, e todas as semanas frequentava as aulas de Dulce Gonçalves, professora do ensino especial. Entre os problemas de saúde do aluno, destacavam-se os episódios de ansiedade que manifestava diariamente. “Era muito nervoso, mas aparentava ser muito calmo”, descreve a professora ao Observador, que começou a implementar estratégias para conseguir dar alguma tranquilidade à vida de Ricardo. Para isso, todas as aulas começavam com um momento de meditação. Ricardo aprendia a controlar a respiração “e foi evoluindo”. Mas o cenário estava prestes a mudar.
No dia do pai desse ano, o pai de Ricardo morreu. “Continuei a trabalhar com ele, mas já em articulação com o Hospital Beatriz Ângelo (também em Loures), porque a situação era muito difícil”, continua Dulce Gonçalves. Uma das grandes dificuldades surgia precisamente à noite, quando a ansiedade não o deixava adormecer. Mas foi Ricardo quem deu a solução, sugerindo à professora que gravasse áudios com os exercícios de respiração que costumava pôr em prática na escola, para que ele pudesse ouvi-los antes de dormir. “Comecei a gravar áudios com este objetivo, de ele se sentir bem, mais calmo, para conseguir gerir a situação, para conseguir controlar a respiração”, acrescentou.
Programa de saúde mental nas escolas para 42 mil alunos entre os 12 e os 15 anos
O modelo funcionou, mas a situação viria, mais uma vez, a mudar. E mudou quando Ricardo perdeu o irmão mais velho num acidente de mota e ficou sozinho com a mãe. “Nessa altura, tive uma reunião com o hospital e foi-me pedido para prosseguir com o trabalho que estava a fazer, porque eles tinham percebido que ele se tinha aguentado.”
Dulce Gonçalves seguiu a indicação e continuou o trabalho que estava a fazer com Ricardo e que trouxe mais tranquilidade à vida do aluno, quer em relação ao contexto escolar quer em relação ao contexto familiar. “O Ricardo manteve-se connosco neste percurso, melhorou e conseguiu, dentro do possível e com o apoio psicológico e medicamentoso do hospital, lidar com a situação. E, para nós, enquanto professores, foi uma grande lição, porque percebemos que a escola não é só feita de conteúdos e de perfis de alunos.”
O caminho de mais de 2.600 mentes sorridentes
Ricardo foi o ponto de partida para um programa dedicado à saúde mental dos alunos, que ganhou o nome de Mentes Sorridentes e que está neste momento a decorrer em três escolas – depois da experiência da escola-mãe, onde nasceu o projeto, em Loures, o programa foi alargado a outras escolas, em Almada e na Maia. E, olhando para os números enviados ao Observador, entre 2017 e 2022, participaram neste programa 2.650 crianças e jovens.
Praticamente um ano depois do início do acompanhamento de Ricardo, em 2015, Dulce Gonçalves, finalista da primeira edição do Global Teacher Prize, que decorreu em 2018, e doutorada em psicologia da Educação, já estava a trabalhar em parceria com o Hospital Beatriz Ângelo, para que os profissionais de saúde pudessem avaliar o impacto do projeto em contexto escolar. O objetivo era e continua ainda hoje a ser simples, diz esta professora: “Aprender a ter consciência do corpo, aprender a ter consciência da respiração, não fugir dos acontecimentos e adaptar os comportamentos.”
O projeto foi implementado na Escola Básica João Villaret, chegou a funcionar noutras escolas do concelho de Loures, mas nestas últimas não foi dada continuidade, uma vez que é necessário dar formação aos professores. E essa formação é dada por psicólogos ao longo de dez semanas, o que significa que é também preciso investimento financeiro.
Além disso, os professores são escolhidos também de acordo com a sua experiência e com a sua ligação ao mindfulness: “Não podemos fazer este tipo de programa se não tivermos a nossa prática instituída. Ou seja, há um treino prévio com professores e, depois disso, os professores são treinados para aplicar o programa no seu contexto — seja em jardim de infância, seja com primeiro ciclo e por aí fora”. Por aqui, entre 2017 e 2022, já passaram 206 professores, que frequentaram as formações disponibilizadas pelas Mentes Sorridentes, que mais tarde se constituiu como associação.
Primeiro passo: as nossas reações e o nosso cérebro
Depois de um problema de saúde, Dulce Gonçalves decidiu começar a procurar mais informação sobre saúde mental e o conceito de mindfulness e foi aconselhada a fazer meditação. Este, aliás, foi também um dos pontos de partida para o projeto que desenvolveu. Entre as pesquisas, encontrou vários programas de meditação em contextos educativos nos Estados Unidos e no Reino Unido, já implementados há vários anos, mas foi com o projeto australiano Smiling Mind que mais se identificou. Nessa altura, ainda em 2014, e pouco antes da experiência com Ricardo, decidiu entrar em contacto com a associação sediada na Austrália.
“Facultaram-me toda a informação que eu pedi, comecei a estudar o modelo deles, fez-me muito sentido e comecei a fazer as minhas experiências em contexto de escola, com os alunos”, contou. A partir daí, e com a ajuda dos psicólogos da escola e do Hospital Beatriz Ângelo, foi feito o plano do projeto e agora todos os alunos passam por vários níveis.
Todas as semanas, às segundas e terças-feiras, os alunos da escola de Loures chegam à sala da professora Dulce Gonçalves às 14h30 para relaxar. “Trabalhamos a consciência do corpo e da respiração, porque eles passam a ter noção de que as nossas reações dependem, em primeiro lugar, do cérebro, do modo como nós funcionamos em contacto com o meio e como o nosso cérebro interpreta os estímulos. E tudo isso pode ter influência na resposta que o cérebro dá. Nesse sentido, uma das coisas que fazemos é precisamente ter consciência da nossa respiração.”
As sessões variam e, numa fase seguinte, os alunos já estão a pensar sobre a reação do corpo aos estímulos que estão à sua volta. Ou seja, sobre aquilo que sentem — seja raiva, ansiedade ou emoções positivas. “Uma das formas para conseguirmos mudar o nosso padrão de resposta é adquirir esta consciência”, explica a professora. E, depois de perceberem que o corpo reage a estímulos, que muitas vezes não se controlam, as crianças e jovens avançam para a consciência das emoções, que é, no fundo, aprender como funciona o pensamento. “Nós temos padrões de pensamento que se repetem e vamos tomar consciência de como é que a nossa mente funciona do ponto de vista do pensamento, o que é que acontece quando penso em determinada coisa e qual é a minha reação fisiológica.”
Alunos mais concentrados, mais calmos e antigos alunos que querem voltar
Entre sessões, conta a professora, os alunos são avaliados através de testes feitos pelos psicólogos para se perceber se, de facto, existe uma evolução, mesmo que a curto-prazo. E, além das avaliações médicas, também os professores das restantes disciplinas dizem notar diferenças no comportamento das crianças e jovens assim que começam a fazer parte da Mentes Sorridentes. “Ficam mais atentos, mais concentrados e começam a reagir de outra forma às situações difíceis em contextos de sala de aulas”, diz Dulce Gonçalves. E estas situações difíceis podem ser, por exemplo, conseguir ultrapassar o medo de falar em público, que tem efeitos, quer na interação social quer no próprio sucesso académico.
A nível prático, este projeto reflete-se na forma como as crianças e jovens passam a olhar para o que lhes acontece e, sobretudo, na forma como pensam sobre isso. E não faltam histórias a Dulce Gonçalves. Uma delas aconteceu numa escola na Ramada, quando o projeto foi alargado a todas as escolas públicas do concelho de Loures — entretanto interrompido por falta de verbas para formação e avaliação. Uma das alunas tinha diabetes e ficava muito ansiosa sempre que os níveis de glicose baixavam. E essa ansiedade levava-a a sentir-se culpada pela ansiedade e a jovem acaba por entrar num ciclo negativo, que a deixava ainda mais nervosa e fora de controlo.
Quando entrou para a Mentes Sorridentes, esta aluna “aprendeu a regular as emoções e a pensar: ‘Ok, isto está baixo, não há problema nenhum, vou fazer as coisas com calma, vou respirar devagarinho’”, recorda Dulce Gonçalves. “Desacelerou o processo e viu melhorias. A ansiedade diminuiu e ela conseguia gerir tudo muito bem.”
E há também “histórias engraçadas”, acrescenta a professora. Aqui, entram os alunos que terminam o ensino básico e têm de mudar de escola e os jovens que saem para a faculdade e já não têm acesso às aulas de meditação. Em alguns casos, são os alunos que procuram a associação para saberem se podem voltar a ter aulas. “Sentiram que estavam a ter desafios na sua vida que os estavam a desequilibrar e que eles não estavam a conseguir dar resposta. E pediram esse apoio, porque identificaram aqui uma resposta.”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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