Índice
Índice
Três anos antes de entrar na Faculdade de Ciências, em Lisboa, já João cultivava aquilo que agora diz ser uma “obsessão” que tomou conta dele: devorava imagens, vídeos e informações sobre jovens assassinos que cometiam massacres em escolas e locais públicos e se suicidavam de seguida. Tinha 14 ou 15 anos, não se lembra bem, quando mergulhou no caso de Randy Stair, o rapaz de 24 anos que em 2017 matou três colegas de trabalho num supermercado e se suicidou. A partir daí começou a procurar informação de vários homicídios em massa ao mesmo tempo que começou a pensar replicá-los. Só não o fez, em fevereiro de 2022, porque a Polícia Judiciária o deteve antes, quando descobriu o seu plano a partir de um alerta do FBI.
Quando foi detido no quarto arrendado em Lisboa, João não ofereceu resistência, mas manteve-se em silêncio. Os psicólogos que o seguiram depois admitem que, no último trimestre de 2021, estivesse deprimido. E era isso que ele sentia, como viria a relatar mais tarde. Foi por essa altura que este estudante de Engenharia Informática deixou a aldeia na Batalha, em Leiria, onde cresceu, para estudar na capital.
Três anos antes começara a falar com uma rapariga pela internet e, na esperança de a conhecer e manter uma relação, acabou por matricular-se na Faculdade de Ciências de Lisboa um pouco à revelia dos pais.
O encontro com Micaela e a confissão a uma outra amiga virtual
Já tinha tudo arrumado em casa e estava pronto para começar as aulas quando, no início de outubro, combinou encontro com Micaela. A jovem recebeu-o em casa, nos arredores de Lisboa. Passaram algumas horas juntos — seria o primeiro e o último encontro. Segundo ela, em declarações que prestou mais tarde à PJ, os pais não gostaram do que viram e disseram-lhe para se afastar — como viria a própria a contar à PJ numa fase da investigação em que se pensou que pudesse ser autora moral do crime.
De repente João não tinha mais notícias da amiga que conheceu num grupo da rede social Tumblr chamado “True Crime Community”. Era ali que todos partilhavam informações sobre casos de homicídio e sobre a personalidade de cada um dos autores do crime. Havia mesmo — segundo disse João um mês após ser detido à procuradora do Ministério Público que o interrogou na prisão de Caxias (onde mais tarde ficaria em internamento preventivo) — quem fosse tão aficionado por estes temas que até se apaixonava pelos criminosos, um fenómeno que descreveu como hibristofilia.
Sozinho, caloiro de uma faculdade na capital, e com alguns problemas de socialização, João entregou-se àquilo que há anos o motivava: vídeos de mass shooting, de anime e livros de mangá. O consumo de violência, segundo o próprio, tornou-se uma obsessão incontrolável: “Em retrospetiva diria que estava a consumir demasiado isso”, confessou.
No final do ano de 2021, João sentia-se cada vez mais triste. A uma colega de curso, com quem falava mais através da rede social Discord e do Telegram do que efetivamente pessoalmente, João começou a partilhar a sua tristeza. Um dia, sob suspeitas de ter entregue um trabalho plagiado, chegou mesmo a dizer-lhe que queria matar todos e matar-se de seguida. Essa colega, uma nepalesa que vive em Portugal desde os 14 anos, ia-lhe respondendo, sem o impedir. E até desvalorizou a conversa daquele dia, em finais de janeiro, em que ele lhe anunciou que ia mesmo avançar com o ataque na Faculdade de Ciências de Lisboa, enviando-lhe imagens das armas que adquirira. Ela poderia ser uma das vítimas. A colega achou que era tudo “bluff”, como diria meses depois às autoridades que a encontraram após perícias ao computador e ao telemóvel de João. “Ele só queria chamar a atenção das pessoas”, lê-se na tradução do seu interrogatório.
João, que é acusado de dois crimes de terrorismo, um deles na forma tentada, e de um crime de posse ilegal de arma, usa agora o mesmo argumento. Em interrogatório confessa que uma parte dele não queria avançar com o ataque, por isso, decidiu adiá-lo mais de uma semana.
O plano de um ataque que visava atingir 50 pessoas
Quando João anunciou à amiga que iria levar a cabo um ataque na Faculdade, matando-se de seguida, tinha testado positivo à Covid-19 dias antes. Foi nesse período de isolamento que o estudante de informática pensou em tudo. Segundo o despacho de acusação, o estudante universitário analisou a frequência e as condições de segurança da Faculdade de Ciências e calculou um ataque que duraria cinco minutos, caso usasse armas de fogo.
À medida que ia delineando o plano na sua cabeça, ia partilhando os seus pormenores com um utilizador da rede social Discord que aparentemente vivia nos EUA. Chegou mesmo a exprimir-lhe o desejo que sentiu num dia em que estava numa loja e teve vontade de atacar uma mulher e uma criança com um martelo.
João ainda foi à darkweb à procura de armas de fogo para comprar, mas receou que os sites que as comercializam não fossem fidedignos e que fosse facilmente apanhado pela polícia. Então optou por comprar uma besta, facas e começar a estudar na internet formas de produzir explosivos caseiros. Anos depois de consumir informação sobre massacres em escolas, queria mostrar ao país que este fenómeno não acontecia apenas fora de Portugal, como constataram depois as autoridades.
Nas perícias feitas ao seu computador, a PJ encontrou várias buscas no Google sobre o fenómeno do terrorismo em Portugal. João chegou mesmo a descarregar um PDF da autoria de Michael Fredholm sobre o tema do terrorismo. A 1 de fevereiro deste ano, o estudante partilhou uma imagem das facas que comprara com o utilizador norte americano com quem falara. E estudou também de fio a pavio um manual militar norte americano para aprender a manusear armas brancas.
Na sua cabeça, e um pouco à semelhança do que lera no mangá “Dead Tube”, entraria na faculdade no dia do ataque e preparar-se-ia na casa de banho. Depois planeava deslocar-se ao anfiteatro 3, por permitir uma lotação de 50 alunos em dia de exame, e lançaria vários cocktails molotov para o seu interior. Quando as vítimas começassem a sair, ele usaria a besta para matar algumas, outras seriam esfaqueadas. Por fim, seria morto pela polícia ou ele próprio se suicidaria com uma facada na barriga, como vira uma personagem de um jogo eletrónico — o “Doki Doki Literatura Club” — fazer.
O alerta que chegou dos Estados Unidos
As informações que João deu ao utilizador norte americano de tudo o que comprara — além da besta e das facas, tinha comprado numa loja de artigos chineses diversas latas de gás para isqueiros e até um maçarico — chegaram ao FBI a 2 de fevereiro, vindas de uma pessoa que não se identificou. O FBI ainda tentou saber o nome do utilizador do Discord junto dos operadores da rede, mas como viu o pedido recusado e percebendo tratar-se de alguém em Portugal informou de imediato a Polícia Judiciária, fornecendo os seus nomes de utilizador no Discord, no Tumblr e no Youtube.
A Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da PJ recebeu o alerta já às 18h27 de 3 de fevereiro, numa altura em que o seus elementos estavam dedicados ao ataque informático feito à SIC e ao Expresso. Foram horas difíceis as que se seguiram. Com o nickname João, os inspetores encontraram o seu canal no Youtube, onde estava identificado com o nome “Satori Komeiji”. Perceberam, a partir daí, que vivia num meio rural — por um vídeo que descrevera como “View from my house” — e, através dos comentários, chegaram a amigos dele no Facebook e ao próprio: era oriundo de uma aldeia da Batalha, em Leiria.
Os inspetores perceberam também estar perante um estudante que podia estar a passar por uma fase menos fácil, em parte por uma das descrições que o próprio fazia numa das redes sociais: “Alguém dispensável”, “alguém com baixa auto-estima / fofo / tenho uma tonelada de fetiches mas nenhuma atração real por raparigas / não gay”.
A PJ descobriu depois que João era aluno na Faculdade de Ciências em Lisboa. No dia seguinte, uma equipa falava com a reitoria para obter mais informações sobre o aluno, nomeadamente a morada. Os dias que se seguiram foram de vigilâncias discretas na Batalha, na casa de João em Lisboa e na faculdade. A PJ acompanhou todo o seu percurso até à escola, percebeu que não interagia com ninguém, chegando mesmo a observá-lo ao vivo enquanto fazia um exame. Depois ainda o viram entrar numa loja chinesa para comprar gás para o isqueiro. Segundo João, o próprio funcionário da loja acabaria por alertá-lo para a presença de polícia no local.
Perante os indícios de que João estaria mesmo a preparar um ataque, a PJ pediu a uma juíza de turno que emitisse os mandados. A PJ entrou no apartamento onde João vivia — num quarto arrendado — e encontrou o material que exibira na internet. Na parede estava o plano, escrito em português e inglês, de um ataque que foi sendo adiado – o primeiro plano era para dia 4, depois 7 e depois 11. Tudo começaria às 13h20. “Falei muito sobre isto porque acho que queria ser apanhado para não o fazer”, justificaria um mês depois João à procuradora do Ministério Público. “Parte de mim está feliz e aliviado por ter sido apanhado, por não ter feito aquilo”, afirmou.
Um fascínio que vinha desde os 9 anos
No interrogatório conduzido com especial cuidado pela procuradora, João acabou por admitir que o seu fascínio por assassínios em massa até poderá ter começado antes. Recordou que tinha apenas 9 anos quando se fixou nas notícias sobre o atirador Adam Lanza de Newton, Connecticut, EUA – um jovem de 20 anos que concretizou um ataque a uma escola primária dessa cidade e que vitimou 20 crianças, a 14 de dezembro de 2012. Quando tinha 14 ou 15 anos e soube da história de Randy Sair — que antes de se suicidar no supermercado onde trabalhava e matara três colegas deixou um vídeo aos pais a contar que toda a vida tinha escondido a enorme tristeza que sentia e que gostava de se vestir de mulher – foi apanhado pelo irmão mais velho a consumir conteúdos em vídeo demasiado violentos. Acabou mesmo a ser castigado e afastado dos ecrãs durante um mês.
Mais recentemente, em 2018, alimentava essa obsessão através de fóruns de conversação e redes sociais, como o Discord, Reddit e Tumblr. Via também vídeos no Youtube, jogava jogos e usava o Facebook e o Instagram com menor frequência. Em interrogatório, admitiu que um dos casos de mass shooting que mais fascínio lhe provocou foi o de um jovem de 18 anos que em 2018, na Crimeia, entrou na universidade e matou 21 pessoas com uma espingarda e bombas, suicidando-se de seguida. Era da sua idade.
Crimeia. Estudante mata 17 pessoas em escola e suicida-se. “Há corpos de crianças em todo o lado”
“Mundo alternativo” de João não o torna inimputável
O advogado de João juntou ao processo um relatório médico que mostra que aos 9 anos ele ainda não conseguia atar os atacadores, que tinha dificuldades na fala e problemas no desenvolvimento social. Terá sido por essa altura que lhe foi diagnosticada uma perturbação do espetro do autismo, sem perturbação do desenvolvimento intelectual e com nulo a ligeiro défice na linguagem funcional, como se lê no relatório que consta no processo-crime. Os peritos que o avaliaram a pedido do Ministério Público revelam que, meses antes de planear o ataque, no último trimestre de 2021, sofreu um episódio depressivo, sem sintomas psicóticos.
Advogado contesta indiciação pelo crime de terrorismo do jovem suspeito de planear ataque
No despacho de acusação, o Ministério Público concluiu assim que este “mundo alternativo” do arguido não corresponde a um qualquer “sintoma psicótico ou abnorme, mas sim a um mecanismo de adaptação de tipo imaginativo, de natureza escapista, alicerçado nos interesses específicos prévios, que ocorreram num período em que estava depressivo, com ideação suicida, em vivência de adversidade. Não existindo pressupostos médico-legais para ser considerado inimputável em razão de anomalia psíquica”, lê-se.
Por isto, considerou o MP, o arguido agiu com dolo e só não concretizou o crime porque foi entretanto detido. Ainda assim os peritos que o seguiram consideram que a ser condenado não deverá cumprir pena num estabelecimento prisional comum — João encontra-se agora em internamento preventivo no hospital prisão de Caxias. O crime de terrorismo é punível com entre dois e 10 anos e cadeia.