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Tudo começou depois de três comentadores afetos ao Benfica terem revelado acordos confidencias entre clubes em programas desportivos transmitidos em setembro de 2015. Primeiro, no programa da TVI “Prolongamento”, Pedro Guerra dizia ter na sua posse um documento que provava que o Sporting esteve interessado em contratar o jogador grego Konstantinos Mitroglou — que tinha acabado, à data, de chegar ao Benfica. Depois, o ex-jogador António Simões, no programa Play-Off, na SIC Notícias, e o comentador João Gobern, no Trio de Ataque, da RTP3, revelavam detalhes da proposta do Sporting ao jogador Franco Cervi e o envolvimento de um fundo africano neste alegado negócio.
Rui Pinto assistiu a estes três programas. Não, não foi ele a fonte das revelações ali feitas. É, pelo menos, o que garante na contestação entregue ao Tribunal Central Criminal de Lisboa, e a que o Observador teve acesso. Mas admite: aproveitou estas divulgações, dado o seu impacto mediático, para lançar o site Football Leaks, a 29 de setembro de 2015, iniciando assim “uma cruzada a favor da transparência no futebol”, como descreve no documento.
É este o contexto em que o alegado pirata informático tomou a decisão que acabaria por levar à sua detenção na Hungria, quatro anos mais tarde, e que o fará agora sentar-se em frente a três juízes para ser confrontado com 90 crimes que terá cometido — e cuja autoria não aceita na sua totalidade. Aliás, a defesa considera “inadmissível” que o hacker vá responder por tantos crimes e não apenas por 10: seis que foram identificados no mandato de detenção europeu emitido pelo Ministério Público português e os restantes quatro que foram adicionados com o seu alargamento. E pede que Rui Pinto seja absolvido dos pedidos de indemnização cível deduzidos contra si.
O desfecho está longe de ser conhecido: o arranque de um julgamento que promete ser longo está marcado para o dia 4 de setembro. Mas a contestação que já consta do processo veio dar algumas luzes sobre como o hacker poderá vir a defender-se, com Rui Pinto a expor os motivos para os crimes que terá cometido, apresentando-se sempre como um “cidadão indignado” que até quis ajudar as autoridades. Por que razão um jovem de Vila Nova de Gaia quis encetar uma espécie de “cruzada” pelo futebol, como a define? Numa frase, a defesa diz que “foi o desejo de denúncia pública de crimes graves”, mas também garante que a pergunta tem várias outras respostas, todas dadas nas 130 páginas da contestação.
No total, serão sete os argumentos principais que Rui Pinto apresenta como os motivos que o levaram, aos 28 anos, a tornar-se o autor da maior fuga de informação no futebol. E, mais tarde, do Luanda Leaks.
Motivo n.º 1. “Uma pesquisa no Google pouco ou nada revelava” sobre as offshores que apareciam nos relatórios e contas dos clubes
Rui Pinto “nunca o escondeu”: “É amante de futebol e adepto do Futebol Clube do Porto (FCP)”. Desde cedo seguiu “atentamente o fenómeno futebolístico”. Numa primeira fase, como “adepto interessado”. Depois, também, como “cidadão indignado com a obscuridade patente nos negócios do futebol”, lê-se na contestação. Aos 22 anos, começou a “acompanhar atentamente” as transferências milionárias dos jogadores. Os relatórios e contas dos clubes tornaram-se uma “leitura essencial”.
Lá, Rui Pinto começou a encontrar um elemento comum que o indignou: entre a informação relativa a valores de transferência de jogadores, havia frequentemente “menções a várias empresas localizadas em paraísos fiscais e que recebiam avultadas verbas” — era, para ele, um “sinal de alerta para os contornos eventualmente ilícitos das transações” que acabaria por configurar uma das razões pelo qual decidiu aprofundar a tal “obscuridade” do futebol. Até porque “uma pesquisa simples no Google pouco ou nada revelava sobre quem se escondia por detrás dessas sociedades offshore e qual a sua real atividade e ligações no mundo do futebol”, justifica ainda.
Só 12 dos 59 alvos de Rui Pinto apresentaram queixa. Um deles foi Bruno de Carvalho
Foi o incentivo de que precisava para “iniciar uma cruzada a favor da transparência no futebol”. “Algo que tivesse impacto global“, lê-se na contestação. Para isso, acabaria por cometer vários crimes de acesso ilegítimo a caixas de correio eletrónico, por exemplo, e a dados confidenciais.
Motivo n.º 2. Divulgar documentos originais para evitar “truncagem ou falsificação vindas das pessoas e entidades afetadas”
“Metadados originais” e “documentação integral”. Outra das razões de Rui Pinto, segundo o próprio, foi dar aos “amantes do futebol” a “transparência e verdade” que não encontrava. Por isso mesmo, decidiu divulgar os documentos “sem omissões ou truncagens” para que todos “pudessem perceber, em toda a plenitude, como funcionavam os negócios do futebol”. E também para evitar que os documentos fossem adulterados ou falsificados por “pessoas e entidades afetadas pelas divulgações”.
O alegado pirata informático admite, na contestação, que o Football Leaks foi uma “ideia originalmente” sua, embora tenha trabalhado “conjuntamente com algumas pessoas” — pessoas que prefere não identificar por terem “direito ao anonimato”. Por isso, “assume as responsabilidades” até “por factos que não cometeu, por informação a que não acedeu pessoalmente e por posts que não foram por si publicados”.
Rui Pinto explica ainda que o site “não foi só alimentado com recurso a documentos obtidos através de intromissão não autorizada”. “Na verdade, uma parte substancial dos documentos publicados chegaram de fontes anónimas, enviados para o email“, garante, explicando que fez “tudo com vista a denunciar, sem qualquer contrapartida, as ilegalidades no mundo do futebol”. O objetivo seria “divulgar publicamente o máximo de informação relevante disponível”, independentemente do clube ou empresas envolvidos, para não ser acusado de estar a selecionar conteúdos.
Motivo n.º 3. Criminalidade financeira e fiscal “enraizada” no futebol “não era devidamente investigada” em Portugal
À indignação juntou-se o facto de acreditar que “a criminalidade financeira e fiscal enraizada nos clubes de futebol em Portugal não era devidamente investigada”. E, por isso, Rui Pinto decidiu meter mãos à obra: quis denunciar as ilegalidades com que se confrontava quer através das autoridades, quer através da comunicação social. O alegado pirata informático lembra que a “divulgação integral dos documentos foi de grande importância” não só “para as autoridades judiciárias europeias” abrirem inquéritos, mas também para “as entidades de regulação do meio futebolístico”. E enumera vários exemplos.
A começar pela Federação Holandesa que, em 2015, puniu o clube de futebol Twente por apresentar uma versão de um contrato diferente do original — publicado no Football Leaks —, que revelava que o clube tinha cometido irregularidades com o auxílio da Doyen Sports e do seu ex-administrador, Nélio Lucas. A lista continua: em fevereiro desse mesmo ano, lembra, o Manchester City foi banido por duas épocas das competições europeias por não cumprir as regras do fair play financeiro — uma decisão que acabou anulada pelo Tribunal Arbitral do Desporto por questões formais, mas que teve na base “revelações que foram trazidas a público pelo arguido e pelo Football Leaks”.
Para justificar que o facto de, a seu ver, não haver uma investigação devida foi uma das suas razões, a defesa de Rui Pinto realça ainda a colaboração do arguido com as autoridades francesas, a quem entregou um disco informático, com as belgas, a quem prestou declarações, e com as portuguesas, a quem já enviou “diversas denúncias anónimas”. À lista pode ainda juntar-se as autoridades da Suíça que já solicitaram a sua colaboração, revela na contestação.
Motivo n.º 4. Os “rumores” que circulavam entre adeptos do Porto sobre as ligações entre a Doyen e o filho de Pinto da Costa
Entre os 90 crimes pelos quais vai responder, uma boa parte diz respeito à alegada intrusão no sistema informático da Doyen Sports Investments Limited, uma sociedade com sede em Malta que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Rui Pinto terá, na tese da investigação, tentado extorquir este fundo de investimento, exigindo “uma doação generosa” — que nunca chegou a receber — em troca do seu silêncio: entre meio milhão e um milhão de euros. Para isto, terá chegado a pedir a colaboração do advogado Aníbal Pinto — que é também arguido no mesmo processo.
E aqui? Qual foi a razão de Rui Pinto? A defesa começa logo por lembrar que “precisamente por funcionar como um fundo de investimento que negoceia jogadores de futebol e por estar envolta em mistério, a Doyen sempre suscitou a curiosidade do arguido”. Mas centra-se num episódio para justificar o verdadeiro motivo de Rui Pinto: rumores que começaram a circular em 2015 entre os adeptos do Futebol Clube do Porto.
Falava-se de que poderia haver ligações entre aquela empresa e Alexandre Pinto da Costa, filho do presidente do FCP. Rui Pinto terá tido acesso — não detalha como — a “um conjunto de contratos que revelavam um esquema” entre o FCP e Nélio Lucas “para financiar a empresa Energy Soccer de que Alexandre Pinto da Costa, detinha, assumidamente, 60% do capital”. Para tal, lê-se, teriam recorrido a “falsos contratos de scouting e falsificação de documentos”.
Rui Pinto quis, por isso, na sua versão, recolher “o máximo de informação” relacionada com o clube do qual é adepto. Fê-lo “por diversas vias”. Quais? Não diz, mas as suficientes para “descobrir e revelar publicamente o enorme número de crimes cometidos pelos parasitas que se aproveitam do futebol”, explica a defesa na contestação.
E por que razão tentou, alegadamente, extorquir dinheiro à empresa? Rui Pinto garante que o que fez foi, no fundo, bluff. Queria apenas confrontar Nélio Lucas “com ilegalidades por ele cometidas” para descobrir se eram verdade e se o próprio as confirmava. E, depois, “compreender até que ponto valorizava a divulgação de tais atuações” e que dinheiro estaria disposto a dar para fazer essas informações desaparecer.
O pirata informático diz que contactou o advogado Aníbal Pinto “para o sondar sobre a possibilidade de o representar em negociações” relacionadas com a “assinatura de um contrato de prestação de serviços com Nélio Lucas” — e não para mediar qualquer “plano criminoso”. Na contestação a que o Observador teve acesso, a defesa de Rui Pinto revela que o ex-administrador da Doyen queria contratá-lo por 25 mil euros por ano como técnico de informático. E terá referido que estava interessado em “obter informação da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
“Porém, no início de novembro, o arguido tomou consciência do grave erro em que incorrera ao contactar e ao negociar com Nélio Lucas a possibilidade de acabar com as revelações do Football Leaks”, indica o documento. O que Rui Pinto queria era que o mundo do futebol soubesse “a verdade acerca dos negócios obscuros do futebol” — o que decidiu continuar a fazer, desistindo da “definitivamente tentativa de extorsão”.
O encontro secreto entre o ex-advogado de Rui Pinto e a Doyen — com a PJ na mesa ao lado
Motivo n.º 5. A “novela” da transferência de Jorge Jesus e as ligações a Angola despertaram o interesse pelo Sporting
O Sporting também foi um dos alegados alvos de Rui Pinto ou, como prefere explicar na contestação, uma das entidades que despertou o seu “interesse”. Porquê? Por várias razões: a “polémica” rescisão do contrato do treinador Marco Silva, as “polémicas com a Doyen Sports Investment Limited, a “falta de transparência da transferência do treinador Jorge Jesus com toda uma novela mediática em redor da mesma, um contrato com a banca que aparentava ser bastante benéfico para o clube, e, acima de tudo, as ligações com Angola, nomeadamente o investimento de Álvaro Sobrinho através da Holdimo – Investimentos e Participações, S.A. com a utilização de dinheiro proveniente do Banco Espírito Santo de Angola”, lê-se no documento.
Segundo a acusação, Rui Pinto terá acedido a emails de várias pessoas no Sporting e recolhido documentos confidenciais. Mais: terá levado a cabo um conjunto de ataques ao servidor de correio do clube que o paralisou durante três dias. Mas na contestação, o alegado hacker garante “não só não existiu qualquer intenção de gerar uma quebra de serviço como nem sequer, ao proceder como procedeu, admitiu tal possibilidade”.
Motivo n.º 6. A Federação Portuguesa de Futebol era “pouco proativa” e isso era motivo de preocupação e interesse
Já “o interesse” em relação à Federação Portuguesa de Futebol “está relacionado com a prolongada impunidade nas questões da corrupção desportiva”. Por considerar que a FPF “lida com estas questões” de “forma pouco proativa”, também aqui o alegado pirata informático pôs mãos à obra. E, no final, concluiu que as “questões legais graves” que Rui Pinto viria a denunciar entre 2015 e 2018, “justificavam a sua preocupação”, considera a defesa na contestação.
Também o processo dos vouchers, em que o Benfica terá oferecido aos elementos de arbitragem e delegados dos jogos um conjunto de ofertas de valor significativo, foi “motivo de preocupação para o arguido”. Só que “as instâncias disciplinares do desporto arquivaram” o caso, lamenta na contestação.
Motivo n.º 7. As “muitas operações financeiras suspeitas” de Isabel dos Santos e os advogados da PLMJ que eram “peças chave”
Não, não foi por causa das ligações ao Benfica ou o processo E-toupeira que o envolve. Também não foi por causa da Operação Marquês. Nem do Processo EDP. Rui Pinto diz que a razão pela qual se interessou pela sociedade de advogados PLMJ, tendo acedido ao sistema informático ou a emails dos seus funcionários, foi outra: a empresária angolana Isabel dos Santos.
Nos anos de 2017 e 2018, o alegado hacker teve “acesso a diversa informação” relacionada com a empresa Fidequity, da filha do ex-presidente de Angola, e com “muitas operações financeiras suspeitas ligadas a Isabel dos Santos“, lê-se na contestação. “Ao ler essa documentação, o arguido alega que percebeu que advogados da PLMJ eram peças chave no auxílio e otimização do branqueamento de capitais” da empresária angolana. E foi por isso que “decidiu investigar os negócios suspeitos de Isabel dos Santos em Portugal, porque era manifestamente evidente que o dinheiro provinha da corrupção em Angola e era produto do regime cleptocrático aí instalado”.
Releu “vários documentos a que tivera acesso”, “vários artigos do jornalista angolano Rafael Marques” e “teve conhecimento das declarações da eurodeputada Ana Gomes a alertar para o facto de Portugal ser a lavandaria de Angola”. Mas Rui Pinto “precisava de obter mais informação concreta que pudesse esclarecer os obscuros negócios de Isabel dos Santos”. E só via uma solução: violando a correspondência dos advogados para chegar aos documentos do escritório que assessorava Isabel dos Santos nessas transações, a PLMJ — que viria depois a divulgar no blogue “Mercado do Futebol”.
Certo é que, aponta, o “material” da PLMJ, conjugado com informações de outras proveniências, deu origem aos Luanda Leaks, que tornaram públicos alegados esquemas financeiros da empresária e do marido, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais.