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Uma “aranha” que “maligna, paciente e deliberadamente lança a sua teia em volta da vítima”. É assim que a Comissão de Investigação aos abusos sexuais na Igreja descreve no seu relatório o processo de aproximação dos abusadores às vítimas, com base nas centenas de testemunhos que recebeu.
Ao pedir às vítimas ouvidas que descrevessem aquilo que lhes era dito antes, durante e depois dos abusos, a Comissão conseguiu detetar “padrões” de comportamento que a maioria dos padres adotava no seu processo de aliciamento e de subjugação dos menores. Para os relatores, alguns não surpreendem, no sentido em que revelam o “exercício consciente de sedução e manipulação da criança” habitual em crimes deste tipo. Os abusadores são geralmente já próximos da vítima, exploram uma ligação emocional, aproveitam-se frequentemente de um papel de professor/tutor que já assumiam, alternam entre elogios e críticas à vítima e recorrem a recompensas e ameaças.
Mas também revelam características próprias ligadas à instituição Igreja. Os abusadores invocam frequentemente uma ligação divina para justificar o abuso, usam espaços físicos ligados ao culto — o confessionário, a sacristia —, invocam uma dimensão de pecado para culpabilizar as vítimas e atribuem recompensas ligadas à religião, como medalhas de santos. Tudo estratégias que, sublinham os relatores, aprofundam “a situação de fragilidade e vulnerabilidade” das vítimas.
“Não foi fácil escutar, registar ou ler cada um destes textos”, admitem os autores. “As descrições eram emocionalmente intensas, transportavam a voz destes adultos para a sua experiência infantil de abuso e a forma como a mesmo os marcou até aos dias de hoje.” E mostram um padrão de comportamento de abuso sistemático que, esperam os membros da Comissão de Investigação, sirva para retirar “a pessoa abusadora dos bastidores onde sempre esteve”.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os abusos sexuais na Igreja.
A relação próxima, a figura de autoridade e a dimensão religiosa. O que diziam os abusadores antes do crime
Ao ser confrontada com esta pergunta, a grande maioria das vítimas que respondeu ao inquérito da Comissão respondeu simplesmente “Nada.” Uma resposta que, para os relatores, ilustra bem o próprio mecanismo de funcionamento dos abusos sexuais: “É um ‘nada’ que assenta numa estrutura de poder e de domínio do adulto sobre a criança, e indicia o estatuto e lugar da pessoa abusadora como inquestionável face ela”, que se assume apenas como “objeto funcional”.
Muitos outros, porém, apontaram tipos de conversa específicos no momento prévio aos abusos. Um salta à vista: o que incide na criação e reforço da ligação emocional entre a vítima e o abusador e o facto de já haver uma relação prévia antes de o abuso sexual ter lugar. “Apoiou muito a minha família durante diversas situações complicadas, inclusive a separação dos meus pais”, aponta uma vítima do sexo feminino, atualmente com 23 anos, ouvida pela Comissão. “Conhecia a minha família, vivia na minha freguesia, era meu professor… Todas as pessoas gostavam dele. Era alguém de confiança”, resume outra vítima — um homem atualmente com 30 anos.
O elogio aos traços físicos da vítima como forma de aliciamento eram também habituais. Várias vítimas destacam como o abusador repetia frequentemente que era “bonito/a”, “lindo/a”, “um anjo” e faziam reparos como dizer que a vítima “é especial” ou que “estava a crescer, a ficar uma mulher”.
Após terem início os abusos de caráter sexual, outros padrões tornam-se evidentes, geralmente ligados à figura de autoridade que o abusador assume. Era habitual os abusadores enfatizam o seu papel como professores ou tutores: “No fim da explicação dizia: anda, vamos lá fazer aquilo, já trabalhaste muito, agora é para brincar”, exemplificou uma das vítimas. Outra, do sexo masculino, concretiza de forma gráfica: “Fazia-me perguntas explícitas que ligava à matéria das aulas. Por exemplo, às tantas perguntava se eu sabia que nos mamíferos não eram só as fêmeas que davam leitinho; se eu já dava leitinho.”
Além disso, os relatores detetaram também um padrão em que muitos abusadores invocavam o seu papel como sacerdotes para justificar e normalizar o abuso, identificando-se como “representante de Deus” ou dizendo às vítimas que estão “ao serviço de Deus” quando se sujeitam a atos sexuais com um padre. Também era recorrente descreverem o ato sexual como forma de “purificação” da vítima — “Disse que me ia tirar o diabo do corpo”, resume uma vítima do sexo masculino, atualmente com 27 anos. Os relatores apontam que termos como “tirar o mal”, “tirar a dor” ou “tirar o diabo” surgem repetidamente nos relatos das vítimas.
O recurso a características ligadas à própria vivência da religião é uma constante em vários dos relatos das vítimas que chegaram à Comissão. O próprio espaço onde decorria habitualmente o abuso é frequentemente invocado pelo abusador como sinónimo de repetição do ato, com o confessionário a assumir “o exemplo mais paradigmático” para os autores do relatório. “Senhor Padre, venho-me confessar”, “Vem confessar-te” ou “Vem ter comigo à sacristia” são várias das frases invocadas pelas vítimas que funcionavam quase como “senhas” que levavam ao abuso. Também as atividades ligadas à vida da Igreja eram invocadas frequentemente para perpetuar o abuso: “Marcava algo relacionado com os acólitos”, “Pedia para cortar as hóstias”, “Perguntou se queria aprender a tocar guitarra” — são todos exemplos dados pelas vítimas de como o abuso era consumado através das atividades das próprias paróquias.
Todos estes argumentos reforçavam repetidamente a dinâmica de uma figura de autoridade, que os abusadores exploravam ainda quando, em alguns casos, passavam a “dar ordens” explícitas. Ordens essas muitas vezes acompanhadas de afirmações de responsabilização da própria vítima, enquadrando o abuso como fruto de uma vontade da própria vítima. “Se calhar já só pensas nisto e andas todo maluco”, dizia um dos abusadores a uma vítima, um homem hoje em dia com 54 anos, enquanto apontava para os genitais. “Estás carente, isto vai ajudar, vais-te sentir melhor”, dizia outro. Ao mesmo tempo, era também habitual os abusadores apresentarem-se eles próprios como vítimas ou como figuras carentes que têm de ser cuidadas pelos menores: “Ele dizia que o pénis dele precisava de carinho”, testemunhou uma mulher de 38 anos. “Alegou que tinha dores de barriga e precisava de uma massagem”, contou um homem, hoje em dia com 77 anos.
Em todo o processo de aliciamento, o padrão de invocação da dimensão religiosa para justificar o abuso é repetido. “Que pecados fizeste?”, perguntava um dos padres a uma das vítimas. “Quando dizia que fiz asneiras e disse palavrões ele começava a tocar nas mamocas, no rabiosque, no pipi.” Outro “perguntava se eu queria ser perdoada, se estava mesmo arrependida, se queria ir para o inferno”. Um terceiro classificava o abuso como “a penitência”, porque “Deus a tinha escolhido”. Tudo comportamentos que se coadunavam com outros de abusadores que classificavam o abuso como uma espécie de consequência ligada ao despertar da sexualidade dos próprios menores, sempre classificado como algo “sujo”. “Conta lá, fazes coisas feias com rapazes?”, perguntava um dos abusadores. “Já andas com a menstruação? Já tens pelinhos?”, interrogava outro.
Depois do abuso: sensação de normalidade, por um lado; humilhação e ameaças, por outro
Também após os abusos há “padrões dominantes” detetados pela Comissão nos testemunhos das vítimas. Um é a “noção de segredo” imposta pelos abusadores sobre o que aconteceu, “intricadamente ligada à chantagem emocional”. “Gostaste? Agora caladinho, que tenho o destino da tua mãe nas minhas mãos, não me esqueço”, foi uma das ameaças impostas a uma das vítimas. Frequentes eram também as ameaças de “ir para o inferno” ou de que “ninguém vai acreditar”, caso as vítimas contassem a alguém o que aconteceu.
Se por um lado há uma insistência em “agir com naturalidade” após o abuso, por parte do abusador — “Vai à tua vida que eu vou à minha”, “Não faças barulho quando voltares à camarata”, etc. —, é também frequente que após o ato haja uma espécie de ordem para “expiar” o pecado. “Mandava-me rezar X Pai-Nossos e X Ave-Marias”, ilustra uma das vítimas do sexo feminino, hoje com 54 anos. “Vamos lá acabar com a marmelada e fazer a oração”, dizia outro dos abusadores à vítima, um rapaz nascido em 1953.
Ordens muitas vezes acompanhadas de ameaças e formas de humilhação, acentuando a “mais frágil relação” da criança com o adulto. Uma das vítimas diz que era vítima de agressões físicas, outra descreve como o abusador se ria dela, outro dizia que iria contar à família que a vítima era homossexual como forma de humilhação. “Da primeira vez não disse nada, mas da segunda disse que, se eu fugisse, os chineses iam apanhar-me e pôr-me no túnel”, conta uma terceira vítima.
Por fim, alguns relatos dão conta de abusadores que se tentam justificar, pedir desculpa ou contextualizar a sua ação, embora, descrevem os relatores, seja algo “que surge sempre revestido por alguma razão exterior, como uma ‘tentação’”. “Pedia desculpa e dizia que eu não o devia seduzir”, resume uma das vítimas.
Das “hóstias” e “medalhas” às ameaças de maus-tratos físicos e expulsão. As recompensas e castigos dos abusadores
Por fim, outro dos padrões detetados nos inquéritos recolhidos pela Comissão é da aplicação de recompensas ou castigos dos abusadores às vítimas, denunciadas por 19% dos inquiridos. São, dizem os autores do relatório, “diferentes formas de coação externa”, que assumem a forma “ora de ameaça e punição, ora de incentivo e gratificação”.
No caso dos incentivos, era frequente a “oferta de bens físicos”, sobretudo guloseimas ou chocolates, mas também “objetos relacionais com a própria simbologia religiosa católica, tais como santos e medalhas” — num dos casos, a vítima descreve mesmo como o abusador lhe dava como recompensa “hóstias”.
Muitas das vezes, essas recompensas eram diretamente dinheiro, identificado sempre como “uns trocos”, “moedas” ou “dinheiro para alimentação” — que, diz a Comissão, expõe “não só o nível de pobreza e de escassez de recursos com que muitas e muitos daqueles que deram o seu testemunho viviam, como o abuso de estatuto e poder de quem os utilizava como aliciamento”. Era também frequente esse apoio ser dado à família, como bens atribuídos aos pais, com uma das vítimas, de 83 anos, a dizer que o abusador lhe garantia que “ia acudir pelos pais se houvesse fome”.
No reverso da medalha estão os castigos frequentemente ameaçados ou aplicados diretamente. As ameaças eram recorrentes, frequentemente através da exposição perante familiares e pares ao denunciar o abuso como vontade da criança: “Ameaçava a brincar, dizendo, ‘já imaginaste a vergonha pela qual ias passar se isto se soubesse’”, relata uma das vítimas. Outra das formas de coação era a ameaça de expulsão da instituição de acolhimento, seminário ou colégio — “Expulsão; não ter mais hipótese de continuar a estudar; ir e morrer na guerra colonial”, aponta uma das vítimas, um homem hoje com 73 anos.
Por fim, há ainda casos em que os maus-tratos físicos ou ameaça deles estavam presentes — “uma tareia”, “reguadas”, ou até ameaças de mortes — caso a vítima revelasse a alguém o que ali se passava. E, aproveitando-se do seu papel de figura de autoridade espiritual como padre, eram vários os abusadores que recorriam àquilo que a Comissão identifica de “violência espiritual” para quebrar as vítimas, ameaçando que Deus “iria ficar zangado”, que “o diabo vinha” ou que a criança não iria “para o céu” caso algum dia revelasse o “segredo”. Tudo formas de garantir que a teia mantinha a presa cativa e que o abuso se podia ir perpetuando — nalguns casos durante anos.