Os tempos não andam fáceis para o PS. Sentado na oposição pela primeira vez em oito anos, enquanto vê o Governo de Luís Montenegro a distribuir rendimentos e a aumentar a pressão para que o Orçamento do Estado passe, o partido parece dividido sobre os próximos passos a dar. E é então que, como é habitual, surge Carlos César, presidente do PS e uma espécie de voz da consciência do partido, a tentar apontar o caminho — neste caso, aconselhando o PS a tentar “melhorar o Orçamento” mas sem viver “obcecado” com ele, fazendo uma lista dos pontos mais frágeis do Executivo do PSD/CDS ou explicando as condições em que deve aceitar coligações autárquicas.
Os discursos de César costumam ser recheados de recados: basta recordar a campanha das eleições europeias, marcada pela especulação sobre se o PS aproveitaria uma vitória eleitoral para imediatamente deixar o Governo abaixo, em que César apareceu para aconselhar o partido a ter “paciência” e a não embarcar em precipitações. Ou a primeira edição da Academia Socialista, que o presidente do partido aproveitou para esfriar os ânimos no que tocava a uma possível candidatura, então muito discutida, de Augusto Santos Silva a Belém — para César, os socialistas não deveriam pôr “o carro à frente dos bois”.
Desta vez, a questão principal que atormenta o PS tem a ver com a viabilização do Orçamento do Estado — é sobre ela que Pedro Nuno Santos é questionado cada vez que sai à rua, repetindo sempre que a maior responsabilidade pela viabilização do documento é do Governo, e é também sobre ela que os socialistas vão especulando, entre corredores, e tentando perceber as consequências de cada decisão. Ora César, chegado a Tomar para o arranque de mais uma edição da Academia Socialista (a rentrée do PS), tentou organizar as prioridades do partido.
[Já saiu o quinto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto episódios]
Primeiro ponto: o PS não vai adotar as políticas do PSD, nem passar a ser “apoiante” da sua “política geral”, mas tem obrigação de tentar negociar e “melhorar” o documento. É a isso que o “sentido de Estado obriga”: o partido deve ponderar soluções “para que o Orçamento do Estado seja menos mau e o Governo menos perigoso”. Ou seja, deve tentar até ao fim mostrar que está, pelo menos, a esforçar-se para tentar negociar, enquanto vai acusando o Governo de não fazer o mesmo.
PS impaciente com silêncio do Governo e com investida “eleitoralista” de Montenegro
O presidente dos socialistas frisou, aliás, que esse deve ser o caminho não apenas no que toca ao Orçamento do Estado, mas em “exceções” e temas que peçam consensos, como é o caso da Justiça — dossiê em que Pedro Nuno Santos já prometeu trabalhar juntamente com o PSD após o verão. Coisa diferente é que o PS — partido que conseguiu nas eleições legislativas uma percentagem de apoio “muito semelhante” à do PSD, frisou — se transforme num “partido de ocasião”, ou que sirva para “aliviar as aflições ocasionais de qualquer dos órgãos de soberania onde não tem responsabilidades atribuídas”.
Nesse caso, e se o PSD apostar, como acusa o PS, em “alimentar diferendos” e conflitos com a oposição, o PS terá de avisar que está a “bater à porta errada” — e nesse caso “o melhor que pode fazer é bater à porta da vizinhança política mais próxima”. A referência é evidentemente ao Chega, que também vai sacudindo a pressão para PS e PSD, neste jogo do empurra orçamental.
Segundo César, o sentido de Estado do PS deve, de facto, levar a que negoceie sem provocar “ruturas” políticas — mas o aviso fica feito: “Isso não nos aprisiona nem nos irá desviar da nossa interpretação mais autêntica do interesse nacional”. Durante o discurso, longo, o presidente do PS deixaria as mesmas ideias por outras palavras: primeiro, frisando sempre que o PS não quer instabilidade, que é um partido responsável e que não tem “pressa em derrubar governos” — nem acredita que os portugueses “desejem” esse cenário, convicção que tem levado a que a ideia de viabilizar o Orçamento ganhe adeptos no seio do PS, com medo que o eleitorado castigue o partido. Depois, frisando que, ainda assim, a situação é volátil e por isso o PS deve estar “em prontidão para qualquer momento súbito na nossa vida nacional”.
A ideia coincide com a que foi deixada por outra das vozes ouvidas com mais atenção dentro do partido: a do ex-ministro e dirigente Duarte Cordeiro. Na abertura do evento, Cordeiro lembrou que a Universidade de Verão do PSD também decorre por estes dias, mas em Castelo de Vide. E revelou estar atento aos recados que chegam do lado de lá. Só que “esta troca de correspondência não pode substituir uma troca séria e formal”, avisou, referindo-se à negociação do Orçamento do Estado. “Se não, já sabemos qual vai ser o resultado” e “não é preciso nenhum exercício de adivinhação”, ameaçou.
Mais uma vez: o PS é “responsável”, mas não se pode “esperar que seja através de algum processo de submissão do PS que se chegue a algum acordo”. Para rematar: “Cá estaremos para assumir todas as responsabilidades que significam ser o maior partido em Portugal”.
Em suma, o PS não quer provocar eleições, mas tem de estar sempre pronto para provar que “sabe fazer melhor” do que Montenegro e os seus ministros. “Podemos ter a certeza de que seríamos e somos melhor Governo do que o Governo que temos agora”, atirou César. Só não pode haver tentações de querer prová-lo depressa demais — sob pena de que os portugueses venham castigar o PS numa nova ida às urnas.
Gastar “rapidamente e em força”. O retrato de um Governo que quer eleições, segundo César
E por falar em idas às urnas, é esse o plano que o PS acredita que Luís Montenegro tem em mente e foi essa a ideia que Carlos César tentou colar à pele do primeiro-ministro durante a sua intervenção. Ideia base: o Governo está apostado em governar no curto prazo, distribuindo dinheiro o mais rapidamente possível, porque nunca se sabe quando voltará a ir a votos — e até pode ser esse o seu desejo.
Foi por isso que César se alongou sobre a “enxurrada de dinheiro atirado de Conselho de Ministros em Conselho de Ministros” e de “Festa do Pontal em Festa do Pontal”, com uma diretiva: “Gastar depressa e em força”, ironizou. O presidente do PS chegou, de resto, a fazer uma imitação de Montenegro, “de dentes cerrados”, que imaginou a vaguear pelos corredores de São Bento, ordenando a ministros “em estado catatónico” que “gastem! Gastem! Gastem!” para que não sobre dinheiro a alocar às medidas que a oposição quiser inscrever no Orçamento do Estado.
“Luís Montenegro já só faz compras. Já só faz contas à relação imediata entre dinheiro que atira para as pessoas e os votos que pode recolher. E pensa: se houver agora eleições o povo já ficou agora com boa impressão. E depois fecharemos as torneiras como nos ensinou Passos Coelho”, atirou César, por entre uma chuva de críticas ao Executivo e à forma como governa, supostamente a pensar no curto prazo.
Se aplicou a este Governo algumas críticas que costumavam ser disparadas contra o elenco de António Costa — como os anúncios repetidos em “powerpoint”, mas não executados –, César também apareceu consciente de que, se o PS quer estar “pronto” a voltar ao poder, tem de reconhecer o que fez de mal e recuperar a confiança dos eleitores. Por isso, o presidente do PS aconselhou o partido a saber “identificar o que falhou”.
E já agora, acrescentaria depois em resposta a uma pergunta colocada por um dos alunos da Academia Socialista, a adotar o seguinte guião para explicar os erros da maioria absoluta: o mandato “curto” e “interrompido” não permite que seja agora feita uma “avaliação total”. Para o PS, uma pena, porque esse seria “o primeiro Governo em que o partido podia dizer que mandava na sua própria política”.
Além disso, César assumiu a que disse ser a explicação mais “cíncia”: “Por alguma razão ainda tínhamos margem financeira elevada: íamos aplicar num conjunto de reformas e medidas que entendíamos essenciais…”. Tarde demais. Já o PSD, focado em “preparar a realização de eleições a curto prazo”, daqui a um ano já terá os “recursos financeiros esgotados”, antecipou.
Coligações à esquerda sim, mas sem pressões
Carlos César deixou ainda indicações sobre um último ponto, e que tem a ver com os próximos desafios eleitorais que o PS enfrentará (pelo menos, de acordo com o calendário normal). Se parte da esquerda à esquerda do PS se tem mexido para tentar que se construam plataformas mais alargadas, tanto nas autárquicas como nas presidenciais, César veio aconselhar a que os diálogos sejam feitos com calma e evitando “aproximações sem critério”.
“Bem sei que agendas internas dos partidos são consideradas e perturbam esses caminhos pretendidos”, alertou — a pressa de Bloco de Esquerda e Livre em discutir o assunto em público e associar-se ao PS tem irritado alguns dirigentes socialistas. Será “positivo” que nas próximas autárquicas, quando for considerado “essencial” e “possível”, o PS procure ter “ajudas de outros partidos” para vencer, concedeu.
A reflexão deve ser pragmática, apontou César: os acordos serão com partidos à esquerda do PS, até porque — agora que o PCP vem perdendo cada vez mais a sua influência autárquica — o PS “disputa no essencial” a hegemonia autárquica com o PSD. Logo, se em certas autarquias precisar de entrar em alianças para vencer, seja. Mas o recado mais transversal do presidente do PS ao partido — e, no caso, a jovens de dentro e de fora do partido — serve tanto para coligações autárquicas como para decisões orçamentais: deve ser o PS a “delimitar o seu caminho”. Evitando ao máximo pressões externas, que no primeiro caso surgem à esquerda e no segundo, com cada vez mais força, à direita.