Nos seus primórdios, vivia principalmente de sons provocados por sussurros ao microfone ou de unhas impecavelmente tratadas a baterem ritmicamente em superfícies de plástico. O ASMR não é novidade — a designação foi cunhada em 2010 —, mas a tendência que tomou conta da Internet nos últimos anos evoluiu e sofisticou-se, ganhou novos formatos e transformou-se numa carreira que, para alguns, já vale vários milhões de dólares por ano.
Se nunca ouviu falar em ASMR (sigla inglesa por que é conhecido), a designação é capaz de não o levar muito longe: em português, traduz-se para Resposta Sensorial do Meridiano Autónomo. A prática incompreendida por muitos trata-se de uma resposta sensorial a um estímulo visual ou auditivo, incorporada numa sensação de cócegas na cabeça e nuca que desce pelas costas e ajuda a relaxar. Em certos casos, é tão forte que há quem a compare a um“orgasmo mental”.
“É algo que muita gente acaba por experienciar sem o saber”, propõe ao Observador a portuguesa Cátia Filipa, mais conhecida na Internet como Maya ASMR. Tinha 11 anos quando se lembra de a sentir de forma intensa pela primeira vez — numa altura em que o termo ainda estava longe de ser cunhado — graças ao vídeo “Virtual Barber Shop” (com mais de 38 milhões de visualizações no YouTube), uma arrepiante simulação de corte de cabelo em barbearia onde, com os auriculares postos, o ouvinte é tomado por uma sensação de tridimensionalidade sonora.
Há cerca de 5 anos, descobriu por acaso a tendência que estava ganhar terreno na Internet, lembrou-se da sensação da sua infância e não demorou muito a perceber que gostava mais de criar conteúdos do que de os consumir. Partilhou o seu primeiro vídeo no YouTube em janeiro de 2019. Não gostava de mostrar a cara ao início — “sempre fui muito envergonhada e tinha medo”, confessa —, mas hoje deixa a vergonha de lado e já conta com mais de 212 mil seguidores, distribuídos entre as principais plataformas em que está presente: YouTube, Instagram, Twitch e TikTok.
Gatilhos há muitos
Como tantos outros, a artista de ASMR (ou ASMRtist, expressão que aproveita a fonética da sigla na língua inglesa) já experimentou diferentes triggers (gatilhos) para estimular a sensação agradável na sua audiência. Em alguns, faz encenações de papéis para simular cenários de atenção pessoal; noutros, mastiga bolachas TUC ou snacks da Cheetos muito perto do microfone. Até o ronronar da sua gata, Yumi, serve como adereço para ajudar a relaxar quem já não sabe viver sem a sua dose diária de arrepios na nuca.
“Tornou-se estranhamente fundamental”, revela Constança Castello Branco, uma autoproclamada “consumidora religiosa” deste tipo de conteúdos desde 2017. “O ASMR tem um poder relaxante incrível sobre mim. Vejo sempre um bocadinho antes de dormir para relaxar.” Para ela, os vídeos ideais devem ter uma duração mínima de 25 minutos, tempo necessário para que possa abstrair-se do mundo, mas até há quem acompanhe os livestreams de 3 horas de Maya para adormecer. “Há pessoas que precisam de mais tempo para sentir os benefícios calmantes.”
Constança começou por encontrar vídeos de chewing, “isto é, onde as pessoas trincam e mastigam alimentos ao pé dos microfones de alta captação”, mas não a cativaram. Para ela, os verdadeiros gatilhos sensoriais são o tapping (onde o foco está no som das unhas a baterem em diferentes objetos), o whispering (palavras e sons sussurrados ao microfone) e os roleplays (populares encenações de papéis, que se inserem na categoria de personal attention, ou atenção pessoal), a modalidade que, acredita-se, já conquistou mais adeptos.
“Nos roleplays, os criadores de conteúdos adotam uma personagem — médicos, maquilhadores, tatuadores, esteticistas — e simulam uma consulta, como na vida real, enquanto interagem com o ecrã. Normalmente há muito contacto com objetos, barulhos relaxantes e perguntas diretas ao espetador, como se estivéssemos lá.” Nesta categoria, destaca TingTing ASMR (2,26 milhões de subscritores no YouTube) como a sua criadora favorita.
Um negócio de 1 milhão de dólares
Para uma audiência que já conta com mais de 8,11 milhões de subscritores no YouTube, a canadiana Naomi MacRae (ou HunniBee, como é conhecida pelos fãs) mastiga escovas de cabelo, garrafas de champanhe e colheres, entre outros objetos inusitados, todos eles cor-de-rosa, e o microfone ganha vida numa cacofonia de sons de mastigação. Isto, no vídeo mais visto de sempre da criadora de conteúdos, que acumula mais de 90 milhões de cliques.
Em março, MacRae foi notícia em todo o mundo quando revelou que os seus vídeos lhe rendiam perto de 1 milhão de dólares por mês (cerca de 998 mil euros) por comer “coisas esquisitas”, como a própria as descreve, sempre coordenadas por cores. “Uma pequena ressalva”, avisa no início, ”isto não é uma escova de cabelo verdadeira. Isto é falso”. Todos os adereços que devora com gosto são, de facto, comestíveis e caseiros, grande parte confecionados pela própria recorrendo a ingredientes como chocolate, corantes e bolos, marshmallows e merengue, que mastiga tranquilamente para levar os seguidores ao nirvana.
Também a portuguesa Maya consege fazer do ASMR o seu ganha-pão exclusivo. Cria conteúdos em português e em inglês para alcançar um público mais vasto, por um lado, mas também para poder exponenciar rendimentos. “Muita gente não tem noção disto, mas o YouTube paga valores diferentes consoante a localização das visualizações”, explica. Trocado por miúdos, isto significa que ter uma audiência portuguesa representa para a plataforma uma remuneração “muito, muito baixa” quando comparada às de outros países, como do Reino Unido, onde reside atualmente. “Quando só tinha o canal português, não dava para pagar contas”, remata.
O estigma sexual e os episódios de assédio
Se a caixa de correio de MacRae está cheia de mensagens de mães que lhe estão gratas por ajudar a acalmar os filhos, também há por lá “tarados esquisitos”, como relata ao Mirror, que se disponibilizam para lhe oferecer largas quantias de dinheiro a troco de verem os seus pés, ou para que se mostre a “sugar pepinos” junto do microfone.
“Quando és mulher e começas a criar conteúdo online, vais ser alvo de assédio sexual. É muito triste. Enquanto criadora de conteúdos, tens de traçar os teus próprios limites”, refere Maya, que já se viu forçada a tomar medidas extraordinárias para se escudar de abusadores. “Houve um rapaz que começou a enviar mensagens para todas as minhas plataformas. Era sempre invasivo e deixava-me desconfortável”, recorda. “Ele via os livestreams [transmissões de ASMR em direto que Maya organiza na plataforma Twitch] e enviava-me 5 ou 6 emails no espaço de três horas a descrever atos sexuais que estava a fazer enquanto me estava a ver.”
Além de lhe bloquear os comentários no YouTube e Instagram, Maya precisou de o banir várias vezes da plataforma, uma vez que o agressor chegou mesmo a criar múltiplas contas para a poder assediar. “O problema é que quando banes uma pessoa, ela continua a conseguir ver [os conteúdos]. Eventualmente fui banindo tantas vezes que ele desistiu.”
Se para Maya e tantos outros ASMRtists, o exercício não pretende ter conotações sexuais, a evolução da prática também já deu origem a novas categorias, entre eles a ASMRotica, uma prima mais marota promovida por criadores que quiseram explorar as suas possibilidades de erotismo.
A americana LunaRexx, por exemplo, partilha vídeos com os seus 266 mil subscritores de YouTube que intitula de “ASMR para homens” e que incluem encenações de massagens, sestas passadas sensualmente ao seu lado, cortes de cabelo ou de barba, que executa sempre de batom vermelho nos lábios, vestindo roupas justas enquanto fala para a câmara como se contemplasse luxuriosamente Timothée Chalamet. Por outro lado, a conterrânea Leedah conquistou por lá 166 mil seguidores fiéis com conteúdos como “A Tua Crush a Dar-te Beijos Quentes”, onde simula um encontro romântico num dia de chuva.
Eu não gosto de ASMR, tu é que gostas
Se há quem transporte o ASMR para espetro da sexualidade, também há quem não perceba o conceito. Maya esforça-se por explicar aos céticos os benefícios para a saúde mental, mas o estigma, diz, está presente. “Há pessoas que não gostam de coisas novas, que acham estranho.” Até porque, como a própria criadora, nem todos conseguem experienciar facilmente o formigueiro na nuca — acredita-se que apenas 10 a 20 por cento da população mundial o consiga sentir.
“Ao inicio era estranho contar a alguém que gostava muito de ASMR”, comenta Constança. “Cheguei a ouvir de algumas pessoas que parecia algo erótico, ou assim, mas depois desconstruíram essa ideia. Acho que o estigma vai desaparecendo.”
Segundo a terapeuta e autora Marisa Peer, as reações positivas à natureza íntima dos conteúdos são “completamente normais” e até mesmo “infantis”. “Muitas pessoas experienciam pela primeira vez ASMR em crianças, enquanto lhes lêem histórias ou lhes fazem festas no cabelo ou na testa”, declara à Mashable. À medida que crescemos e que a intimidade se instala no imaginário com associações ao sexo, a vergonha e a culpa tingem as águas.
“As pessoas sentem muitas vezes vergonha ou culpa em relação a algo se acreditarem não ser normal”, continua a especialista. “Perdoarmo-nos é um passo importante para deixarmos os sentimentos de vergonha para trás.” A terapia do som, explica, é um método natural para o relaxamento e para a cura e não se distancia muito daquilo que sentimos ao escutar a música tranquilizante de um spa ou o som do vento a soprar nas árvores.
Ciência ou tendência?
Mas, afinal, que bases científicas sustentam os tão falados benefícios do ASMR? Felizmente para os seus fãs, cada vez mais académicos têm a mira apontada para a tendência da Internet. O maior exemplo entre todos é talvez Dr. Craig Richard, professor de ciências biofarmacêuticas na Universidade de Shenandoah, na Virginia, e especialista em ASMR. Sem surpresas, também ele se lembra da sensação que o mergulhava em criança numa “maravilhosa nebulosa cerebral”. Tão maravilhosa, que inspirou a criação da plataforma online ASMR University, além da publicação de um livro sobre o tema, Brain Tingles (isto é, cócegas cerebrais).
Com a sua equipa, conduziu um estudo para descobrir os efeitos que ocorrem ao nível psicológico quando a resposta sensorial do meridiano autónomo é disparada. “Mostrou que áreas específicas do cérebro estão ativas quando alguém experiencia ASMR. Algumas destas áreas sublinham o provável envolvimento de dopamina e oxitocina”, adianta à National Geographic. Estes neurotransmissores estão ligados, por exemplo, às sensações de prazer e motivação no cérebro (dopamina), bem como de relaxamento (oxitocina). Além disso, os benefícios registados incluem uma redução de ansiedade e insónias, bem como possíveis benefícios ligados à dor crónica e depressão.
Ainda assim, a ciência tem um longo caminho a percorrer para refinar o estudo desses benefícios num contexto clínico, acredita a professora de psicologia na Universidade de Essex, Giulia Poerio. “Houve apenas uma mão-cheia de estudos a examinar as bases neurológicas e psicológicas do ASMR. Ainda estamos numa fase muito embrionária no campo de pesquisa.” As boas notícias, assegura ao mesmo meio, são que a conquista de um maior número de fãs anda de mãos dadas com crescente o interesse da comunidade científica.
“Há muitas experiências não-universais que são agora aceites prontamente pela comunidade científica — sinestesia, paralisia do sono, afantasia”, acrescenta. “Não precisamos de ter uma experiência em primeira mão para as aceitarmos como fenómenos genuínos, dignos de investigação empírica. Estou confiante de que o ASMR vai seguir o mesmo caminho.”