Dois anos é muito tempo, como — quase — diz a canção (a letra cantada por Paulo de Carvalho fala em dez). E em dois anos o Bloco de Esquerda, que se viu esmagado pela maioria absoluta do PS em 2022, teve tempo para dar a volta ao seu guião e partir para a estrada com um discurso novo: ataques ao PS sim, mas praticamente só ao PS absoluto, poupando genericamente Pedro Nuno Santos; críticas cerradas à direita, que lhe tem fornecido temas novos todos os dias; e uma desistência do discurso sobre cenários pós-eleitorais, incluindo os que envolveriam o papão André Ventura.
“As conversas sobre governabilidade são infinitas e todas elas hipotéticas“, ouve o Observador. “Já tínhamos deixado [as conversas sobre cenários pós-eleitorais]. Queremos é propostas”, acrescenta outra fonte bloquista. Convencido de que o eleitorado se sentirá confuso e baralhado se a história desta campanha tiver por base possíveis acordos da direita com o Chega — um cenário que ainda por cima assustou os eleitores de esquerda e ajudou a entregar a maioria ao PS, há dois anos — o Bloco colocou esse discurso de parte.
A ameaça do Chega somado à direita faz parte do “ilusionismo” da campanha, do “engano em que o artista manipula a atenção da audiência”, argumentava a dirigente e cabeça de lista por Setúbal, Joana Mortágua, esta semana, num comício em Almada. Um dos “truques” desta campanha, defendia, está a ser a “cenarização” constante — “se o Cavaco voltar, se formos invadidos por zombies… o que importa é que esses cenários, verdadeiras charadas, nos mantenham entretidos“, atirou.
O outro “truque” que o Bloco identifica é a “sequência vertiginosa de sondagens, para nos convencer de que estamos sempre à beira de um qualquer abismo, de um empate, de uma catástrofe”. Foi o que aconteceu em 2022 — e os bloquistas sabem que esse discurso pode facilmente levá-los a ser engolidos pelo voto útil, que leva sempre ao “arrependimento”, como veio o fundador Fernando Rosas dizer à campanha no mesmo comício — um discurso que Mariana Mortágua adotaria logo no dia a seguir: “Se os apelos ao voto útil fossem escritos em livro, o título seria ‘a história de um arrependimento’”.
A campanha do Bloco tem-se feito, assim, contra a direita mas com base no ataque às propostas e discurso dos partidos desse lado do espectro, enquanto em surdina se censura o foco do PS em falar de cenários e viabilizações de governos do PSD. Logo na segunda-feira, enquanto visitava uma escola em São Teotónio, Odemira, que acolhe centenas de filhos de trabalhadores imigrantes de 25 nacionalidades diferentes, Mortágua aproveitava para criticar o discurso de Pedro Passos Coelho sobre imigração — “um flirt” com ideias de extrema-direita, atacava — mas recusava responder diretamente por duas vezes a uma pergunta se esse “flirt” poria em causa a garantia de Luís Montenegro de que não se aliará ao Chega. Os bloquistas não entrariam por aí.
Onde entram é no ataque constante e cerrado a todo o bloco da direita — e acreditam que a AD lhes tem dado combustível para isso. Primeiro, nas tais referências de Passos sobre imigração, que Mariana Mortágua disse, no dia seguinte, trazerem “um cheirinho a racismo” à campanha. Mas, sobretudo, o regresso de Passos levou o Bloco a agarrar o discurso anti-troika, aquele que o levou a crescer mais (teve 19 deputados em 2015, um resultado com que nem o próprio partido contava) num momento em que está em mínimos (tem agora cinco deputados no Parlamento).
Com o pretexto do regresso de Passos, Mortágua agarrou-se ao fantasma dos cortes de pensões que assusta o eleitorado mais velho, e calhou cruzar-se em duas arruadas com duas idosas, que vieram falar-lhe do assunto. O problema, dizia uma, é que o “povo esquece”. A coordenadora do Bloco garantiu que não — pelo menos, o partido tentará assegurar-se de que ninguém se esquece do papão da troika, sejam os pensionistas que sofreram “talhadas” nos seus rendimentos ou os jovens “expulsos” do país, e vai recortando e divulgando nas suas redes sociais o momento em que o próprio Montenegro se deparou, na campanha, com duas idosas que lhe foram pedir satisfações.
O outro mote que a AD lhe deu foi a aparição de Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, que veio defender um referendo ao aborto — sendo imediatamente contrariado por Montenegro — e incendiou os ânimos à esquerda. As declarações foram divulgadas em dia de aniversário do Bloco de Esquerda, pretexto que Mortágua aproveitou para voltar a fazer tiro à AD, congratulando-se, ainda assim, por ver um “consenso” generalizado na sociedade que significa que “até a extrema-direita capitula” na questão do acesso ao aborto. E não cavalgou mais o assunto, dizendo estar convicta de que não haverá regressões nesse sentido.
De resto, parte das suas intervenções têm sido passadas a atacar, a dramatizar ou a tentar desmontar as propostas que constam dos programas da direita. Fê-lo em Almada, quando acusou os liberais de quererem “privatizar” o sistema de Segurança Social e deixar as pensões “sem cobertura”, uma “grandessíssima responsabilidade” que só se pagaria vendendo “dez ou trinta vezes a mesma Caixa Geral de Depósitos”, ironizou. E insistiu nas críticas às propostas da direita para baixar o IRC, sobretudo às grandes empresas. “Como é que o CEO da EDP não há de financiar a IL e os CTT o Chega? É natural que os milionários financiem quem defende os milionários”. O discurso contra as “elites que assaltam o país” e a direita que as protege tem sido uma constante. E só depois disso, como segunda prioridade, chega a crítica ao PS.
O conselho a Pedro Nuno: não tenha “orgulho” na maioria absoluta
“O nosso discurso é contra a maioria absoluta”, como resume fonte bloquista, num altura em que o partido acredita que algumas das desigualdades que se agravaram nos últimos anos foram o verdadeiro combustível para o crescimento do Chega. Até agora, os dois PS — o do tempo do costismo e o do pedronunismo, possível parceiro caso as eleições tragam resultados melhores do que as sondagens antecipam — seguem bem separados no discurso do Bloco. O tiro é dirigido ao PS da maioria absoluta e raras são as vezes em que os ataques atingem o novo programa socialista.
Esta semana, a crítica mais dura que Mortágua disparou contra o PS teve a ver com o excedente orçamental do último ano, que ultrapassou os 4,4 mil milhões de euros — “quase metade do Orçamento para a Educação ou um terço para a Saúde”. E apontou um erro do PS absoluto que Pedro Nuno Santos tem vindo a garantir que quer corrigir, prometendo a reposição do tempo de serviço dos professores ou a revisão das carreiras dos médicos: “Compraram-se guerras com todos os profissionais porque não havia dinheiro”.
Já Joana Mortágua chegou a dirigir-se a Pedro Nuno Santos, quando falava na questão do aborto e nas dificuldades práticas no acesso a ele no SNS, para o aconselhar a deixar cair o “orgulho” que já disse ter na governação de António Costa: “Quero dizer-lhe em nome de todas as mulheres que lutaram por um aborto seguro: está enganado. O SNS tem falhado às mulheres deste país. Essa irresponsabilidade tem de acabar. Vamos cobrar aquilo que nos é devido”.
Sobre o PS antigo, a coordenadora do BE identificou-lhe a “maior irresponsabilidade”: o regime de benefícios para residentes não habituais, “mais do que um PRR para financiar quem pode fazer subir os preços das casas e dificultar a vida a quem recebe um salário e não consegue pagar uma renda ou uma casa”. A ideia é sempre a mesma, e tem sido repetida por Mortágua nestes primeiros dias de campanha: o Bloco está pronto para “superar os bloqueios que a maioria absoluta desastrosa deixou em Portugal”; outra versão passa por apontar as “crises que a maioria absoluta abriu” ou agravou no país. É a forma de tentar resolver a aparente contradição entre lançar fortes críticas ao mesmo partido com que quer conversar no dia a seguir às eleições.
“Só um voto no BE pode mesmo virar a página desse passado, dessa maioria absoluta”, rematava no comício de Almada. O objetivo é claro: o BE quer deixar clara a separação das águas entre o que será uma “governação à esquerda” — e por isso faz questão de recordar de forma constante as conquistas da geringonça, de que fala com orgulho, frisando que as “impôs” ao PS — e o que foi uma governação do PS absoluto, longe de ser à esquerda.
É uma linha narrativa relevante para um partido que sente as sondagens virarem à direita, e que teme que a maioria absoluta do PS tenha sido o prego no caixão das maiorias à esquerda, por agora. Se os dados que existem parecem apontar para uma tendência para a alternância, o Bloco pede uma oportunidade para voltar a condicionar a governação do PS e tentar garantir que medidas de esquerda podem resolver os problemas instalados. Falta saber se o eleitorado confiará nessas garantias.