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“Atentas” à crise. Quem são as empresas que ganham milhões com os “calotes” da banca?

Quem compra crédito malparado e carteiras de imóveis à banca diz-se "atento" ao impacto da crise. Quem está por trás destes fundos e das empresas que trabalham a seu soldo na recuperação de "calotes"?

“O lixo de um homem pode ser o tesouro de outro” e, como há poucos dias revelou o Tribunal de Contas, investidores compraram imóveis que o Novo Banco quis vender e, pelo menos em alguns casos, esses mesmos ativos foram revendidos pouco depois – com mais-valias médias de 60%. Quem embolsa estes lucros, tipicamente, são grandes fundos privados de Londres ou de Nova Iorque que, nos últimos anos, compraram (com descontos elevados) os largos milhares de milhões de euros em “calotes” não só do Novo Banco mas de toda a banca. E, agora, dizem estar “atentos” ao “novo produto” que pode surgir devido ao impacto da inflação e da subida das prestações de crédito.

O antigo governador do Banco de Portugal Carlos Costa chamava-lhes a “mochila” que os bancos carregavam às costas, “ativos problemáticos” que os impediam de serem rentáveis e os colocavam na mira dos reguladores e dos mercados financeiros. Os créditos não produtivos (cujas prestações as empresas e as famílias deixaram de pagar), somados aos bens que os bancos foram recebendo como garantia, chegaram a superar os 50 mil milhões de euros. Hoje, estes non-performing loans (ou NPL) serão pouco mais de 7 mil milhões.

O setor está saneado, praticamente“, diz uma fonte do setor; “estamos a trabalhar na cauda das carteiras, basicamente a gerir os ativos que comprámos nos últimos anos – há pouco novo produto a entrar“, acrescenta outra fonte, que trabalha há cerca de 10 anos num dos servicers que atuam no setor do crédito malparado em Portugal. Se os compradores são, normalmente, fundos gigantescos que nem sequer têm escritórios permanentes no país, estes servicers são as empresas de cobrança contratadas para andar no terreno a tentar recuperar o mais possível a quem deve.

Os servicers também podem trabalhar diretamente para os bancos e, quando isso acontece, o Banco de Portugal criou em 2012 algumas orientações nessa tentativa de reaver o dinheiro, proibindo telefonemas depois das 22h00 ou contactos para números que não estão no contrato de crédito (como telefonar para o emprego, por exemplo). Porém, quando a banca vende esses “calotes” e os servicers estão ao serviço de investidores privados “é o Faroeste. Algumas empresas não olham a meios porque o ganho deles depende de quanto conseguirem recuperar – e fazem coisas que os bancos não fariam, até por razões reputacionais”, diz uma fonte do setor bancário. As regras, porém, vão apertar.

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Fim do "faroeste"? Regras vão apertar até ao final de 2023

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A “limpeza” do malparado dos bancos já passou, claramente, a fase mais intensa mas continua a ser um setor com muita atividade a nível europeu. Daí que o Parlamento Europeu e o Conselho da UE tenham, finalmente, criado uma nova diretiva que deverá ser transposta para a lei portuguesa até ao final de 2023.

Um dos pilares em que assenta a nova diretiva é a “salvaguarda dos direitos dos devedores”, ao mesmo tempo que se reforça o controlo sobre estas empresas, obrigando ao seu registo e submetendo-as à supervisão de algum novo regulador que se crie ou, então, de algum regulador já existente que passe a ter responsabilidades nesta área.

Por outro lado, a diretiva tenta criar um mercado secundário para este tipo de ativos – ou seja, aumentar a transparência do setor levando a que os NPL possam ser transacionados entre investidores (não apenas entre banco vendedor e investidor comprador) de forma harmonizada em todo o mercado único europeu.

Nova crise? “Estamos atentos a isso”

A pandemia não trouxe, pelo menos de forma imediata, o colapso económico que muitos vaticinaram. Os governos abriram os cordões à bolsa, para travar o aumento do desemprego, e os bancos centrais não só mantiveram as taxas de juro baixas como as reduziram ainda mais. Agora, o cenário está a inverter-se – e se o agravamento do custo de vida se prolongar e o aumento das taxas de juro acelerar “pode gerar-se uma nova vaga de incumprimentos“, admite Marco Freire, presidente-executivo da WhiteStar Asset Solutions, uma das maiores servicers nacionais. “Estamos atentos a isso“, acrescenta.

Apesar de uma das fontes ouvidas pelo Observador dizer que o setor está “praticamente saneado”, no final de 2021 calculava-se que a banca nacional tivesse ainda 7,7 mil milhões de euros nos chamados non performing loans, os NPL, conceito que, em termos simplificados, se refere às exposições que os bancos têm e que estão em incumprimento.

Este volume corresponde a 3,5% do total de crédito que existe em Portugal, o que ainda coloca a banca nacional entre os piores rácios de toda a Europa – em Espanha são 3% e em Itália 3,1%, o que, porém, equivale a 82,4 mil milhões e 60,8 mil milhões, respetivamente. Só os bancos gregos estão pior, com 15,2 mil milhões de euros em crédito malparado (equivalente a um rácio de 7%, o dobro do português).

Houve alguma recuperação por meios próprios, mas a venda de carteiras de NPL foi a principal forma que os bancos tiveram de resolver o problema – só o resolveram, porém, quando tiveram capital suficiente para reconhecer as perdas. Susana Bento, partner da Deloitte (uma das principais consultoras que ajudam os bancos na preparação de carteiras), lembra que “no período após a crise da dívida soberana os bancos tinham acumulado um nível de stock de crédito malparado bastante significativo (o rácio de NPL médio do setor em 2014 era de 16,6%), tendo decorrido vários anos em que, apesar do elevado stock no balanço dos bancos, não houve muitas transações sobretudo porque existiam restrições de capital”.

“Após o ano de 2017 os volumes transacionados tornaram-se mais significativos, sendo 2018 e 2019 anos com bastante dinâmica neste mercado. Com o início da pandemia, houve um forte abrandamento, estando, nesta fase, a observar-se novamente um aumento do número de transações”, afirma a especialista.

A recuperação económica e a subida dos preços do imobiliário foi o pano de fundo decisivo a partir de 2015, mas cada banco teve o seu timing: o Millennium BCP acelerou o reconhecimento de imparidades e a venda de ativos após o aumento de capital que marcou a entrada dos chineses da Fosun, a Caixa após a grande recapitalização pública e o Novo Banco teve os anos com maiores alienações de ativos “tóxicos” após ter sido vendido (75%) ao fundo Lone Star, que negociou um mecanismo de compensação pública para parte das perdas que foi reconhecendo.

No auge, houve anos com cerca de 9 mil milhões de euros em carteiras de NPL vendidas – é impossível ter maior exatidão porque não há estatísticas oficiais, apenas aproximações consoante aquilo que é noticiado pelos jornais ou os números que circulam no setor. Só em 2017, o valor (bruto) de NPL baixou de mais de 46 mil milhões para 37 mil milhões. Nos anos seguintes, o ritmo manteve-se e só 2020, marcado pelo início da pandemia, a atividade desacelerou mas voltou a acelerar na segunda metade de 2021.

Quem deve o quê? Onde estão os NPL em Portugal

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No final de 2021, cerca de um terço (32%) do crédito malparado detido pelos bancos dizia respeito às famílias, um total de 2,5 mil milhões de euros (menos 30% do que havia no final de 2020). Dentro do segmento famílias, 48% do crédito em incumprimento eram financiamentos para a compra de casa (1,2 mil milhões), uma classe de NPL que baixou 40% face a 2020.

A maior parte do crédito em incumprimento em Portugal, porém, está nas empresas não-financeiras (64% do total). No final de 2021 eram 4,9 mil milhões de euros, ainda assim menos 37% do que no final de 2020.

 

E agora? Apesar de uma das fontes do setor dizer que o sistema está “praticamente saneado”, os bancos estão a querer acelerar a venda de carteiras, embora publicamente os banqueiros continuem a passar uma mensagem de relativa serenidade em relação ao que aí vem – designadamente sobre o impacto da subida dos juros nas prestações.

Nos bastidores, estão, porém, a mexer-se para precaver os riscos de que a crise económica leve a um novo aumento dos créditos em incumprimento – “o que é natural, se realmente viermos a ter uma recessão na Europa (e em Portugal) seria a primeira vez na história do mundo que uma recessão não causaria um aumento relevante dos incumprimentos de crédito”, diz uma fonte do setor.

O valor dos NPL tem caído de forma ininterrupta desde meados de 2016 “e ninguém quer ver uma inflexão nessa linha do gráfico“, o que aconteceria se as recuperações (e vendas) acontecerem a um ritmo inferior aos das eventuais novas entradas em NPL – esse será um risco ainda maior se os preços das casas entrarem num período de desaceleração ou, mesmo, de queda relativamente generalizada.

“Aflitinhos” com a subida dos juros. É desta que os preços das casas vão cair?

Fundos-abutres? “A banca tem vendido muito bem”

No setor estima-se que neste ano de 2022 sejam vendidos pelos bancos cerca de dois mil milhões de euros em carteiras de NPL – sendo importante sublinhar que esse é o valor a que os ativos (improdutivos) estão contabilizadas e não o encaixe que a banca poderá realizar.

Isto porque, conforme a qualidade dos ativos, os investidores normalmente exigem descontos muito substanciais que os bancos aceitam porque lhes liberta capital regulatório e melhora, no mercado, a sua imagem de solidez. Para uma carteira de crédito unsecured, ou seja, sem garantias (como imóveis) é, normalmente, difícil atrair investidores que ofereçam mais de 10% ou 15% do valor total em dívida, ao passo que numa carteira secured os descontos exigidos podem ser um pouco menores – 50% ou até um pouco mais.

Ao comprarem por 10% ou 15%, os investidores já sabem que nunca irão recuperar 100% – nem perto disso. Porém, tendencialmente a aritmética que é aplicada a cada negócio é que, em cima do valor que se paga aos bancos para comprar os NPL, um bom negócio para o fundo comprador é aquele onde se consegue somar uma margem de lucro de pelo menos 15% ou 20%.

Susana Bento, da Deloitte, explica que “a valorização das carteiras é estimada com base nos cash flows futuros descontados para o momento atual. O exercício que é feito pelos investidores é estimar quanto é que será possível recuperar através de um processo negocial com o devedor ou através da execução dos colaterais (no caso dos créditos garantidos), tendo em consideração a valorização atribuída aos colaterais e o tempo até ao recebimento”.

O presidente da WhiteStar, entrevistado pelo Observador, não confirma estes valores mas reconhece que “os investidores têm conseguido retornos interessantes em Portugal, que tem sido um mercado muito consistente”. Porém, Marco Freire argumenta que “é importante desmistificar o que se diz, por vezes, na opinião pública, que os investidores são uns abutres que fazem grandes negócios – não é verdade: a banca tem vendido muito bem e o mercado está super-competitivo“.

“Os bancos têm vendido bastante bem, ao contrário do que a opinião pública acha de que os bancos perdem muito dinheiro – isso não é verdade“, repete Marco Freire. “Os bancos têm aproveitado a concorrência e o facto de Portugal ser muito apetecível, em que toda a gente já tem o processo bem oleado, os arrangers [consultores externos como a KPMG, Deloitte e Alantra] fazem bem o seu papel, os servicers dão garantias de que as carteiras vão ficar em boas mãos – isto são coisas que não existem em outros mercados com mais volume, como Itália, Espanha ou Grécia”, alega o gestor.

“É a loucura. Vendas de carteiras atraem sempre 12 a 15 interessados”

A Prime Yield, uma consultora que se dedica à avaliação de garantias imobiliárias, também coloca em causa que, sobretudo nesta fase de ‘cauda da carteira’, os investidores neste mercado consigam retornos maiores. Sobretudo porque existe muita concorrência na compra dos pacotes, desde os unsecured até aos garantidos por hipotecas: “nas vendas abertas de carteiras de NPL não conheço nenhuma com menos de 8 ou 9 bidders [oferentes], mas o normal situa-se entre os 12 e os 15” investidores que vão a cada processo – “é a loucura“, dizem Nelson Rêgo e Francisco Virgolino, da Prime Yield.

Mas tanta concorrência não devia levar a preços de venda melhores (com descontos menores)? “Ao ler as notícias fica-se com a ideia de que algumas coisas foram vendidas ao desbarato, mas no entanto ao valor do ativo que é dado como garantia é necessário retirar toda a dívida que está associada a essa garantia – o que inclui, por exemplo, dívidas ao fisco, dívidas à segurança social, dívidas aos trabalhadores (nas empresas) e, no caso das pessoas, é preciso contabilizar os custos associados ao processo, como seja os custos e o tempo que irá decorrer até que o ativo passe a estar vendável”, explicam os responsáveis da Prime Yield. Há casos de imóveis executados que valem, por exemplo, 500 mil euros mas que, no final, ao comprador do crédito só restou cerca de 10 mil euros, depois de terem sido pagos todos os credores que tinham níveis de senioridade superior.

Todos estes riscos são tidos em conta no momento da oferta – e, depois, há o fator-tempo. Para que os investidores oferecessem mais pelas carteiras de NPL (ou seja, exigindo descontos menores), as empresas do setor dizem que o Estado teria de garantir processos jurídicos mais rápidos, embora reconheçam que nos últimos anos houve melhorias importantes como a introdução do portal Citius e algumas medidas na área da descentralização de processos judiciais.

Ainda assim, mesmo havendo espaço para aperfeiçoar este setor, “Portugal será sempre um mercado que estará no radar dos investidores“, porque “embora não seja aquele onde se encontram os retornos mais generosos, é um mercado mais constante e mais previsível do que outros, afirma Nelson Rêgo.

“Em Portugal os investidores sentem mais segurança jurídica do que em Espanha”, por exemplo, e por isso muitos fundos apostam em Portugal como estratégia de diversificação no contexto da Península Ibéria. Os especialistas da Prime Yield, empresa que já se internacionalizou para outros mercados, dizem que “em Espanha compram carteiras e, por vezes, depois chegam lá e as casas estão ocupadas. Já a Grécia tem mais volume mas é ainda pior – imóveis sem registo, registados à mão ou até pessoas que não acabam as casas para não pagar imposto”.

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