(notícia atualizada a 13 de julho às 14h30 com reação do Novo Banco)

Quem comprou ativos que o Novo Banco vendeu com grandes descontos, incluindo património imobiliário, conseguiu obter “mais-valias iguais ou superiores a 60%“, sublinha o Tribunal de Contas na auditoria à gestão do Novo Banco divulgada esta terça-feira. Esses descontos elevados a que alguns ativos foram vendidos geraram perdas que foram, depois, impostas aos contribuintes, num mecanismo que o Tribunal de Contas considera que “não salvaguardou” o interesse público – e a história poderá não ter terminado por aqui.

As considerações estão na segunda fase da auditoria ao Novo Banco (NB) que foi solicitada pela Assembleia da República e que, neste ano, tentou perceber “se a gestão do Novo Banco com financiamento público salvaguardou o interesse público”. As conclusões são arrasadoras para a administração ainda liderada por António Ramalho, embora também se afirme que o problema começou logo com a forma como a instituição foi vendida.

“À data da venda do NB, a avaliação e valorização dos ativos registados no balanço não eram adequadas e exigiam a constituição de provisões para potenciais perdas”, diz o Tribunal de Contas, lamentando que “nem o Estado, nos compromissos assumidos perante a Comissão Europeia, nem o Banco de Portugal (BdP), na negociação do Mecanismo de Capital Contingente, salvaguardaram a minimização do recurso ao apoio financeiro público, assegurando controlo público eficaz“.

O processo de venda de 75% do NB ao fundo Lone Star foi liderado pela entidade de resolução (o Banco de Portugal, encabeçado por Carlos Costa), mas o então ministro das Finanças, Mário Centeno, e o próprio primeiro-ministro, António Costa, responsabilizaram-se pelos termos da venda, desde logo numa conferência de imprensa em que Costa garantiu que aquela venda não teria “custos diretos ou indiretos para os contribuintes”. Essa foi uma promessa que o Tribunal de Contas já criticou na auditoria divulgada em maio de 2021.

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Esses custos acabaram por existir, com o fundo Lone Star a pedir sucessivas injeções de capital ao Fundo de Resolução (um organismo público) e quase esgotando o plafond do Mecanismo de Capital Contingente que foi acordado na venda e que estava limitado a 3.890 milhões de euros (já só restam menos de 500 milhões). E na base dessas injeções estavam perdas com a venda de ativos que, diz o Tribunal de Contas, foi feita com descontos elevados.

“Em 2018 e 2019, o NB vendeu ativos com desconto de 75% face ao valor nominal ou valor contabilístico bruto e de 33% face ao valor contabilístico líquido de imparidades“, salienta o Tribunal de Contas, concluindo que “não foi demonstrado que a estratégia de redução de ativos através de vendas em carteira fosse eficaz e eficiente na prossecução do princípio da minimização das perdas/maximização do valor dos ativos”.

Pelo menos em alguns casos, quem acabou por conseguir “maximizar” o valor desses ativos foi quem os comprou, a desconto, ao Novo Banco, diz o Tribunal de Contas. “Nas revendas realizadas, os compradores do património imobiliário, incluído em duas carteiras, obtiveram mais-valias iguais ou superiores a 60%“, exemplifica o organismo liderado por José Tavares.

Imóveis revendidos “no dia seguinte” deram mais-valias milionárias

Para sustentar esta análise, o Tribunal de Contas analisou a venda de duas das carteiras mais importantes do Novo Banco – o projeto Viriato, adquirido pelo fundo Anchorage em 2018, e a carteira Sertorius, que foi comprada pelo fundo Cerberus em 2019. Com base em dados fornecidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), o Tribunal de Contas analisou a venda de alguns imóveis em cada uma dessas carteiras e apontou para mais-valias de 64% e 60%, respetivamente.

Oito dos imóveis do projeto Viriato foram, aliás, “revendidos no dia seguinte ao da sua aquisição“, segundo o Tribunal de Contas – sublinhe-se, porém, que por vezes os investidores conseguem acordo para a compra dos ativos e só alguns meses depois é que se dá o chamado closing, que é o momento em que o ativo muda de mãos, efetivamente, embora o novo dono já tenha garantias de que vai passar a ser seu algum tempo antes (dois ou três meses, por regra).

Cinco desses oito imóveis foram vendidos com uma mais-valia média de 212% (ganhou-se quase 843 mil euros) e os restantes três foram vendidos com menos-valia média de 192% (perdeu-se 265,5 mil euros). Um ano após a venda por parte do Novo Banco, 1.058 imóveis foram vendidos – o que produziu uma mais-valia de 39 milhões de euros, que beneficiou o investidor.

No que diz respeito à carteira Sertorius, a amostra do Tribunal de Contas foi um conjunto de cinco imóveis que foram revendidos menos de um mês depois da compra. Três deles ofereceram uma mais-valia média de 279%, o que significa quase 539 mil euros – e dois foram vendidos com menos-valia mas de apenas 482 euros (3%, em média).

Até que ponto o Novo Banco poderia ter beneficiado destas mesmas mais-valias? “Considerando os custos anuais com a manutenção do património imobiliário no balanço do NB – 17,5 milhões de euros (Viriato) e 4,5 milhões de euros (Sertorius) – o NB teria ganho, um ano após a operação de venda, 29 milhões de euros, com processos de venda granular“, estima o Tribunal de Contas.

Novo Banco diz que análise da auditoria “distorce os factos”

O Novo Banco critica a análise feita pelo Tribunal de Contas, sobre estas transações de revenda, lembrando que uma das carteiras tinha cerca de 8 mil imóveis que, segundo fonte oficial, “o Novo Banco teve que vender em 2018”. Segundo declarações enviadas ao Observador, a auditoria inclui “valores e tempos de mais-valias que distorcem os fatos”.

Em primeiro lugar, a gestão de António Ramalho alerta que os imóveis foram revendidos pouco tempo depois do closing da operação mas que esse momento dista “mais de 3 meses” do momento em que a transação (entre o Novo Banco e o investidor) ficou acordada. “São este usos de mercado que a auditoria esqueceu”.

O principal ponto da argumentação do Novo Banco, porém, é que “os valores obtidos de mais valias sobre as compras do portfolio Viriato não podem ser vistos caso a caso (a própria auditoria refere menos valias imediatas) mas apenas em bloco“. “Ora, os números avançados são apenas para os primeiros 33% da carteira que geralmente pela prática de mercado são os imóveis mais valorizáveis. Para o fim ficam, geralmente, os imóveis menos ‘comercializáveis'”, afirma o Novo Banco.

“Assim, o montante de 60% é intencionalmente enganador. Todo o mercado o compreende”, alega fonte oficial, acrescentando que “o Tribunal de Contas e as autoridades fiscais poderão, daqui a alguns anos, dar-nos o numero final obtido, esperemos para o comprador que positivo”.

Finalmente, “o Novo Banco vem recordar que todos estes imóveis foram oferecidos ao exercício de direito de preferência das respetivas autarquias e só depois colocados em venda por bloco”.

O presidente do Conselho de Administração do Novo Banco, António Ramalho, fala perante a Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução, na Assembleia da República em Lisboa, 19 de maio de 2021. TIAGO PETINGA/LUSA

“Riscos de conflito de interesses e potenciais impedimentos”

O Tribunal de Contas critica abertamente as vendas de ativos feitas pelo Novo Banco, de um modo geral, deixando implícito que as mais-valias obtidas por terceiros poderiam ter sido garantidas pelo próprio Novo Banco – o que limitaria a necessidade de injeções de capital público.

Mas o Tribunal de Contas diz ainda mais: em algumas operações do Novo Banco “identificaram-se riscos de conflito de interesses e potenciais impedimentos” e, por outro lado, “detetaram-se práticas que, sendo evitáveis pela gestão do NB, oneraram o financiamento público”. O tribunal de fiscalização diz ainda que o Novo Banco não cuidou de implementar mecanismos suficientes para identificar os beneficiários efetivos últimos dos compradores de carteiras.

Não tendo implementado critérios mais rigorosos de controlo dos beneficiários efetivos que os legais, mantém-se o risco de o NB estabelecer essas relações com organismos de investimento coletivo ou entidades societárias, cujos detentores do capital sejam também detentores, diretos ou indiretos, do capital de entidades do grupo Lone Star, apesar do apoio público e do dever de transparência a que, enquanto beneficiário desse apoio, está obrigado”.

Na opinião do Tribunal de Contas, a forma como o Novo Banco recorreu ao mecanismo de capital de contingente, para ser ressarcido das perdas que ia acumulando, “revela a incapacidade” da gestão de António Ramalho em “gerar, com a sua atividade, níveis de capital adequados adequados à cobertura dos seus riscos”. Porém, o tribunal deixa em aberto: não se fez mais para evitar onerar o contribuinte por uma questão “incapacidade” ou, então, por “não ter o propósito”.

“Em suma, a gestão do NB com financiamento público não salvaguardou o interesse público, por não ter sido otimizado (minimizado) o recurso a esse financiamento”, conclui o Tribunal de Contas.

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Injeções no Novo Banco podem não ter terminado

Outra preocupação do Tribunal de Contas é que, apesar de a reestruturação do banco ter terminado, informalmente, no final de 2021, “subsiste o risco do período de reestruturação se prolongar para além da data prevista, pois o NB não atingiu os níveis de rendibilidade  estabelecidos para o efeito”. Por outro lado, a Comissão Europeia “ainda não se pronunciou sobre o fim desse período” de reestruturação.

Isto significa, por inerência, que “também subsiste o risco de acionamento do mecanismo de capital adicional (capital backstop), até 1,6 mil milhões de euros, previsto nos compromissos assumidos pelo Estado Português para assegurar a viabilidade” da instituição.

E qual é o risco de esse backstop ser usado? O Tribunal de Contas não diz, mas salienta que esses são riscos “que os impactos adversos da pandemia e do conflito militar na Ucrânia tendem a agravar“.

Fundo de Resolução descurou função

O Fundo de Resolução não passou sem críticas do Tribunal de Contas já que, segundo a auditoria, “descurou a função de minimizar o recurso ao mecanismo de capitalização”, com a agravante de “ter pago ao Novo Banco montantes sem demonstração apropriada”. Segundo o Tribunal de Contas não foram encontradas evidências de o Fundo de Resolução ter analisado as contas do NB diretamente ou através de contabilista independente, tendo recorrido ao auditor externo do banco. Isto apesar de ter acesso a informação que lhe “permitia o controlo sistemático e independente das contas do NB”.

O Fundo de Resolução podia ter usado mecanismos específicos de controlo das decisões de gestão do Novo Banco em matéria de perdas prudenciais, mas acabou por fazê-lo apenas na aplicação do IFRS 9 e nas alterações de justo valor ocorridas em 2020.

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O Tribunal de Contas é também claro ao dizer que as análises realizadas pelo Fundo de Resolução e pela comissão de acompanhamento ao capital contingente “colocam em causa a estratégia de venda em carteira assegurar a minimização das perdas e afastar o risco moral”. Os processos de venda dessas carteiras “revelam fragilidades que concorrem para a apresentação de preços pouco competitivos e para as perdas registadas e imputadas ao Fundo de Resolução”. O Tribunal de Contas destaca algumas dessas fragilidades: não serem processos abertos a todos os potenciais interessados, mas apenas aos convidados, sem divulgação pública dessa abertura; assessores do NB para a organização das carteiras terem sido contratados por concorrentes ou compradores dos ativos; e de não serem comunicadas aos investidores convidados todas as condições que podem influenciar a apresentação das propostas.

Venda da GNB Vida motiva muitas dúvidas

A GNB foi vendida por 123 milhões de euros, 27% do valor do ativo incluído no mecanismo de capital contingente, tendo-se argumentado pela urgência da venda com os prazos dados por Bruxelas mas também pela degradação económica-financeira da seguradora. No entanto, o Tribunal de Contas alerta que “durante o período anterior à venda, e não obstante o financiamento público do NB, nenhuma das entidades intervenientes no processo – Governo, Banco de Portugal, Fundo de Resolução e gestores – implementaram medidas que evitassem ou limitassem a perde de valor da GNB Vida e o seu impacto nas contas do NB”. Isto também aconteceu na preparação e na conclusão da venda.

Por tudo isto, o Tribunal de Contas conclui que a perda de valor da GNB Vida resultou “de atos e omissões das entidades responsáveis pela definição estratégica da seguradora e pela realização do processo de venda, designadamente da da indefinição quanto ao futuro da seguradora, de falhas de mercado não minimizados e da negociação de um mecanismo de ajustamento do preço que, num primeiro momento, conduziu à redução de preço”. Sem que o Fundo de Resolução tenha promovido “a identificação dos responsáveis pelos atos e omissões nem a comunicação periódica do ciclo de responsabilização com as ações desencadeadas para recuperar as perdas e os resultados obtidos”.

Há, também por isso, ainda riscos “de as perdas decorrentes da venda da GNB Vida aumentarem com novas exposições incluídas no mecanismo de capital contingente”.

O Tribunal de Contas alerta várias vezes para o facto de a repercussão do GNB Vida ainda poder não ter terminado e haver novos ativos no mecanismo decorrentes da seguradora:

  • Anulação até à conclusão da venda das participações da seguradora nos fundos imobiliários que se concretizou através do pagamento de 278 milhões à GNB Vida em agosto de 2019;
  • Financiamento do NB ao comprador de 50% do preço de transação, 61,5 milhões;
  • Pagamento de uma comissão anual (1,5%) pelo comprador para o NB manter um depósito numa instituição financeira internacional em benefício da NewRe, como garantia do cumprimento das responsabilidades assumidas pela BES Vida em caso de rescisão antecipada de um contrato de resseguro;
  • A responsabilidade contingente do NB financiar o comprador caso a seguradora tenha de comprar à NewsRe a carteira ressegurada por esta não aceitar a nova estrutura acionista ou por incumprimento imputável ao NB.

O Tribunal de Contas releva ainda o facto de o Fundo de Resolução não estar a controlar “os pressupostos do pagamento da componente variável do preço de venda da GNB, indexado ao desempenho na distribuição de seguros pelo comprador” que não se estará a realizar (podia chegar aos 125 milhões).

Já tinha sido também um fator salientando pela Deloitte e agora o Tribunal de Contas expressa a mesma opinião: não há explicações sobre a determinação do valor final que ficou nos 123 milhões (depois de ter começado nos 190 milhões e reduzido para 81 milhões, para subir no final para 123 milhões).

Já sem poderes estava o Fundo de Resolução no que respeita à decisão do Novo Banco de vender a sucursal espanhola. Em 2020, o banco passou a atividade em Espanha para operações descontinuadas com o objetivo de as vender, o que, segundo o Tribunal de Contas, “não só constituiu uma decisão gestionária e discricionária dos órgãos de administração do NB, sobre a qual não relevavam os poderes do FdR quanto ao desreconhecimento dos ativos do mecanismo de capital contingente dessa sucursal, como contrariou o compromisso assumido pelo Estado perante a Comissão Europeia, no âmbito do processo de venda do NB e da aprovação dos auxílios de Estado, de preservar aquela atividade durante todo o período de reestruturação, ou seja, pelo menos até ao final de 2021”.

A alteração não estava prevista e implicou uma provisão de 166 milhões de euros nas contas do NB e mais 147 milhões pedidos ao abrigo do mecanismo.