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Brock Pierce fotografado pelo Observador no interior do Paquete Funchal ao lado de um monte de antigas televisões usadas por aquele navio.
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Brock Pierce fotografado pelo Observador no interior do Paquete Funchal ao lado de um monte de antigas televisões usadas por aquele navio.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Brock Pierce fotografado pelo Observador no interior do Paquete Funchal ao lado de um monte de antigas televisões usadas por aquele navio.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ator, milionário, rei das criptomoedas, candidato a Presidente dos EUA: as muitas vidas do novo dono "hippie" do Paquete Funchal

Foi ator na adolescência, construiu um império nos videojogos, reforçou-o com as criptomoedas e já se candidatou a Presidente dos EUA. Agora comprou o Paquete Funchal: "Assim que começo, nunca paro".

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Brock Jeffrey Pierce não é um homem convencional e de ser um empresário cinzentão ninguém o pode acusar. Ao norte-americano que acaba de fazer o seu primeiro grande investimento em Portugal — é o principal investidor da compra para recuperação (e requalificação) do histórico navio português Paquete Funchal —, aliás, já chamaram muita coisa: hippie, rei das criptomoedas, visionário, louco, idealista, oportunista, filantropo, mágico, altruísta, ambicioso, ator, empresário, político. Convencional, nunca.

Não é preciso estar muito tempo na sua presença para ficar com a impressão de que Brock Pierce não é exatamente um empresário ou um milionário comum. No dia em que convocou jornalistas portugueses para uma visita guiada ao histórico navio da marinha mercante portuguesa que planeia transformar num hotel flutuante de cinco estrelas em Lisboa, com zona de piscina e discoteca (entre outras funcionalidades) que não serão exclusivas aos hóspedes, Brock Pierce assemelhava-se quase a uma personagem de um western moderno.

À distância, dificilmente alguém apostaria que aquele homem de cavanhaque, ténis, calças de ganga, camisa, chapéu de cowboy e um blazer com um pin a fazer referência a Porto Rico era, no dia em que esteve em Lisboa, provavelmente um dos homens mais ricos a pisar naquele momento solo português.

Se escrevemos ‘provavelmente’ é porque Brock Pierce recusa-se a dizer quanto dinheiro tem. Quando o Observador o questionou, respondeu assim: “Isso nunca diria. Essa é uma área a que jamais responderia”. Insistíamos: há pouco mais de três anos, a revista Forbes calculava que tivesse uma fortuna avaliada em mil milhões de euros, considerando-o a nona pessoa mais rica do mundo no negócio das criptomoedas. Tem agora mais, menos ou mais ou menos o mesmo? Fechado em copas, Pierce retorquia apenas, fazendo questão de reforçar a imagem de filantropo benemérito e desapegado ao dinheiro que tem vindo a construir de si mesmo: “Meço o sucesso não pelo que tenho mas pelo que dou. E ainda tenho muito mais para dar”.

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Brock Pierce em visita ao Paquete Funchal

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A vida de Brock Pierce, 40 anos, dava um filme, um blockbuster de Hollywood com o sonho americano em pano de fundo e com o mito do self-made man da América a triunfar para fazer o bem. Seria um filme com conquistas, dinheiro — muito —, algumas ligações delicadas, suor e até lágrimas.

Mais ou menos a meio da entrevista com o Observador, Brock Pierce era confrontado com um extenso perfil que sobre ele foi publicado na Rolling Stone, em que o autor assegurava: “Durante quase dez dias juntos, raramente o vi a dormir numa cama ou a comer uma refeição inteira — ele aterrava em sofás aleatórios, em bancos traseiros de carros, em mesas de bares”.

Intrigados pelo aparente desapego ao conforto e ao luxo de um homem com uma fortuna incalculável, perguntávamos-lhe se as suas rotinas tinham mudado desde que em 2020 se candidatara como independente às eleições presidenciais norte-americanas, gastando — segundo afiança — seis milhões de dólares para perceber as mecânicas e os modos de funcionamento do sistema político da democracia dos EUA.

É na resposta a esta questão, aparentemente leve, que Brock Jeffrey Pierce se revela um homem peculiar, com reações inesperadas, um homem digno de uma personagem romanesca de ficção, imprevisível e desconcertante — e detentor de uma personalidade com uma capacidade invulgar para alternar de um estado de espírito descontraído para um outro bem mais dramático em poucos segundos.

Pierce começa por se rir, notando que algumas coisas mudaram: a indumentária desportiva e as t-shirts, por exemplo, já ficam mais vezes arrumadas nas prateleiras. Subitamente o semblante muda, pergunta “dormir?”, faz uma pausa e no rosto nota-se já a emoção. Arranca outra vez: “[Dormir?] Nunca o suficiente. Quer dizer, o suficiente mas não tanto quanto gostaria. Mas quando olho para o mundo à minha volta…”. Nova pausa e desta vez rolam-lhe já lágrimas pela cara: “Preocupo-me tanto que é difícil dormir. Há trabalho por fazer. E não me importa verdadeiramente o que ganho com isso”.

Nova pausa, Brock recompõe-se — mas está ainda com um semblante pesaroso, de homem que carrega nas costas o peso do mundo: “Portanto, durmo onde posso e onde devo”. O rosto alivia-se agora e Pierce quebra o gelo com uma piada: “Mas nunca em bares [riso] e nunca em mesas. Isso só aconteceu um par de vezes na minha vida e porventura por pura exaustão, acontece. Mas o Neil Strauss, esse escritor [do perfil publicado na revista Rolling Stone], esse grande autor que escreveu os livros “The Game” e “The Truth”, é um homem fantástico e foi um prazer passar 10 dias com ele e permitir-lhe observar de forma completa e transparente tudo o que faço e a forma como o faço. Foi uma bênção, sou um grande fã dele”.

Esta é a história de um multimilionário que acaba de chegar a Portugal para o seu primeiro grande investimento, que teve Steve Bannon a trabalhar para si muito antes de este se tornar um estratega da nova direita americana (a de Trump), que fez fortuna com videojogos e criptomoedas, que suspeita que a Internet vai desaparecer e que é, como sobre ele já se escreveu, praticamente um líder mundial de um culto.

Eis Brock Pierce, um homem de duas caras: por um lado, milionário de tremendo sucesso, por outro alguém com um percurso ascendente que não esteve isento de espinhos (ou processos judiciais), um homem desconcertante, idealista no discurso, crente num novo mundo que a tecnologia trará, que viaja num jato privado (porque pode e porque lhe poupa tempo) mas que diz que dorme onde tiver de dormir e que gosta tanto de se embrenhar na espiritualidade indígena que simpatiza com produtos alicinogéneos da Amazónia.

Uma adolescência como ator: “Aos 13 anos era eu que pagava as contas”

Antes de ser um empresário, antes de se tornar um dos magnatas do mundo das criptomoedas que faz agora um primeiro grande investimento em Portugal (pode não ser o único, mas nada mais se sabe ainda), Brock Pierce foi uma estrela em ascensão dos estúdios da Disney — e estava encaminhado para se tornar um ator de renome quando decidiu largar tudo e abandonar a profissão com o sonho de se tornar um empreendedor na área da tecnologia.

Quando escrevemos que Brock Pierce deixou a profissão de ator, há que notar que era um adolescente quando o fez — mas, segundo ele, a representação era já um trabalho a tempo inteiro.

O primeiro papel desempenhou-o com apenas três ou quatro anos de idade: “Esqueci-me para que canal é que foi. Talvez o KCRW, mas posso estar enganado. Era um anúncio publicitário com um apelo: não deixem os vossos bebés crescerem e tornarem-se cowboys”, ri-se Brock Pierce em 2021, consciente da ironia de o estar a dizer de cavanhaque e com um chapéu à John Wayne na cabeça.

É o principal investidor da compra para recuperação (e requalificação) do histórico navio português Paquete Funchal

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Brock Pierce cresceu no Minnesota. O pai era construtor de casas e a mãe dançava profissionalmente em discotecas até ter engravidado de Brock aos 20 anos, segundo relatou Neil Strauss no perfil publicado na Rolling Stone. A família não era endinheirada, diz o norte-americano ao Observador: “Do lado do meu pai houve bastante dinheiro durante algumas gerações, mas no meu lado da família não. Cresci como um miúdo de classe média-baixa. Tínhamos uma casa muito modesta, com um quintal, mas não vim de uma família com muito dinheiro”.

Quando tinha 13 anos, Brock Pierce já era o principal sustento da família. “Era eu que pagava todas as contas, com o meu trabalho de ator”, conta, acrescentando: “Ia para os castings a pensar: tenho de pagar a renda. Não cresci em berço de ouro, trabalhei para ter tudo o que tenho, mas tenho tido alguma sorte”.

Em 1992, quando Brock Pierce tinha 12 anos (nasceu em 1980), o filme “A Hora dos Campeões” chegou às salas de cinema dos Estados Unidos da América. Dois anos depois, quando tinha 14 anos, Brock apareceu na sequela: “A Hora dos Campeões 2”. Mas foi com “Guarda-Costas, Ama-Seca”, de 1996, que Pierce teve o seu grande papel de protagonista num filme que fez mais de 26 milhões de dólares em receitas de bilheteira só nos Estados Unidos.

[O trailer de “Guarda-Costas, Ama-Seca” (título original: ‘First Kid’):]

Por esta altura, Brock Pierce estava lançado como ator aos 16 anos. Porventura inesperadamente, foi em fase de plena afirmação que deixou a representação. “Antes disso, já tinha lidado com uma boa dose de rejeição — o que não é muito fácil para um miúdo tão novo. Ir a castings, fazer o meu melhor e ouvir ‘não’, ‘não’, ‘não’, não’… o falhanço constante é, numa fase inicial, algo difícil de lidar. Depois não, torna-se uma dádiva porque aprendes a acreditar em ti independentemente do que todas as outras pessoas disserem”, conta.

Brock descreve os tempos de jovem ator como “uma espada de dois gumes”, algo por um lado “bom” e por outro “desafiante”. Um dos aspetos que menos gostou foi o facto de “não estar perto de outros miúdos durante períodos de tempo longos”.  Muitas vezes nas rodagens não via “outras crianças” e tinha de “conviver e andar com adultos a toda a hora” mas Pierce procura sempre ver as duas faces da moeda: “Numa fase inicial é algo duro. Mas também se torna interessante por te fazer crescer rapidamente. Tinha de arranjar maneiras de interagir com adultos que, por comparação comigo, tinham uma idade e experiências de vida tremendamente diferentes: jogava às cartas, fazia truques de magia e outras coisas para passar o tempo. Como é que um miúdo de 13 anos interage com pessoas de 30, 40 e 50 anos?”

"Não gostava daquela atenção toda, de estar sempre a ser filmado, de toda a gente estar a observar atentamente o que fazia. Era um miúdo e os miúdos cometem erros… Gostava muito de tecnologia e via já como a tecnologia ia mudar o mundo antigo. E pensei: quero ser um empreendedor, quero construir o futuro, quero ser um pioneiro do futuro."

Quando o filme mais importante que fez — e aquele em que foi protagonista — chegou aos cinemas, Brock Pierce já tinha decidido desistir. “Decidi que aquele não era o meu chamamento”, conta. “Não tinha escolhido ser ator, simplesmente era-o desde que me lembrava. Mas ser famoso e aparecer em filmes não eram coisas que apreciasse especialmente. Não gostava daquela atenção toda, de estar sempre a ser filmado, de toda a gente estar a observar atentamente o que fazia. Era um miúdo e os miúdos cometem erros… sei que não queria ser famoso e lembro-me de me colocar a mim mesmo questões existenciais: quem sou e porque estou aqui? Há pessoas que fazem essas perguntas a si próprias mais tarde”.

Livre dos filmes e dos anúncios publicitários, Brock Pierce voltou ao liceu mas começou a pensar no que queria fazer futuramente. A tecnologia impôs-se como “A” grande ambição, recorda: “Gostava muito de tecnologia e via já como a tecnologia ia mudar o mundo. E pensei: quero ser um empreendedor, quero construir o futuro, quero ser um pioneiro do futuro”.

Um processo judicial delicado: “Ensinou-me a não julgar ninguém levianamente”

A entrada no setor do empreendedorismo tecnológico deu-se através da Digital Entertainment Network (DEN), uma empresa orientada para a criação de conteúdos audiovisuais online para jovens. Como relatava em 2018 a Rolling Stone, a empresa teve na sua base um homem chamado Collins-Rector, bem mais velho do que Brock Pierce — que teve a garantia de que se tornaria, no entanto, um dos fundadores e o vice-presidente da DEN, além de acionista minoritário (com 5% das ações) e funcionário com um salário de 250 mil dólares por ano.

A história foi complexa mas o que se passou de seguida pode ser resumido assim: Collins-Rector começou a ser acusado por rapazes menores de idade de abusos sexuais, abandonou a empresa e Brock Pierce seguiu-o, chegando, segundo contou, a estourar 16 milhões de dólares da fortuna do primeiro num só ano, enquanto viajavam pela Europa. De repente, um novo processo dava entrada com queixas sérias de três atores que teriam trabalhado para a empresa, um deles (Michael Egan) menor de idade, que desta vez o implicava e imputava a Collins-Rector ameaças para que os queixosos permanecessem calados e não denunciassem os crimes e abusos a quem teriam sido sujeitos.

A história tinha algumas pontas soltas, de acordo com a Rolling Stone: a versão de Brock Pierce, sustentada por algumas testemunhas, era de que nunca participara nem estivera a par do que Collins-Rector fazia. Collins-Rector chegou a ser preso e confessou-se culpado dos crimes, mas Brock Pierce nunca foi acusado ou condenado e todas as queixas viriam a ser retiradas pelos denunciantes. Uma das testemunhas, Christopher Turcotte, um rapaz de 15 anos que frequentava a casa de Collins-Rector, chegou a corroborar a versão de Brock Pierce, dizendo que também ele fora desafiado — tal como Brock garante ter sido — a mentir relatando que fora vítima de Collins-Rector, de modo a facilitar a condenação do antigo mentor da DEN. Pierce acrescentaria que foi depois de ter recusado acusar Collins-Reactor que foi implicado no processo.

"Era um rapaz de 17, 18 anos. E ninguém se preocupou sequer em ler os dados da investigação: viram um título, pegaram num par de palavras ditas por uma pessoa e acusaram-me. Tudo aquilo acabou por se revelar não sustentado, foi totalmente desacreditado. Mas ensinou-me muito e provavelmente moldou-me."

Hoje, Brock Pierce insiste: não só não cometeu qualquer crime como nunca esteve a par dos abusos sexuais de Collins-Reactor. “Era um rapaz de 17, 18 anos. E ninguém se preocupou sequer em ler os dados da investigação: viram um título, pegaram num par de palavras ditas por uma pessoa e acusaram-me. Tudo aquilo acabou por se revelar não ser sustentado, foi totalmente desacreditado, mas isso não mudou a perceção de alguns: tinha de continuar a viver com aquilo”, diz hoje o empresário norte-americano ao Observador.

Todas aquelas queixas que acabariam retiradas tornaram a vida de Brock Pierce “quase impossível”, aponta ainda. “Mas ensinou-me muito e provavelmente moldou-me, tornando-me a pessoa que sou hoje. Essa experiência ensinou-me a não julgar ninguém levianamente, sem ter dados para isso. Ensinou-me a pensar por mim mesmo, a não confiar em tudo o que se diz e a confiar no meu instinto. Ensinou-me a dar segundas oportunidades às pessoas [que, garante, o acusaram do que não fez], ensinou-me o conceito de redenção”.

Um império a construir-se: primeiro os videojogos, depois as criptomoedas

Nos negócios, o império foi depois começando a crescer: primeiro nos videojogos, depois nas criptomoedas. Nos videojogos, Brock Pierce começou por construir a fortuna investindo num modelo de negócio que passava por trocar moedas virtuais e objetivos que se atingiam em videojogos por dinheiro real de outros jogadores. A dada altura, como descrevia em 2018 a Rolling Stone, o filantropo e empresário terá chegado a ter 400 mil pessoas a jogar para si, atingindo níveis e objetivos que depois eram vendidos a quem estava disposto a gastar dinheiro em truques, dicas e níveis alcançados.

Quando o mercado das criptomoedas e do dinheiro virtual apareceu, uma área de negócio em que entrar cedo com investimentos significativos significaria grandes lucros (gerados pela valorização das bitcoins nos anos seguintes), Brock Pierce não demorou muito a atirar-se de cabeça. Se as bitcoins foram usadas pela primeira vez em janeiro de 2009 — criadas por um misterioso Satoshi Nakamoto, que é na verdade um pseudónimo de alguém de identidade desconhecida —, Brock começou a ouvir falar deste mercado em 2010. E não demorou muitos anos a entrar a pés juntos nesse mundo.

De então para cá, Brock Pierce criou uma fortuna milionária na área das criptomoedas: fundou por exemplo a gigante IMI Exchange — um ponto de vendas de videojogos comprados com dinheiro virtual que tem vendas anuais superiores a mil milhões de dólares — ou a IGE, também na área dos jogos comprados com recurso a criptomoedas. Ao todo, Brock garante já ter criado, fundado e servido de conselheiro a cerca de 200 empresas. E os relatos apontam para que tenha ajudado a angariar mais de cinco mil milhões de dólares naquelas com as quais colaborou.

Brock Pierce fotografado pelo Observador no interior do Paquete Funchal ao lado de um monte de antigas televisões usadas por aquele navio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O contributo que tem tido nas empresas com as quais tem colaborado “varia dependendo da estrutura organizacional” dos projetos, aponta Brock Pierce ao Observador. Mas todos os relatos apontam para que seja especialmente útil numa fase inicial das empresas, em que é preciso assumir riscos, e ele próprio não desmente: “Normalmente faço o papel de investidor e assumo todos os riscos numa fase inicial. Às vezes garanto capital, às vezes aconselho e às vezes crio projetos e construo equipas, juntando as pessoas certas para os projetos. Sou persistente, tenho visão e faço coisas que ninguém vê. Tenho feito isso toda a vida. Sou capaz de ver os diamantes em bruto, as oportunidades de futuro. Tenho tido a felicidade de muitos dos meus sonhos terem-se tornado realidade e acho que o mundo é um lugar melhor por causa disso.

Mais ainda do que nas criptomoedas, Brock Pierce é um crente no potencial da tecnologia que lhe serve de base e que permite efetuar não só essas como muitas outras transações virtuais sem intermediário: a chamada blockchain. Trata-se de uma espécie de protocolo, ou estrutura de dados, já descrita como “a Internet do dinheiro”, que permite que as pessoas troquem ativos digitais (como criptomoedas, mas também muitos outros itens, dados e informações) sem interferência de um banco, um governo ou uma empresa de crédito. A tecnologia é, aparentemente, segura, difícil de manipular ou alterar e transparente, prevenindo a fraude.

Blockchain. Esta máquina do dinheiro vai ser maior do que a Internet?

Como muitos dos principais crentes nesta tecnologia, que acreditam que até pode substituir a internet e mudar o mundo, Brock Pierce é quase um evangelizador pregando os seus benefícios (e ignorando os riscos). E vinca: “Quais são os seus princípios? Os seus principais são transparência, responsabilidade, prestação de contas. Estas são coisas boas, coisas que de um modo geral estão a faltar no mundo. E se conseguirmos trazer estas ideias para o mundo de modo a serem devidamente implementadas, vão beneficiar toda a gente no planeta. Sou um crente — mas sou também um fazedor”.

Steve Bannon e uma candidatura à presidência dos Estados Unidos

Na sua ascensão empresarial e económica, Brock Pierce teve um aliado polémico: Steve Bannon. Antes de se tornar um ideológo e estratega político aliado de Donald Trump, envolvido na criação e crescimento do site Breitbart News — que ajudou à afirmação da chamada alt-right — e empenhado em internacionalizar e globalizar técnicas de afirmação de movimentos políticos populistas, Bannon trabalhou na banca de investimento, nomeadamente na Goldman Sachs.

“O Steve Bannon trabalhou para mim durante sete anos, quando estava nos meus 20”, confirma Brock Pierce ao Observador, lembrando que “ele tinha uma carreira muito bem sucedida na banca e nos negócios” e que “não estava na política na altura, isto foi há muito tempo”.

Bannon trabalhou para Pierce ajudando-o nos processos de financiamento e aquisição de empresas — e os dois tiveram, inclusivamente, uma boa relação. “Ver alguém como o Trump tornar-se Presidente e ver como o Steve Bannon, o tipo que costumava trabalhar para mim, chegou ao sítio a que chegou permitiu-me ver que tudo é possível. Diria que isso é uma coisa muito positiva. Se partilho das suas visões políticas? Não”, começa por dizer, acrescentando: “Mas interessa-me sempre compreender as perspetivas de toda a gente, perceber a direita e a esquerda. E mais importante: sou um homem que está no meio. Acredito no que está em frente”.

“Candidatar-se à presidência dos Estados Unidos é convidar a que tudo o que se fez na vida seja escrutinado. Pode-se perder a vida, a fortuna, a reputação, a liberdade. Não é uma brincadeira. Há um motivo pelo qual só muito poucas pessoas estão dispostas a fazê-lo: é porque muitas têm muito a esconder”

Apesar de tudo isto, Brock Pierce entrou na política — e em 2020 decidiu candidatar-se como independente à presidência dos Estados Unidos da América. Perguntamos-lhe porque gastou seis milhões de dólares numa corrida que sabia não ter grandes hipóteses de vencer e ele responde: “Estava a pagar para aprender. Tratou-se de formação, para compreender as mecânicas do sistema, da governação e dos governos, de como isso funciona. Vivo a minha vida para servir e o serviço público é um grande privilégio, é uma honra não se servir a si mesmo mas servir toda a gente. E queria saber como funciona. Como se aprende verdadeiramente algo assim? Só há uma maneira: fazer isso e aprender rápido”.

Candidatar-se ao “cargo mais alto” dos EUA — e a uma das posições mais relevantes do mundo — “requer muita coragem, não é algo isento de riscos”, aponta Brock Pierce. Em que medida? “Candidatar-se a esse cargo é convidar a que tudo o que se fez na vida seja escrutinado. Pode-se perder a vida, a fortuna, a reputação, a liberdade. Não é uma brincadeira. Há um motivo pelo qual só muito poucas pessoas estão dispostas a fazê-lo: é porque muitas têm muito a esconder”, insinua. Talvez os milhões de dólares necessários sejam outro fator que retraia possíveis candidatos.

O compromisso com a solidariedade social: “Quero deixar o mundo melhor do que o encontrei”

Brock Pierce não é o único empresário ou milionário que garante estar comprometido com a noção de “responsabilidade social”, mas este não é um detalhe da sua biografia: Brock garante que contribuir para o mundo é uma missão de vida. Quando lhe perguntávamos se se revia na palavra “hippie” como um adjetivo que o representasse, respondia: “Não é uma palavra que usaria mas presumo que seja uma palavra que a maior parte das pessoas percebe. Tento deixar o mundo melhor do que o encontrei e tento respeitar o mundo em meu redor: o ar, a água e a terra, as pessoas, os animais e a vida em si mesmo”.

Essa vertente social, e um já referido aparente desapego ao conforto e ao luxo — ou pelo menos um certo desconforto que revela insistentemente perante a ideia de levar uma vida faustosa e individualista, alienada da comunidade e dos problemas do mundo —, não é o único motivo que faz com que seja descrito como hippie. “Tenho cabelo comprido, uso uma série de pulseiras…”, ria-se. Isto para não falar do seu interesse pela música e pelas artes e do pouco formalismo no vestuário.

No final da conversa, enquanto caminhávamos pelo Paquete Funchal, sugeríamos-lhe que talvez o epíteto também se devesse aos relatos difundidos nos media sobre apreciar o consumo do pó alucinogénio Rapé e do também alucinogénio sul-americano San Pedro. Brock Pierce anuía, explicando que se interessa muito pelas comunidades indígenas, pela Amazónia e pela espiritualidade.

De cavanhaque, ténis, calças de ganga, camisa, chapéu de cowboy e um blazer com um pin a fazer referência a Porto Rico era provavelmente um dos homens mais ricos a pisar naquele momento solo português

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Antes disso, Brock Pierce relatava como é tipicamente o seu dia-a-dia e dava um exemplo que reforçava esse apreço pela solidariedade e pelo bem comum que garante ser um traço da sua personalidade. Começando por dizer que a sua rotina recente passa por “acordar cedo, correr para o aeroporto ou ver notícias, acordar às 3h porque o mundo nunca pára, desejavelmente ver o sol nascer, agradecer a Deus por me acordar mais uma vez e dar-me outra oportunidade para servir, ter reuniões, chamadas, entrevistas e andar de país em país e de cidade em cidade a falar com legisladores, civis que servem os outros, chefes de Estado, líderes mundiais, pessoas comuns e artistas na rua”, Pierce dava o exemplo. No dia anterior à conversa, na última quinta-feira, encontrara “um artista de rua de 57 anos” e comprara “toda a sua arte”. O motivo: “Era o aniversário dele e assim podia celebrar”.

É também por esse compromisso para servir o mundo que Brock Pierce garante ter estreitado a sua relação com Porto Rico nos últimos anos, “a parte dos Estados Unidos que se tem debatido com problemas há mais tempo e possivelmente mais do que qualquer outra”. Assim, “pareceu-me um bom sítio para começar, um sítio que a maioria das pessoas esqueceu ou nem sequer sabe que faz parte dos Estados Unidos, um bom sítio para ir e contribuir de alguma forma”.

Em Porto Rico, o trabalho de Brock Pierce tem passado por “tentar investir em empreendedorismo e solidariedade”, garante o próprio. “Já apoiámos mais de 200 causas solidárias em Porto Rico. Ainda recentemente fizemos doações para enviar a equipa de vela de Porto Rico para os Jogos Olímpicos, doámos um milhão de máscaras no início da Covid-19, demos apoio económico porque o dinheiro do Banco Alimentar de Porto Rico não estava a chegar às mãos das pessoas e existia fome… tudo o que se puder imaginar. Também apoiámos na preservação de edifícios históricos, como portos, e investimos no desenvolvimento”.

A dedicação à missão de serviço social é tanta que Brock Pierce garante que deixará em Porto Rico todo o dinheiro que ali obtiver com os seus investimentos: “O meu compromisso com Porto Rico e o povo porto-riquenho é que em tudo o que fizer não irei tirar um cêntimo de Porto Rico. Cada dólar será reinvestido ali ou será doado para organizações de solidariedade. Não sairei daquela ilha com um cêntimo ali angariado, não sairei com nada que não as experiências que deixarei para trás. É um grande compromisso. Não estou certo que tenha visto alguém fazer um compromisso destes. Isto coloca a fasquia alta, o que faz sentido porque devemos liderar pelo exemplo”.

Para Brock Pierce, críticas como as deixadas recentemente num texto da publicação Vice que acusava os empreendedores em Porto Rico de “cripto-colonialismo” são injustas: “Isto soa-lhe colonialismo? Claro que não são justas mas é compreensível porque muitas pessoas foram para Porto Rico com grandes promessas e não as cumpriram, acabando por explorar as pessoas. Não sei é como é que com este tipo de compromisso que referi e com as ações que ali tenho feito é possível dizer de alguma maneira que isso é correto ou justo. Mas a vida não é justa”.

"Prefiro ver o impacto das minhas ações numa fase inicial da minha vida do que no fim. Aquilo que me apercebi foi que na verdade é difícil doar tudo. No capitalismo há este conceito: retorno de investimento. Quero ver o retorno em impacto, quero ter a certeza que quando estou a criar ou a investir estou a ter um grande impacto. Doo dinheiro todos os dias, a toda a hora. Já apoiei mais de 200 organizações de solidariedade e isso só vai aumentando, aumentando, aumentando."

No já referido perfil publicado em 2018 pela Rolling Stone, o milionário norte-americano fazia uma promessa ousada: prometia que iria doar toda a fortuna que tinha. Três anos e meio depois, Brock Pierce diz que isso é algo que “tem vindo a fazer” paulatinamente “todos os dias”, acrescentando: “Aquilo que me apercebi foi que na verdade é difícil doar tudo. Mas lembre-se que não poderei levar esse dinheiro comigo [quando morrer] e que prefiro ver o impacto das minhas ações numa fase inicial da minha vida do que no fim. Aquilo de que me apercebi é que é algo muito desafiante, porque não o quero esbanjar”.

Parece complicado? Eis uma tentativa de explicação: “No capitalismo há este conceito: retorno de investimento. Quero ver o retorno em impacto, quero ter a certeza que quando estou a criar ou a investir estou a ter um grande impacto. Doo dinheiro todos os dias, a toda a hora. Já apoiei mais de 200 organizações de solidariedade e isso só vai aumentando, aumentando, aumentando. Doar tudo é mais difícil do que pensava mas bom, estou claramente no bom caminho”.

Os planos para o Funchal: “É um projeto de mais de 100 milhões de euros de investimento”

Durante uma visita em que se percorreu o Paquete Funchal, estacionado na Rua da Cintura do Porto de Lisboa e há vários anos abandonado, Brock Pierce ia sorrindo, parecendo quase um miúdo feliz com um brinquedo novo. O objetivo, afiançaria, passa por modernizar e readaptar o navio não o desvirtuando, mantendo o nome e remetendo para a história de um paquete que numa fase inicial serviu sobretudo para ligar Portugal Continental a Açores e Madeira mas que também chegou a servir para viagens de cruzeiro e para deslocações do Presidente Américo Tomás para países como o Brasil.

A visita a Lisboa serviu para apresentar o projeto de requalificação do navio, que os investidores que o compraram em leilão — Brock Pierce é o principal — esperam vir a tornar num hotel flutuante de cinco estrelas. Mas não só: terá restaurantes (não necessariamente de luxo), um casino, uma discoteca, um parque infantil para os pais deixarem os filhos com pessoas “devidamente treinadas”, um “piano bar” a evocar aquele que o Paquete Funchal teve nos seus tempos áureos e uma zona com piscina.

Os hóspedes terão, claro, acesso gratuito aos espaços do Funchal. Mas os investidores asseguram que a ideia é que, cobrando um valor “modesto” à entrada, as pessoas de Lisboa também “possam vir e aproveitar” alguns dos espaços, como a zona de piscina ou a discoteca que, com espaço para 300 pessoas, tentará atrair um público mais velho do que as discotecas habituais de Lisboa, destinando-se a gerações que vão dos 30 aos 70.

[Pode ver de seguida algumas das imagens do projeto de apresentação, que antecipa aquilo que o navio se poderá tornar futuramente:]

17 fotos

O grupo de investidores vai ainda propor nos próximos meses a construção de um complexo com uma marina em Lisboa, para que “os iates e os navios possam ter possibilidade de vir e ficar em Lisboa”. Não será, promete-se, uma marina fechada, antes “de acesso público” em que os locais poderão passear e que poderá atrair a Lisboa milionários e bilionários de todo o mundo.

Se tudo isto soa caro, é porque é mesmo: ao todo, “este é um projeto que deverá implicar mais de 100 milhões de euros de investimento”, revelou Brock Pierce ao Observador. O norte-americano explica que já tivera negócios no setor da “preservação, restauro e requalificação de propriedades históricas” mas que quando soube que o paquete Funchal existia e ia a leilão pensou: “Um barco soa a muito trabalho mas sim, porque não?

Brock Pierce garante ter investido quase dois milhões de dólares (1.9) logo em leilão, sem sequer poder ver o navio presencialmente. “A minha equipa inteira achou que estava louco, praticamente toda a gente me disse para não fazer isto”, ri-se. “Normalmente não faço investimento destes sem ver, é um salto grande de fé. Geralmente não é a melhor forma de se investir. Se tivesse vindo aqui e visto a quantidade de trabalho que isto implicaria provavelmente não teria comprado. Presumo que devo agradecer a Deus por não ter podido ver porque isso permitiu-me sonhar livremente”.

Quando ouviu falar na hipótese de comprar o navio, Brock Pierce diz ter-se recordado também de um período que passou em Portugal “há uns 20 anos”. Na memória tinha “o oceano, as águas, a história rica, os edifícios lindíssimos que na altura me lembraram Paris, Roma ou Barcelona [cidades que conhecia melhor] — mas também o bom tempo”.

O país é, nesta fase, uma espécie de paraíso fiscal para investidores de criptomoeda e esse também é um detalhe relevante: “Com incentivos, os Governos movem os mercados — por vezes bem, outras vezes não tão bem. Sem dúvida que Portugal está a atrair investidores e especialistas em tecnologia, numa altura em que a tecnologia está claramente a mudar o mundo. Muitas das minhas pessoas favoritas estão a mudar-se para Portugal. Acho que o Governo está a ser muito inteligente em atrair líderes e futuros líderes para trazerem a inovação para aqui, para ajudar a uma transformação positiva. Acho que isso vai ajudar muito Portugal no futuro e parabenizo os líderes [políticos] por isso”.

"Alguns dos quartos [do hotel] serão pensados para viajantes de mochila às costas. Isto é para todos: também queremos ter aqui os locais, os portugueses que estão por todo o país, os jovens e os velhos, os ricos e os pobres. Isto foi pensado como algo que deve servir toda a gente."

Se em leilão o investimento inicial no Funchal foi de 1.9 milhões de dólares, Brock Pierce diz já ter gastado neste projeto “cerca de 10 milhões de euros, 12 milhões de dólares até à data, portanto está a andar rápido”. A ideia é avançar o projeto tão rápido quanto possível: “Estamos preparados para nos mexermos rapidamente. Isto é um investimento estimado em 100 milhões de euros, que vai criar empregos e proteger algo que é histórico, que é relevante e que posiciona Lisboa como destino”.

O bilionário norte-americano, quase um defensor arreigado no discurso do anti-elitismo e da inclusão, é alguém que insiste nas ideias de comunidade e de responsabilidade social. Portanto, faz sentido que o futuro Paquete Funchal também tenha essa componente. Brock Pierce garante que a terá mesmo: “Alguns dos quartos [do hotel] serão pensados para viajantes de mochila às costas. Isto é para todos: também queremos ter aqui os locais, os portugueses que estão por todo o país, os jovens e os velhos, os ricos e os pobres. Isto foi pensado como algo que deve servir toda a gente”.

E depois de este investimento, planeará Brock Pierce outros investimentos em Portugal? “Assim que começo, nunca paro. A dúvida é se [esse investimento adicional] será aqui ou ali. Vou ter uma presença substancial aqui. Onde posso contribuir com maior valor acrescentado é na área da inovação e tenho vindo a fazer coisas que estão a trazer uma mudança substancial ao mundo. Portanto… vamos ver. Tenho um sítio em Espanha, um sítio em Amesterdão, gosto de passar tempo na Europa. Vou voltar aqui uma e outra vez e outra ainda. E isso provavelmente levará a mais coisas, mais investimentos”.

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