O relatório interno sobre a partilha de dados pela Câmara Municipal de Lisboa, ao qual o Observador teve acesso, mostra que foi prática recorrente nos últimos nove anos a autarquia enviar os avisos de manifestações na íntegra — com nomes dos promotores e moradas, quando eram fornecidos — para as embaixadas de inúmeros países, incluindo vários Estados totalitários. A situação ainda piorou a partir de 2018 quando a lei apertou a malha, mas a câmara ainda passou a enviar informação em mais situações.
A auditoria atribui as culpas à máquina burocrática da autarquia e mesmo ao Gabinete de Apoio ao Presidente, mas não a Fernando Medina, que nunca terá sido informado destas decisões dos serviços que tutelava. Arábia Saudita, Irão, Iraque, China ou Rússia (a grande campeã, que recebeu informação pelo menos 27 vezes) são alguns dos países que obtiveram acesso a este tipo de informações. Isto embora a informação enviada nem sempre fosse igual.
O caso começou quando o Observador e o Expresso noticiaram que a Câmara Municipal de Lisboa tinha enviado dados de manifestantes anti-Putin, incluindo moradas dos promotores, à embaixada da Rússia. Depois disso, Fernando Medina admitiu que o caso era grave, pediu desculpa e fez uma conferência de imprensa a justificar-se, deixando, no entanto, perguntas por responder. Ficou prometida a divulgação do relatório na íntegra, que foi esta quarta-feira enviada aos outros membros do executivo e à qual o Observador teve acesso.
A auditoria ainda deixa perguntas por responder, o que a própria autarquia — que elaborou o documento — admite. Logo no início do relatório é referido que “o curto prazo atribuído a este processo de auditoria, implicou uma reformulação da matriz inicialmente concebida e um maior foco na área das embaixadas”. Daí que, de acordo com o próprio município, não possam ser considerados “os resultados apurados como conclusivos, pois as respostas obtidas apresentam algumas incoerências que afetam a qualidade e segurança das mesmas.” E o relatório admite mesmo: “Esta questão exige um tratamento mais profundo.” Quais são então as novidades do relatório?
Autarquia enviou dados dos promotores a embaixadas de regimes totalitários?
O relatório vem confirmar que a câmara de Lisboa enviou, de facto, dados dos promotores para representação de regimes totalitários, democracias musculadas, para países com problemas de direitos humanos e também para democracias consolidadas. Houve casos em que nada enviou, sem que seja explicado o porquê.
Há vários exemplos em que é registada a referência a um determinado evento como “sem informação”, mas os dados que existem neste relatório interno permitem verificar que a embaixada da Federação Russa foi aquela que mais vezes recebeu dados da autarquia lisboeta. Ao todo, mesmo pecando por defeito — uma vez que não existe registo de todos os casos –, a câmara liderada por Fernando Medina enviou pelo menos 27 vezes informações à embaixada da Rússia sobre manifestações. Em 2021, isso aconteceu precisamente na manifestação feita em “solidariedade com Alexei Navalny e apelo à sua libertação imediata” — a que acabou por destapar esta falha no sistema. Em todos os anos desde 2013 houve manifestações e comunicações de dados à embaixada russa de protestos que vão desde a “memória das vítimas do voo MH17” até à “agressão à Ucrânia” pela anexação da Crimeia, passando por várias manifestações contra o regime de Vladimir Putin.
A embaixada de Angola também foi informada por oito vezes: quatro delas já durante o atual Governo de João Lourenço, outras quatro ainda no tempo de José Eduardo dos Santos. A maioria das manifestações foi pela defesa dos “direitos humanos” e da “democracia em Angola”.
A autarquia liderada por Fernando Medina também enviou por duas vezes dados para a embaixada da China: relativamente a uma “concentração pacífica” pela “Revolta Nacional Tibetana”, em março de 2019, e outra manifestação em solidariedade com o povo de Hong Kong, em outubro de 2014.
A Arábia Saudita também recebeu informações da câmara de Lisboa em janeiro e fevereiro de 2015. A primeira destas ações sido cancelada, mas os dados foram enviados e a segunda realizou-se sob o mesmo mote: “Demonstrar preocupação com o caso de Raif Badawi”. Badawi é um ativista saudita que foi detido em 2012 e acusado de insultar o Islão, após de ter posições críticas do regime no seu blog “Sauditas Liberais Livres”.
A embaixada de Israel recebeu igualmente informações da autarquia entre novembro de 2012 e maio de 2021 em nove ocasiões, inclusive um protesto junto à embaixada israelita já depois de ter sido detetado o erro.
Também as embaixadas do Irão, do Iraque, Paquistão, Argélia e Turquia receberam pelo menos uma vez informações da autarquia sobre os promotores das manifestações. A embaixada do Brasil também foi informada pelo menos oito vezes, em manifestações que vão desde ataques ao governo de Jair Bolsonaro até manifestações contra a corrupção ainda no tempo de Dilma Roussef. As embaixadas tuteladas pelo Governo de Viktor Orbán, da Hungria, também receberam informações em, pelo menos, duas ocasiões.
Os EUA foram informados várias vezes, bem como democracias avançadas da União Europeia como Itália, Espanha ou Grécia. No caso espanhol há exemplos de manifestações pela libertação dos presos da Catalunha, mas também mais recentemente, em fevereiro de 2021, uma manifestação “pela libertação imediata do rapper Pablo Hasél” que decorreu junto à embaixada espanhola, na rua do Salitre, em Lisboa.
Há ainda casos de manifestações junto à embaixada da Venezuela de que não existe informação (se foram ou não enviados dados para a embaixada) e casos junto à embaixada de Cuba ou Austrália, em que não foi feita qualquer comunicação pela autarquia.
Sabe-se com precisão a quantas embaixadas foram enviados dados pessoais?
Não. A auditoria explica que as pastas com os processo relativos aos anos de 2012 e 2013 só foram localizados no dia 14 de junho de 2021, daí que — explica o relatório — “só seja possível fazer a sua amostragem”. Diz ainda a auditoria que “o resultado global que agora se apresenta faz fé dos mapas que nos foram entregues e que refletem os mapas de manifestações que são elaborados pelo Gabinete de Apoio ao Presidente desde o início da atividade”.
Ou seja, a auditoria conseguiu apurar que foram comunicadas ao município 7045 manifestações, mas não conseguiu fazer uma avaliação qualitativa de todos os casos. Como Fernando Medina já tinha dito na semana passada em conferência de imprensa no total foram “remetidas 180 comunicações de realização de manifestação junto de embaixadas, 122 anteriores à entrada em vigor do RGPD [regimento Geral de Proteção de Dados] e 58 após”.
A autarquia identificou assim que depois da entrada em vigor do RGPD (entre maio de 2018 e maio 2021) “foram considerados como tendo sido enviados dados pessoais em 52 dos processos”.
Para dizer que são 52 processos a câmara utiliza o critério da Comissão Nacional de Proteção de Dados. Antes de 2018, como não há lei nem critério, a câmara não contabiliza (nem conseguiria, pois não tem documentos para tal, nem critérios uniformes), mas divulga um anexo em que lista em que ocasiões enviou dados para as embaixadas e admite que “foi possível identificar alguma documentação em suporte papel respeitante a anos de 2012 e seguintes que contêm variados dados pessoais de promotores de manifestação”. Desses 122 não se sabe quantos continham dados pessoais, mas desde 2018 até 2021 só seis não continham esses dados.
António Costa fez despacho a impedir diretamente envio de informação a embaixadas em 2013?
Não é bem assim. O que o então presidente da Câmara António Costa deixou escrito no despacho de 13 abril de 2013 foi que entendia não ter competência “para impedir ou condicionar o exercício do direito constitucional de manifestação”. O documento é sobretudo um posicionamento político a propósito da transferência de poderes dos governadores civis para as câmaras, com Costa a entender que não tinha competências nem meios para “ordenar medidas de polícia e assegurar que as forças policiais” as executassem na organização das manifestações. Nesse despacho, o autarca determinava, assim, que, enquanto essa situação não fosse esclarecida, a CML devia apenas “limitar-se “ a receber comunicação dos promotores e a reencaminhá-la para o MAI e para o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP. Mas nem isto foi cumprido e o protocolo seguido pela CML para o tratamento de avisos de manifestação continuou a ser o de informar gabinetes do primeiro-ministro, do ministro da Administração Interna, dos Assuntos Parlamentares, a PSP, a Polícia Municipal sobre cada manifestação, bem como as entidades visadas pelo protesto, onde se incluíam e continuaram a incluir as embaixadas.
Relatório atribui culpas a Medina ou Costa?
Não. O relatório descreve uma situação burocrática em que, perante dúvidas suscitadas pela lei, os próprios serviços foram tomando decisões automatizadas. O relatório explica que quando a competência passou dos Governos Civis para os presidentes das autarquias, o protocolo da câmara especificava que deviam ser enviados os avisos das manifestações também para as embaixadas quando os protestos lá terminassem. O protocolo não referia que tipo de informação devia ser transmitida, mas fazia “referência ao reenvio do aviso”. Então, e aconteceu assim desde 2012, a CML reenviava a informação sem fazer qualquer tratamento de dados. De quem era a culpa? Do presidente Costa ou do presidente Medina? De acordo com o relatório feito pela câmara, nunca foi de nenhum dos dois. A decisão desse envio foi “dos trabalhadores responsáveis que geriam a receção e encaminhamento destas comunicações”.
Em 2018, como aprofundaremos mais à frente, a situação piorou. O procedimento passou a ter aquilo que o relatório chama de “uma nuance”: o núcleo do Gabinete de Apoio ao Presidente “passou a adotar a prática de remeter o aviso não só para outras entidades de acordo com a localização da realização da manifestação, mas também para as entidades visadas, designadamente as embaixadas”. Por exemplo: se antes a embaixada da Rússia só era informada quando havia uma manifestação junto às suas instalações, passou a ser informada sempre que na embaixada de outro país ou noutra zona de Lisboa alguém protestava contra (ou a favor — o que nunca aconteceu) o Governo russo.
O relatório desculpabiliza, também aqui, Fernando Medina já que diz que tudo isto aconteceu “sem prejuízo de não se ter encontrado qualquer ordem superior a determinar a alteração do procedimento.” Mas assume a dimensão do estrago provocado pela instituição CML: “Esta nova alteração nos procedimentos adotados pelo Gabinete de Apoio ao Presidente levou ao aumento do leque de entidades a receber o aviso na íntegra, contribuindo para a elevada partilha, sem consentimento, dos promotores das manifestações.”
Os critérios foram sempre uniformes?
O relatório dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa divide a metodologia de saída de dados da autarquia para outras entidades em três momentos.
O primeiro momento ocorre quando em 2011 são extintos os Governos Civis e a competência de receção e acompanhamento dos avisos de manifestação passou para os presidentes de câmara. Foi então que essas competências ficaram, segundo o documento, no Gabinete de Apoio ao Presidente. O protocolo feito logo em 2012 deixava claro, como já foi explicado em cima, que “para além do envio dos avisos para as entidades com intervenção necessária nestes processos, ou seja, o MAI e a PSP, deveriam ser também enviados os mesmos avisos para as entidades junto das quais a manifestação iria decorrer (local ou locais da manifestação)”.
O que o protocolo não dizia era que tinham de ser enviados dados pessoais, mas o entendimento dos serviços foi sempre o do reencaminhamento do aviso “na sua versão integral” — o que significa que “nunca foi realizada qualquer operação de expurgo dos dados pessoais.”
O segundo momento ocorre em abril de 2013, altura em que António Costa emite um despacho que acaba por dar origem “a novas minutas de articulação com os promotores e com as entidades externas”. O então presidente da autarquia balizou que se devia remeter os avisos à PSP e ao MAI, já que a Polícia Municipal não tinha meios nem a câmara competências de fiscalização de manifestações.
As minutas mudam ligeiramente nessa altura, mas mantêm-se os pressupostos do protocolo inicial. Ou seja: os dados dos promotores continuam a ser enviados para as embaixadas. Como diz o documento: “Não foram seguidas as limitações quanto às entidades a quem deveriam ser dirigidos os emails, mantendo-se a tradição de remeter os avisos, na íntegra, para outras entidades sem intervenção necessária no processo, como as embaixadas.”
Em 2018, com a alteração relativa à nova lei de proteção de dados, avança-se para uma terceira fase ainda menos respeitadora dos dados e da privacidade dos promotores. A autarquia passa não só a enviar os dados quando as embaixadas são o local de destino das manifestações, mas sempre que os países em questão são visados numa manifestação.
Gabinetes de Costa (e Passos) recebiam emails com dados pessoais dos promotores iguais aos enviados para a embaixada da Rússia e outras embaixadas?
Sim. O protocolo da câmara municipal elaborado em 2012 definia que, ao mesmo tempo que eram avisadas as embaixadas, o email com os dados dos promotores era enviado também para o gabinete do primeiro-ministro, para o gabinete do coordenador de segurança, para o gabinete do MAI, para o gabinete do ministro dos Assuntos Parlamentares (era Miguel Relvas na altura em que o protocolo foi feito), para a PSP, para a Unidade de Coordenação Territorial e para a Polícia Municipal de Lisboa. A auditoria reconhece que manteve-se a prática do protocolo. Ou seja: o gabinete de António Costa (como o Expresso já tinha noticiado) recebeu o polémico email sobre os promotores da manifestação em solidariedade com Navalny que espoletou todo o processo. O email terá sido também enviado para o ministro Eduardo Cabrita. Tal como no passado os emails seguiram com conhecimento dos gabinetes de Passos Coelho ou Miguel Macedo.