Ricardo está no Facebook quando tropeça naquela fotografia. É um cidadão de Reguengos de Monsaraz, mas não resiste a deixar um comentário anónimo depois de ver o presidente da autarquia com um comprovativo de vacinação na mão. Marta Prates está na mesma rede social quando se depara também com a imagem de José Calixto, já vacinado contra a Covid-19. É vereadora do PSD na autarquia alentejana, historicamente socialista, e rapidamente torna a sua indignação pública na mesma rede social, “como munícipe, não como vereadora”, conta ao Observador.
Dois dias depois da primeira partilha, não há quem em Reguengos de Monsaraz não tenha visto a foto ou a carregue no seu telemóvel: uma funcionária da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, que detém o lar de idosos de Reguengos onde no verão morreram 18 pessoas, de pé, sorridente, ao lado do autarca. Na mão, ambos seguram o comprovativo de que foram vacinados. Na sua página oficial de Facebook, José Calixto, que foi vacinado apesar de não fazer parte de nenhum grupo prioritário, viria a confirmar que deu autorização para que a fotografia fosse publicada.
“O argumento para permitir a publicação da fotografia é de que não fez nada de ilegal”, conta a vereadora. Apesar de no seu partido, assim como no resto da povoação, saberem que estava para breve a vacinação nos lares de idosos, nada fazia prever que José Calixto apanhasse a boleia e também recebesse a vacina por ser presidente da fundação.
“Nunca nos chegou aos ouvidos nenhum tipo de comentário que fizesse crer que isto fosse acontecer. É altamente imoral. Não nos espantou, mas o grosso da comunidade ficou chocada. Penso que até os mais indefetíveis terão dificuldade em justificar o que aconteceu, mas isto é um pequeno feudo e há-de haver quem ache que é legítimo”, defende Marta Prates. Pelo caminho, apesar da publicação de um comunicado a repudiar o sucedido, o PSD não pretende alimentar a polémica.
“Não vamos pedir a sua demissão, nem tomar nenhuma posição extremada. Esta não é uma questão político-partidária, é sobretudo uma injustiça”, diz a vereadora social-democrata. “O episódio é grave e as pessoas não se podem afastar dos cargos que têm. Esta situação é altamente infeliz e prejudica imenso o concelho, mas não nos devemos desfocar do mais importante, que é protegermo-nos todos da pandemia.”
No comunicado oficial, o PSD defende exatamente o mesmo.
Há mais um autarca que foi vacinado sem estar no grupo prioritário — “porque havia sobras”
No final, sustenta Marta Prates, quem foi vacinado não foi o autarca, mas sim o presidente da Fundação e a fundação detém o lar. Mas eles são uma e a mesma pessoa e Calixto só está à frente da fundação por inerência, ou seja, porque é ele o presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz. E não está entre o grupo de prioritários, que são os idosos e os funcionários desses lares ou quem com eles contacta diretamente.
Entre a comunidade, a indignação é grande, conta Ricardo ao Observador, mantendo o anonimato (como muitos reguenguenses fizeram, aliás, quando contaram as histórias do que passou naquele lar em agosto). “As pessoas estão revoltadas e isso vê-se entre os bombeiros. Há uma revolta muito grande porque são eles que transportam os doentes Covid e não foram vacinados. Ele pode ser presidente do lar, mas não vai lá diariamente, vai uma ou duas vezes por semana, que eu vejo-o, mas para assinar papéis.”
Tal como Marta Prates, Ricardo conta que ninguém imaginava que esta situação pudesse ocorrer. “Descobrimos quando vimos a fotografia no Facebook e que começou a correr por toda a gente. Ninguém estava à espera e ninguém tinha sabido se não fosse a fotografia, a não ser que alguém da fundação contasse.” Acabaram por saber também que todos os elementos da administração, exceto um, foram vacinados, mesmo um administrador que esteve recentemente infetado e que, por isso, até deveria estar imune.
“Nós sentimos-nos enganados e até há pessoas que o apoiavam e que agora têm outra conversa. Mas ainda há muitos que o defendem, basta ver nas redes sociais e lembrar que esta sempre foi uma terra socialista e que ele foi eleito com cerca de 60% dos votos”, diz Ricardo, que não vê no autarca um pingo de arrependimento.
“Ele diz que autorizou a fotografia e faz sempre aquilo que acha que é correto, mas não olha às consequências. É um político nato, domina muito bem a comunicação e as redes sociais e aquilo que o fez subir tão alto vai acabar por fazê-lo descer muito baixo”, sustenta Ricardo.
Olhos postos em Reguengos (de novo)
“Pela segunda vez, está toda a gente a olhar para Reguengos por causa dos erros do presidente da câmara”, desabafa Marta Prates. O primeiro erro a que a vereadora se refere aconteceu no verão de 2020: a 18 de junho, um surto de coronavírus teve início no lar de idosos da Rua da República, alastrando depois à comunidade. No lar da fundação presidida por Calixto acabariam por morrer 18 pessoas vítimas da pandemia.
A atuação dos responsáveis foi alvo de uma auditoria da Ordem dos Médicos que apontava responsabilidades à administração. Entre outros problemas, referia não ser possível cumprir “o isolamento diferenciado para os infetados ou sequer o distanciamento social para os casos suspeitos”. Dois meses depois das mortes, uma vistoria conjunta da Segurança Social e saúde pública detetava 16 desconformidades.
José Calixto nunca assumiu que algo lhe tivesse escapado ao controlo. Pelo contrário, disse sempre ter feito tudo para salvar vidas. Em dezembro de 2020, meio ano passado dos acontecimentos, reafirmava isso mesmo numa entrevista à Rádio Campanário.
Questionado sobre se faria algo de diferente, o autarca respondeu que todos aprenderam com a história. “Neste momento olho para as 800 páginas que é o relatório da Proteção Civil Municipal de Reguengos de Monsaraz e não encontro páginas que eu não tivesse a obrigação de as repetir”, disse, não fazendo qualquer referência à auditoria da Ordem dos Médicos ou aos erros apontados.
Sobre a forma como a situação foi tratada, Calixto voltou a repetir algo que já dissera no passado: “Reguengos, não sabemos muito bem porquê, teve um mediatismo absolutamente anormal face uma realidade dramática que é transversal a todo o país.”
Em agosto, quando a equipa de reportagem do Observador visitou o lar, ouviu relatos de “caos” e “terror” de funcionárias e familiares de utentes do lar de idosos, incluindo acusações de negligência, em que os idosos eram deixados sozinhos, sem apoio, medicação, água ou até comida.
O feudo socialista
Calixto não é profissional de saúde. Não é utente, nem trabalha num lar de idosos. Não contacta diretamente com doentes Covid-19. O autarca tem uma longa lista de cargos, como se pode ver no site da Câmara Municipal, 12 no total, mas nenhum dos três acima referidos aparece nesse rol.
Não é o único socialista no poder, numa câmara que desde o 25 de abril nunca deixou de ser rosa, no meio de um Alentejo comunista. Por exemplo, o Centro Distrital da Segurança Social de Évora é presidido por José Ramalho, ex-líder do PS/Estremoz, e a Administração Regional de Saúde do Alentejo por José Robalo, antigo deputado municipal do PS no Alandroal.
São estas ligações que levaram o PSD, na altura das mortes no lar da fundação, a falar de uma “teia de relações partidárias” nas autoridades de saúde e da segurança social no distrito de Évora. E é por isso que Marta Prates fala em feudo, numa terra pequena onde toda a gente tem alguém na família que trabalha para a câmara ou para a fundação e depende desses empregos.
“Quando as instituições se começam a substituir ao IEFP cria-se este tipo de clima”, refere a vereadora do PSD.
As explicações de Calixto. “Devolverei ao Estado o custo da primeira dose”
É no Facebook, e apenas no Facebook, que Calixto respondeu às acusações que lhe são feitas. “Se estou numa listagem da Autoridade de Saúde para a vacinação desta oferta social da Instituição seria da minha parte irresponsável se não aceitasse ser vacinado”, disse quando um concidadão o questiona sobre a vacinação.
“A Autoridade de Saúde está a tratar todas as pessoas das ERPI [Estrutura Residencial para Idosos ] por igual para evitar todas as cadeias de contágio. Por isso estão a ser chamados para a vacinação todas as pessoas que têm funções nos lares e todos eles têm a obrigação de comparecer a essa vacinação. Penso que seria certamente irresponsável não o fazer”, insistiu Calixto num outro comentário.
Saragoça da Matta. Plano de vacinação contra a Covid-19 não prevê “consequências” para quem o violar
Para Marta Prates a justificação não serve. “O José Robalo, da ARS, já disse que não faz listagens. São as instituições que o fazem e, portanto, ele, como presidente da fundação, terá validado o seu próprio nome. As equipas que chegam ao local são brigadas de vacinação e vacinam quem está na lista, não são fiscais a ver se são ou não pessoas que contactam com doentes”, acrescenta a vereadora. “É imoral, é um vazio de integridade.”
No comunicado do PSD, o partido alertou que com esta situação de “vacinação indevida abriu-se um precedente gravíssimo que adultera o critério de prioridades estabelecido pela DGS para a toda a população”. E lembrou que as autoridades de saúde são “unânimes em afirmarem que as pessoas a vacinar são indicadas em lista elaborada pela IPSS”, acrescentando-se que Francisco Ramos, coordenador do Plano de Vacinação, “confirma a ilegitimidade do ato cometido pelo autarca de Reguengos”.
O escândalo do político espanhol que tomou a vacina contra a Covid-19 e acabou demitido
Ainda no Facebook, José Calixto disse ser “desumano” ser alvo de um ataque de tão baixo nível: “Pessoalmente já solicitei à Administração Regional de Saúde, com esta campanha miserável, que considere a minha disponibilidade imediata para, se porventura não foram bem aplicados os critérios, devolver ao Estado o custo da primeira dose e prescindo da segunda dose.” E acrescentou que será “injustamente obrigado a deixar de poder dar o contributo voluntário aos 72 idosos” dos quais se sente cuidador.
Já a fundação, numa resposta enviada à agência Lusa, justificou a vacinação do autarca por ser uma das pessoas que tem “contacto regular direto com os utentes” do lar, tendo sido vacinados “todos os utentes, funcionários, administrativos, técnicos e dirigentes” que também o têm. “O critério recomendado pelas autoridades de saúde, e consensualizado com a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade para definir o universo a vacinar, foi o do contacto próximo e regular com os utentes, sendo expressa a necessidade de incluir os membros das direções das instituições que mantivessem esse contacto próximo”, pode ler-se no comunicado.
Em resposta ao Observador, o Ministério da Saúde considera que cabe a cada lar de idosos, e não às autoridades nacionais, interpretar quem preenche as condições para receber a vacina enquanto elemento de um grupo prioritário. Já Francisco Ramos considerou que, como autarca, José Calixto “não deveria ter sido vacinado” e que “esteve mal” como membro da administração do lar.
Por outro lado, o advogado Paulo Saragoça da Matta afirmou que o plano de vacinação contra a Covid-19 não prevê “consequências” para quem o violar. “Não vejo que tipo de sanção, se não está prevista, possa ser aplicada“, explicou, a não ser que tenha havido uma “falsa declaração por parte de quem recebe a vacina para que a receba” — o que não é o caso.