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Carlos Lobo, ex-secretário do Estado dos Assuntos Fiscais, que criou em 2009 o regime de residentes não habituais (RNH).
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Carlos Lobo, ex-secretário do Estado dos Assuntos Fiscais, que criou em 2009 o regime de residentes não habituais (RNH).

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Carlos Lobo, ex-secretário do Estado dos Assuntos Fiscais, que criou em 2009 o regime de residentes não habituais (RNH).

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Autoeuropa hoje não se fazia, diz Carlos Lobo. Operação Influencer "é assassina para qualquer perceção do investidor estrangeiro"

Raide judicial a data center de Sines foi fatal para atrair investidores estrangeiros, diz Carlos Lobo. Ex-secretário de Estado considera ainda urgente construir mais casas sob pena de crise social.

O IRS Jovem melhorou depois da negociação com os socialistas, mas o fiscalista Carlos Lobo alerta para um problema de perceção. “Um bom imposto é aquele que o contribuinte paga sem sentir e aqui vai sentir-se”. Todos os anos os beneficiários vão descontar mais imposto porque as taxas sobem e vão ver o rendimento líquido cair. Para o ex-secretário do Estado dos Assuntos Fiscais, que criou em 2009 o regime de residentes não habituais (RNH), teria sido preferível aplicar um modelo semelhante, de taxas mais baixas e estáveis, ao IRS dos jovens. Mas essencial é traçar um desígnio para Portugal, defende. E só depois disso pôr a fiscalidade como instrumento desse desígnio. O IRC a 20% para empresas não muda muito, diz.

Em entrevista ao Observador, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa não esconde o desconforto com a investigação judicial sobre o processo de licenciamento do centro de dados de Sines, e que fez cair o Governo de António Costa. A “história do Start Campus é assassina para qualquer perceção do investidor estrangeiro”. Isto porque “quem está muito bem informado fica com medo, porque efetivamente houve ali uma agressão por parte do Estado a investidores que já estavam estabilizados”. Daí que, conclui, uma Autoeuropa não teria hoje hipótese de se instalar em Portugal.

Não quer voltar ao Governo, mas confessa que gosta de colaborar com vários governos, e um dos temas ao qual tem dado mais atenção é a habitação. Diz que é urgente disponibilizar mais casas, “sob pena de ter uma crise social fundada”, mas para isso é preciso ter mais solos disponíveis para construir, mais habitação pública e colocar no mercado as casas que os senhorios têm vazias por causa da falta de confiança gerada por décadas de congelamento de rendas. Acredita que deve ser o Estado a subsidiar os inquilinos mais vulneráveis, e não os senhorios, e a regular o preço de mercado. Portugal precisa de construir habitação e habitação acessível. Mas, apesar de se considerar um homem de esquerda, avisa: “Não posso ter habitação acessível, por muito que isto choque Mariana Mortágua, na Baixa Chiado e na Avenida da Liberdade”.

O Orçamento do Estado para 2025 vai ser viabilizado. A novela terminou?
O resultado eleitoral foi claro, os dois partidos do centro têm uma maioria mais do que confortável. E, na prática, em vez de interpretarmos os resultados eleitorais numa ótica de polos, polo de esquerda e polo da direita, o que nós temos é, de facto, um centro.

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Um bloco central.
Um centro alargado. E temos de ver o panorama político do nosso país com olhos diferentes do que víamos nos anos 70 e nos anos 80. E temos de olhar para a Europa. A Europa e a política hoje, com a fragmentação, com a criação de outras orientações partidárias, obriga a uma responsabilidade e a entendimentos.

[Já saiu o terceiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio e aqui o segundo.]

O PS não tinha alternativa?
A questão é a interpretação da vontade eleitoral. Não tivemos uma eleição, tivemos duas eleições, que deram dois empates técnicos relativamente aos dois partidos, com uma ampla maioria desses dois partidos. Por isso compete aos partidos fazerem efetivamente a interpretação da vontade do eleitorado. Mesmo as sondagens mais recentes mantinham exatamente a mesma circunstância. O que significava que, de facto, a vontade do povo português era a de que os dois partidos se entendessem, ocorrendo o mesmo nas sondagens mais recentes relativamente à posição do próprio PS. Por isso, quer o PS quer a AD interpretaram convenientemente a vontade do eleitorado, diversas vezes confirmada, e chegaram a um acordo que lhes pareceu mais aceitável para as duas partes. Ou seja, não é uma questão de submissão, o PS também teve ganhos de causa, reconhecidos pelo próprio primeiro-ministro em algumas matérias.

"A fiscalidade é instrumental do crescimento económico, não é indutora do crescimento económico."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Resolvida a questão política, que nota é que dava a este orçamento em termos fiscais?
Quando estabeleço uma classificação tenho que ter uma meta, tenho que ter um objetivo. Qual é o objetivo? O que é que se prossegue? O instrumento não é o fim em si mesmo, é um instrumento para a concretização do fim.

As duas grandes medidas fiscais têm objetivos específicos: reter os jovens e baixar a fiscalidade sobre as empresas.
Mas o grande objetivo para isso é o crescimento económico e o enriquecimento dos portugueses e fazer com que os portugueses possam angariar mais recursos financeiros.

Estas medidas não permitem lá chegar?
O que eu acho é que são medidas paliativas para isso, mas que as medidas estruturais necessárias para que isso aconteça ao nível do país não estão realizadas nem concretizadas.

Quais são as medidas estruturais?
A libertação da economia portuguesa. Na prática temos de ter como objetivo primordial um crescimento sustentável e temos de fazer com que o Estado, em vez de ser um agente bloqueador…

É uma questão do que nasce primeiro, o ovo ou a galinha. Nasce primeiro o crescimento económico ou estas medidas ao nível da fiscalidade para induzir crescimento económico?
A fiscalidade é instrumental do crescimento económico, não é indutora do crescimento económico. Não é pelo IRS jovem, por mais agressivo que seja, que os jovens vão ficar cá se os salários em Portugal forem menores que os salários lá fora ou se a habitação aqui não for acessível aos mesmos.

Estas medidas permitem aumentar os salários líquidos dos jovens.
Sim, mas não aumentam os salários nominais. Isto é um apoio, é um paliativo, o problema de base é o dos baixos salários. Eu falo sempre do desígnio, o desígnio do país. Portugal concorre para quê? O que é que nós queremos do país? Em 74, queríamos a democratização, a descolonização. Depois, em meados de 80, a CEE, em 2000 o euro. Depois do euro, o que é que estamos aqui a fazer? Basicamente, passámos duas crises: a crise financeira e o Covid. Nós estamos organizados para quê em termos de organização coletiva? Dizia o anterior governo, a nossa prioridade é aumentar a qualificação dos portugueses para que possamos ter crescimento económico. Tivemos sucesso, só que eles foram para fora. Se eu estiver a aumentar as qualificações e tiver sucesso nisso, mas se as nossas estruturas económicas não evoluírem… eles vão embora. E não é pela parte fiscal. O que esta parte fiscal faz é equiparar os termos da fiscalidade portuguesa, por exemplo, à fiscalidade holandesa. E os holandeses ainda ganham, porque na Holanda ganham mais e as casas são mais baratas.

Mesmo para os jovens, em concorrência fiscal Portugal perde?
As medidas fiscais não são o remédio para as nossas falhas estruturais.

Então por que é que se põe tanto a tónica na fiscalidade para tentar aumentar salários?
Porque é fácil. É sempre o label mais fácil. Nós achamos, na nossa tradição napoleónica, que conseguimos resolver tudo através da aprovação de leis e de outros regimes, e dos regimes de exceção, etc. Temos uma aversão a mexer na materialidade da realidade.

"O problema é que a estrutura cultural de todos os agentes burocráticos reagiram contra o simplex [urbanístico]. A liberdade assusta-os. A liberdade da decisão, a responsabilidade da decisão, assusta."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

A questão dos governos terem um tempo muito limitado para mostrar resultados também faz com que seja difícil optar por outro tipo de medidas?
Exato. Porque não há um instrumento mobilizador que agregue a vontade dos partidos num determinado sentido.

Os famosos pactos de regime.
Sim, mas pactos de regime tendo em consideração um objetivo que nunca é fixado. Antes de fazer os pactos de regime, temos que fixar o que é que nós queremos. E, efetivamente, o que nós queremos, na minha perspetiva, é que o país cresça, num ambiente de competitividade internacional acérrima.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Isso é possível sem a fiscalidade?
A fiscalidade é um instrumento disto, não é a finalidade. Primeiro tenho que desbloquear toda a economia. Tenho de permitir que projetos como o hidrogénio verde arranquem, o lítio arranque, os centros megascale arranquem, todas as estruturas de produção de energia verde arranquem, porque a energia é a chave do futuro. Tenho de fazer com que efetivamente exista uma construção massiva de habitação acessível, com oferta privada e pública de arrendamento. Reparem, nós estamos numa situação em que o país, nos últimos 10 anos, foi o que emitiu menos licenças de construção. Sabemos que há uma falha brutal de habitação e o número de licenciamentos reduziu-se…. Como é que se explica que num mercado aberto, numa situação de carência brutal, em que os preços são elevadíssimos, ainda tenhamos um número de licenciamentos menor?

Governo prepara alterações ao Simplex Urbanístico, que tem “entropias” e “incompatibilidades práticas e jurídicas”

O simplex urbanístico não resultou?
O problema é que a estrutura cultural de todos os agentes burocráticos reagiram contra o simplex. A liberdade assusta-os. A liberdade da decisão, a responsabilidade da decisão, assusta. O simplex é isso: em vez de haver controlos a priori, com base numa malha absolutamente infinita de regulamentação, verificamos concomitantemente ou a posteriori. E todo o mundo tremeu. Isso tem a ver com a cultura formalista napoleónica que leva também à ideia que eu, por aprovar leis, altero a realidade. Quando, na prática, tenho que atuar na realidade e usar as leis como instrumento de suporte.

“Porque é que achamos o acordo [entre PS e PSD] a anomalia e o diferendo a normalidade?”

É muito difícil que um governo tenha margem de manobra para mudar essas culturas durante o pouco tempo que está em funções, ainda para mais em legislaturas que não chegam ao fim.
Daí que temos que estabelecer um objetivo, um desígnio para o qual temos que lidar. E então, a reforma da justiça faz sentido, a reforma fiscal faz sentido, a reforma orçamental faz sentido, a reforma de Estado faz sentido, a reforma do território, da parte florestal faz sentido, a reforma habitacional faz sentido se nós ligarmos a esse objetivo de crescimento sustentável.

A visão dos dois principais partidos é diferente em algumas dessas matérias, portanto, nunca se conseguiria chegar…
Olhe que eu acho que não, apesar de, de uma forma muito enfática, tentarem salientar diferenças, na maneira old school. O PS tem que dizer que é diferente do PSD por ser a liderança da oposição, o que é muito salientado no discurso de ontem [de quinta-feira, quando Pedro Nuno Santos anunciou o sentido de voto no Orçamento do Estado], na tentativa de se manter como o partido que lidera a oposição. O PSD é minoritário. Nós pela primeira vez temos um governo que é minoritário no Parlamento, porque há um partido que se auto exclui de toda esta equação. E então temos um modelo de equilíbrio. Temos é que ser adultos e fazer com que, perante esta circunstância, o país avance. Porque, no final, nós não estamos aqui para jogos partidários. Se fosse um jogo partidário, o PS tinha votado contra o orçamento. E o PSD não cedia da maneira como cedeu. Porque é que achamos o acordo a anomalia e o diferendo a normalidade? Porquê? Quando na prática o resultado eleitoral dá uma maioria de quase 70% aos dois partidos do centro, com um outro com 20%. Isto não é para fazer uma interpretação à Livre, porque na prática Rui Tavares dizia: ‘não podemos contar com o Chega’. O Chega basicamente auto-excluiu-se, sistematicamente.

É verdade que já sabemos que o orçamento vai ser viabilizado, mas não sabemos como é que vai ser viabilizado, ou que orçamento é que vai sair deste processo orçamental. O procedimento da elaboração do orçamento devia ser alterado para permitir menos alterações de uma especialidade?
Eu ainda vou mais profundo. O processo de elaboração do orçamento atual não cumpre a lei de enquadramento orçamental. O Tribunal de Contas julgou não conforme a execução da Conta-Geral do Estado de 2023. Não é comum. Mas ninguém liga.

Despesa com benefícios fiscais não está apurada, diz Tribunal de Contas. Contabiliza em 1.300 milhões o impacto de residentes não habituais

Mas isso não retira a incerteza na especialidade.
O orçamento é uma previsão que pode não acontecer. Aliás, veja-se a história das cativações. O PSD passou oito anos a criticar as cativações. As cativações estão lá exatamente da mesma forma como estavam anteriormente.

Aparentemente mantiveram o modelo de Fernando Medina mas transferiram uma parte das cativações para os ministros da tutela.
No final quem manda é as finanças. Eu digo que não há desígnio, mas na realidade há aqui um micro-desígnio, que é a manutenção da redução da dívida pública.

"Toda a margem do aumento da despesa primária dos próximos três anos foi consumida neste orçamento. Não há borlas nos próximos anos."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

As contas certas são o desígnio que junta os dois partidos?
As contas certas são uma condição. E a questão da redução da dívida pública é efetivamente positiva. Mas continuo a dizer, também é instrumental. Não é nada substantivo. Mas é bom que os dois partidos se revejam.

É uma imposição europeia, por isso é que há consenso nessa matéria?
Não, não. É uma questão mesmo de necessidade. Nós levámos com um procedimento por défice excessivo e tivemos a intervenção da troika por causa disso e ainda temos alguma memória. O que é grave é que nós podíamos ter reduzido ainda mais a dívida pública, porque com as condições orçamentais que tivemos nos últimos três anos podíamos ter feito um esforço ainda maior. Mas na prática aumentámos muito a despesa primária. Outro aspeto deste orçamento que é preciso tomar em conta, é que toda a margem do aumento da despesa primária dos próximos três anos foi consumida neste orçamento. Não há borlas nos próximos anos. Não é por opção política. É por imposição.

Isso significa que este orçamento respondeu a todas as reivindicações?
Significa que nós somos péssimos a fixar objetivos, mas se alguém nos fixar de cima, nós cumprimos.

Portugal, com espada sobre o crescimento da despesa líquida, acredita que consegue manter excedentes até 2028

Disse que a despesa não foi opção do governo, foi obrigação. Por causa das eleições? É um orçamento eleitoralista?
Claro que foi. Quando os partidos do governo fizeram a campanha disseram que iam fazer isto. Ou seja, na prática, em termos claros e transparentes, quando os portugueses votaram, foi nesse programa. A única coisa que eu tenho a criticar é que estamos a dar, efetivamente, estas atualizações a determinadas classes profissionais que têm mais capacidade de reivindicação e não estamos a fixar objetivos. Nós estamos a estamos a remunerar. Mas o que é que eles nos dão em troca? Qual é o outro lado do contrato social? A que é que eles se vinculam? O país está a fazer um esforço e está a reconhecer e a atualizar. O que é que eles vão fazer? Ninguém diz qual é a contrapartida? Há objetivos de prestação de serviços públicos? Aos municípios e aos profissionais, estabelece-se que têm de licenciar não sei quantos metros quadrados de habitação? A partir do momento em que não tenho a definição concreta de KPI [key performance indicators que são indicadores de desempenho]… tem de haver mensuração daquilo que é feito, senão estamos a gerir às cegas. E, na prática, todos pedem e conseguem mais consoante a sua capacidade de reivindicação, mas eu, no final, não tenho nenhum resultado para o país. A não ser uma paz social que é concretizada.

Muita desta despesa é estrutural. No futuro, se for preciso fazer um esforço orçamental, será mais fácil aumentar os impostos do que descer a despesa.
É o princípio do não retrocesso civilizacional que o nosso Tribunal Constitucional afirma. Nós nunca podemos ter um retrocesso a não ser numa situação de crise extraordinária.

"Estamos a dar estas atualizações a determinadas classes profissionais que têm mais capacidade de reivindicação e não estamos a fixar objetivos. O que é que nos dão em troca? Qual é o outro lado do contrato social? Todos pedem e conseguem mais consoante a sua capacidade de reivindicação, mas eu, no final, não tenho nenhum resultado para o país. A não ser uma paz social que é concretizada."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

No futuro, se tivermos um problema, será sempre por via fiscal que se resolverá?
O Estado arrecada na medida do que gasta. O professor Sousa Franco dizia isso logo na primeira aula de finanças públicas. Por isso eu não posso falar de redução brutal de impostos se não fizer uma redefinição prévia de toda a estrutura de despesa. O processo orçamental está todo errado. O Estado não sabe quais são os seus ativos não financeiros, não sabe quais são os passivos de longo prazo. Todo o modelo de gestão pública assenta num modelo de caixa que é o de uma mercearia do século XIX. O Estado gasta na medida daquilo que ganha. Uma gestão pública criadora de valor é completamente diferente disto. Se investir num prédio para o reabilitar e tiver um incremento de valor de um milhão, gastando 100 mil, em termos de contas públicas o incremento do valor de um milhão não conta nada, mas conta a despesa de 100 mil. E como é investimento e o prédio não reivindica, esses 100 mil vão para pagar um aumento salarial de um  grupo mais reivindicativo. Por isso é que o Estado está a perder stock de capital brutal, porque estamos com uma quebra significativa ao nível do investimento e este orçamento segue totalmente aquilo que vinha dos orçamentos anteriores e que era criticado também pela AD.

Mas há sempre o aumento do investimento previsto.
Por isso é que eu digo que a conta geral do Estado é que é relevante. Porque eu posso pôr lá todo o investimento na proposta, toda a gente fica satisfeita, e depois quando vemos o nível de execução são 20% ou 18% e depois o Tribunal de Contas dá o seu parecer e ninguém liga. Estamos sempre reféns da apreciação a priori, da verificação concomitante ou da fiscalização a posteriori. Ninguém quer saber da responsabilização.

"O jovem aos 35 anos não ia comprar um Porsche, tinha que vender o que tinha para fazer face aos impostos que ia pagar subsequentemente. Havia ali uma clivagem."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

IRS Jovem da AD “iria originar uma crise de meia idade aos 35 anos”. O que ficou é um paliativo

Já nos deu a ideia de que o IRS Jovem pode não ser um incentivo para fixar jovens no país.
Eu disse que era um incentivo, mas que não era suficiente. Era um paliativo para a equiparação das condições que os jovens têm em outras jurisdições, nomeadamente comparando diretamente com a Suécia e a Holanda. E equipara no primeiro ano, não nos outros, mas que isso não é o essencial. O essencial é que efetivamente haja uma elevação geral do nível de remuneração em Portugal.

Mas a medida ficou mais calibrada e ficou melhor depois das negociações com o PS?
Eu no início critiquei logo o modelo que existia. Apesar de obviamente reconhecer que era necessário, iria originar uma crise de meia idade aos 35 anos. O jovem aos 35 anos não ia comprar um Porsche, tinha que vender o que tinha para fazer face aos impostos que ia pagar subsequentemente. Havia ali uma clivagem.

Simulações. Após avanços e recuos, quanto vão afinal os jovens poupar no IRS em 2025?

Ir até aos 35 anos é positivo? E os 10 anos de duração da medida?
É muito mais complexo. O problema é um problema de base, de atração de talento e de retenção dos talentos. Obviamente, o meu sistema favorito era o dos residentes não habituais (RNH), em que na prática havia um contrato e a pessoa tinha um benefício que era pessoal e se comprometia numa determinada finalidade e numa determinada função.

Mas como é que isso era aplicável aos jovens portugueses?
Era aplicar os regime para os residentes não habituais também aos jovens portugueses. Na prática era aplicar o mesmo regime dos 20% naquelas condições a portugueses.

Para todos? Isso não era a ideia original da AD, embora a proposta da AD fosse de 15%?
Os 20% chegavam. A taxa de 20% é a taxa normal para um salário médio-alto português e médio europeu para um jovem que é recém-licenciado. E os 20% era como limite. Na prática, o sujeito tinha a perceção que tinha ganho algo. É mais forte em termos de satisfação pessoal do que um regime generalizado em que, na prática, há um fading out. Este novo regime é positivo porque é mais gradual, mas é mais negativo porque é mais complexo e o agente fica com uma má perceção. E sabem qual é a má perceção? É aquilo que psicologicamente vai pagar. Cada ano que passa, mais imposto. O bom imposto é aquele que é anestésico, em que o contribuinte paga sem sentir. E aqui vai sentir-se. Ou seja, ele todos os anos vai ver a sua situação degradar-se na perspetiva fiscal. Nunca ninguém agradece nada, toda a gente toma aquilo que é dado como um direito adquirido. E aqui temos esta perceção psicológica de degradação da sua situação de ano para ano. Isto psicologicamente tem efeitos. A minha proposta inicial era precisamente o RNH com as profissões de alto valor acrescentado aplicada a estrangeiros e aplicada a portugueses.

"Não há nenhum país civilizado que tenha uma taxa de transmissão do património imobiliário desta dimensão. Guterres dizia que a SISA era o imposto mais estúpido do mundo. E o IMT (sucessor) continua a ser. Ou seja, nós temos um problema de IVA e temos um problema de IMT."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Só pessoas qualificadas?
Mas os jovens não qualificados nem sequer têm rendimentos para estar dentro. Mas eu também estou preocupado com eles. Por isso é que eu quero que efetivamente haja uma elevação do nível salarial. O problema de Portugal é que se ganha pouco. Isto só se resolve se efetivamente todos os portugueses enriquecerem e a estrutura de base crescer. Mas na prática nós não fazemos nada para isso. Investimento direto estrangeiro? Conseguimos tirar toda a confiança aos investidores internacionais. A história do Start Campus é assassina para qualquer perceção do investidor estrangeiro. Por duas razões. Quem está muito bem informado fica com medo porque efetivamente houve ali uma agressão por parte do Estado a investidores que já estavam estabilizados. Quem não é informado acha que o país é uma cambada de corruptos generalizados e que o governo é corrupto e então não é uma jurisdição séria.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Portugal “tirou toda a confiança aos investidores internacionais”, quem decide são os técnicos setoriais

Os próprios políticos e técnicos, no futuro, vão ter medo de interagir com investidores e os investidores vão ter medo de interagir com os políticos?
Isto é que é o problema de base. Nós tivemos, nas últimas décadas, uma total erosão da posição do político. Ou seja, sempre numa ótica de degradação sucessiva, de perda de confiança, suspeição. O que é que isto originou? Originou, obviamente, que quem tinha a capacidade de fazer o juízo global da oportunidade ou não oportunidade de um determinado investimento desapareceu. Quem é que define agora tudo? Os técnicos setoriais. Por exemplo, em grandes projetos temos 10 silos de decisão, o pessoal da água, do solo, da floresta, câmaras municipais, da cultura, tudo.

E a decisão não deve ser meramente técnica?
Em nove silos tem uma setinha verde, mas com um vermelho pára tudo. Ou é por causa de um lobo que aparece e que tem ali o local, ou é uma lagartixa ou uma rã de uma charca que nunca ninguém viu.

Só passando para o nível de decisão política é que permitia resolver esses impasses administrativos.
Claro, mas depois alguém da nossa instituição judicial começou a interpretar isso como prevaricação. Ou seja, o político que tenta superar esses obstáculos pode ser o prevaricador. Obviamente, quem tem dois dedos de testa já não vai para a política. Porque se tentar fazer alguma coisa é acusado de prevaricação. Os que lá estão não fazem nada. Deixamos a decisão a quem? Ao técnico. Eu não estou a criticar o técnico. Aquele que disse que, efetivamente, a lagartixa estava lá está a fazer o seu papel, mas tem que ser ponderado no papel global. E isso, neste momento, não é. É tudo visto de uma forma de bloqueio. Estamos a falar de dezenas de biliões que estão parados de investimento.

"A história do Start Campus é assassina para qualquer perceção do investidor estrangeiro. Por duas razões. Quem está muito bem informado fica com medo porque efetivamente houve ali uma agressão por parte do Estado a investidores que já estavam estabilizados. Quem não é informado acha que o país é uma cambada de corrupto generalizado e que o governo é corrupto e então não é uma jurisdição séria".
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Os projetos já estavam a andar muito devagar. O Start Campus andou depressa.
Quando um projeto anda depressa, nós desconfiamos. Passámos para a total inversão da lógica de eficiência na própria decisão. Também me lembro na altura do Freeport que tinha sido aprovado a grande velocidade, também houve logo uma grande desconfiança. Ou seja, a eficiência gera desconfiança.

Há casos e casos. Se há alterações de leis à medida de um projeto, se calhar há razões para desconfiar…
Então o que é que foi a Autoeuropa? As leis não estão adaptadas para megaprojetos. Elas estão adaptadas para a normalidade.

Neste contexto que acabamos de descrever, uma Autoeuropa hoje não teria hipótese?
Claro que não! Porque as alterações necessárias foram feitas e todos os acordos fiscais que foram feitos na altura para atrair a Autoeuropa… A Easyjet teve o hub europeu em Portugal garantido. Depois, com as disfunções regulatórias da Autoridade de Segurança Aérea criou ali alguma agitação. Como é que a Easyjet foi para a Áustria? Com um ruling do ministro das Finanças da Áustria basicamente, contra a lei austríaca, a oferecer-lhes praticamente uma isenção total de impostos. É assim que se joga no âmbito da concorrência europeia. É pragmatismo político. As leis são instrumentais de um determinado objetivo. Eu não posso ter um PDM (Plano Diretor Municipal) em discussão durante 15 anos. Eu também não posso dizer que um investimento de oportunidade é bloqueado porque o PDM não permite. Não! Tem que ter a capacidade de alteração do instrumento de planeamento o mais rapidamente possível para acomodar aquela oportunidade.

Mas também não pode abrir a porta a tudo.
Porquê? Mas porquê?

Há regras.
Há regras, mas têm que ser ponderadas e justificadas no momento certo.

Mas não vai alterar as leis todas só para permitir viabilizar o investimento?
Porquê não? Se o investimento for uma coisa absolutamente extraordinária, se todo o processo for transparente, e se efetivamente mostrar que tem benefícios para o país, por que é que eu não posso ser rápido? Onde é que isso está?

O investimento numa zona protegida deve avançar e acabar com a zona protegida?
A zona protegida do Start Campus abrange a central termoelétrica de Sines. É um habitat, é uma zona protegida. Mas atenção, a zona especial de proteção, a ZPE que afeta o Start Campus está em cima da central termoelétrica de Sines. A central termoelétrica de Sines é um habitat. Eu não posso tomar isso como uma regra inamovível.

Se calhar o lítio no Barroso já é uma questão eventualmente mais sensível do ponto de vista ambiental.
Mas porquê? Onde é que isso está provado? Houve avaliações de impacte ambiental nas duas minas, quer na do Barroso, quer na de Montalegre.

Mas houve, por exemplo, a decisão do anterior governo de retirar toda a zona de paisagem protegida do potencial de exploração de lítio. Acha que isso não devia ter sido feito?
Not in my backyard. O que é que diz o relatório Draghi? Se nós começarmos a deixar as decisões de proximidade na mão dos mais próximos, nunca vai ter nada. A decisão política é uma decisão de alto nível. As leis não são um fim em si mesmo. Toda essas leis, que muitas vezes se referem como bloqueadoras, devem ser interpretadas na ótica sistemática do sistema. A letra é um ponto de partida, não é um ponto de chegada. O que nós queremos é atingir as melhores soluções. E não haver bloqueios, que podem ter uma justificação, mas que na ponderação global dos efeitos são menores ou podem ser compensados.
Não é por causa de três charcas na zona protegida do Start Campus, que nem sequer as charcas alguma vez existiram, ou se existiram foi antes da construção da central termoelétrica. Nunca ninguém fez um direto das charcas do Start Campus. A questão do Start Campus é só um exemplo. O efeito externo que isso teve, a queda de um governo, todo o processo, que na prática não devia estar muito sustentado tendo em consideração o que os tribunais depois vieram dizer, isso, de facto, aumenta brutalmente o grau de risco de investimento em Portugal e da irrealização do que quer que seja.

IRC. “Não precisamos de ir aos 15%”

Em relação ao investimento direto estrangeiro, uma taxa de IRC de 20% é competitiva?
O problema é que nós não temos uma taxa de IRC de 20%, nós temos uma taxa de 31,5% (com as derramas).

Devia ter começado primeiro pela derrama?
Estadual. Nós não podemos ter um IRC progressivo.

Mas porque é que o Governo optou pela taxa nominal do IRC em vez de mexer na derrama? É menos comportável?
Não é por causa disso. É mesmo pela imagem externa de dizer que a taxa estatutária é mais baixa.

O ministro das Finanças disse que tirar a derrama seria muito oneroso…
E é. Um IRC puro devia ser um mero pagamento por conta, uma retenção da fonte daquilo que os acionistas deveriam receber a final, numa ótica de eliminação da dupla tributação económica. Ou seja, na pureza dos princípios, aquilo que a empresa paga é uma mera antecipação do que aquilo que os acionistas deveriam pagar. Por isso, taxas de tributação autónoma, limitações de dedução de encargos não deviam existir. Esse é um processo fluído. A nível do Pilar 2 da BEPS [base erosion and profit shifting como ficou conhecida a lei do mínimo de tributação para as multinacionais] ficou decidido que havia uma taxa mínima de 15% a nível global. De acordo com a teoria da concorrência, sempre que alguém fixa uma taxa mínima, transforma-se na taxa de referência. Ou seja, todos vão filar nos 15% e alinhar aos 15%. Portugal, com a taxa de 21%, está desalinhado. Eu sempre defendi que Portugal devia iniciar um processo de descida para os 18%, para ficar ali a meio caminho.

Taxa mínima de IRC de 15%. Nove respostas para saber, afinal, o que está em causa?

Não para os 15%?
Acho que não é necessário irmos para os 15%. Quem tem 15% ou quem tem 18%, em termos de perceção internacional… os investimentos diretos estrangeiros têm outras formas de redução da carga, da taxa de tributação efetiva. É mais relevante, na ótica da comparatividade internacional, e de não sermos o país da OCDE com a taxa estatutária de tributação das empresas mais elevada, que é uma péssima bandeira quando fazemos uma análise internacional. Eu estou muito preocupado, porque efetivamente tenho estado a haver, nos últimos anos, uma incrível redução de investimento direto estrangeiro de referência em Portugal. Qual foi o último grande projeto?

É por causa da fiscalidade que isso acontece?
Acho que é precisamente pelo facto de Portugal ser incapaz, de em momento útil, conseguir aprovar o que quer que seja ao nível de uma instalação industrial, de uma habitação. O problema é a burocracia. Se nós libertássemos o país a nível dos licenciamentos, se não tivéssemos esse entendimento quase de lei sagrada, de dogma, relativamente às normas escritas, e se fôssemos capazes efetivamente de fazer reformas, ao nível dos diversos setores, nós tínhamos uma libertação brutal ao nível da estrutura económica. Portugal insere-se tipicamente no país vencedor de uma economia do século XXI. É um país seguro, em termos de risco; estamos afastados da Rússia; temos nearshoring; temos uma posição geográfica que agora até aviões de curto alcance chegam aos Estados Unidos e ao Brasil, somos uma plataforma atlântica; temos um clima fantástico, com água — temos que aumentar as barragens, que é outro dogma –; temos sol; temos a possibilidade de fazer todas as estruturas de hidrogénio verde; temos o lítio; temos os cabos submarinos; temos formação e temos jovens. E não acontece nada. Dos megaprojetos, digam-me qual foi o que avançou.

Estão a avançar muito devagarinho.
Pois, porquê? Primeiro têm medo.

Na parte da transição energética também existem questões tecnológicas e dúvidas do mercado que também não ajudam, no caso do hidrogénio.
Não, não existe. Roterdão já fez o posto de receção do hidrogénio verde para a Europa. Está à espera dos abastecimentos. Quem estiver à frente ganha. Eu não estou a dizer que a posição dos investidores e dos promotores seja correta. Mas temos de ter uma postura corretiva e construtiva. E não uma postura totalmente destrutiva. Sempre que há um bloqueio agora, com o receio das pressões e dos contactos políticos, ninguém faz nada.

Portugal pode ganhar com uma taxa mínima de 15% no IRC?
Portugal só ganha se, efetivamente, criar as condições regulamentares e estruturais para ser atrativo e poder desenvolver os projetos que se lhe apresentam em tempo útil.

Existia uma projeção de que taxar 15% às multinacionais iria render ao Estado 100 milhões.
Sim, era a previsão de João Leão. Infelizmente, não temos nenhuma empresa no limiar para a aplicação da taxa mínima dos 15% que é o volume de negócios de 750 milhões de euros.

Os 100 milhões nunca vão ser realizados?
Claro que não. Aliás, se fosse para ser, desapareciam logo imediatamente da jurisdição, ou seja, os capitais são móveis. Qual é a empresa em Portugal que fatura 750 milhões e tenha uma taxa de tributação efetiva de 15%? A taxa de tributação efetiva da EDP deve ser acima dos 40%, com a CESE (contribuição extraordinária sobre o setor energético) e outras tributações autónomas.

Apesar da multiplicidade de benefícios fiscais que existem no nosso enquadramento fiscal… Alguém consegue captar estes benefícios todos?
O RFAI (Regime Fiscal de Apoio ao Investimento) e o SIFIDE para o desenvolvimento tecnológico são incentivos atrativos. Os contratos fiscais com cada empresa dentro do quadro legal e regulamentar e do auxílio de Estado têm feito a sua diferença, mas só efetivamente para grandes empresas. Tenho pena que não apareçam mais.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Estrangeiros ricos são bodes expiatórios da crise da habitação

Foi o responsável pela introdução do RNH. Qual era o principal objetivo do programa? António Costa tinha razão quando acusou este regime de ser responsável pelo agravamento da crise no mercado da habitação?
Apareceu em 2009 porque estávamos numa situação absolutamente lastimável, com os centros históricos de Lisboa e Porto completamente depauperados. Em 2004, na Baixa-Chiado habitavam 260 pessoas, na Praça da Figueira habitavam sete pessoas. Agora, quando se fala na desertificação destas zonas, é mentira. Havia companhias de seguros e bancos, mas os restantes imóveis estavam completamente devastados. Quando fui secretário de Estado (dos Assuntos Fiscais), tínhamos que fazer qualquer coisa diferente para atrair e inventámos o RNH. Atenção. Não é um benefício fiscal. É um princípio de tributação territorial em que Portugal diz ‘só quero tributar os rendimentos que são gerados em Portugal e não numa ótica de rendimento global’. E eles são residentes em Portugal. Prescindo da tributação dos rendimentos externos e dou uma taxa de tributação preferencial de 20%.

"Não há nenhum país civilizado que tenha uma taxa de transmissão do património imobiliário desta dimensão. Guterres dizia que a SISA era o imposto mais estúpido do mundo. E o IMT (sucessor) continua a ser. Ou seja, nós temos um problema de IVA e temos um problema de IMT."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Têm de existir acordos de tributação com os países de onde as pessoas vêm…
Por isso é que não é um benefício… Na altura até estávamos com medo que a União Europeia reagisse porque ele era efetivamente agressivo, mas nunca ninguém reagiu.

Os suecos reagiram.
Sim, mas isso foi por inveja porque, na prática, houve 800 suecos reformados que se mudaram para Portugal. E por questões políticas. Os suecos deviam era estar preocupados com os jovens que foram atraídos para a City (Londres). Em vez de 800 foram 20 mil. O RNH aparece, efetivamente, para tentar atrair e teve um sucesso brutal. Ou seja, na prática conseguimos colocar Portugal na moda. Palavra passa a palavra. Na altura, virei-me para os assessores e disse que era giro se trouxesse a Madonna para cá. Ela veio, mas não foi por causa do RNH, foi por causa do Benfica. O filho veio jogar para o Benfica. Também é uma boa fonte de atração em Portugal (risos). Apareceram as plataformas de alojamento local em Lisboa e Porto, porque não podemos confundir as cidades capital com o resto do país, e começou a história da crise da habitação. Quando eu tenho um problema que não consigo resolver e tenho que arranjar um culpado, quem é que é o culpado típico?

Mas acha que foi um bode expiatório?
Claro que foi! É o estrangeiro rico. Era preciso justificar a crise da habitação e tinha que se arranjar um culpado…

Uma coisa é ser o culpado, outra coisa é contribuir. O RNH não contribuiu para a crise da habitação?
Claro que não. O que contribuiu para a crise da habitação foi o facto de Portugal, nos últimos 10 anos, ter sido o país da Europa que de longe teve menos licenciamento para construção.

Mas o regime acabou por agravar um bocado os preços…
O regime trouxe para Portugal cerca de 80 mil pessoas.

Trouxe pessoas para os centros de Lisboa e Porto. Onde é mais difícil arranjar a casa.
Claro. Mas essas áreas não são para habitação acessível. E a Câmara de Lisboa que vendeu 3 mil imóveis na zona histórica nos últimos 10 anos para compor o orçamento? Quem é o culpado? Quem é que extinguiu o EPUL (empresa promotora da urbanização de Lisboa) em 2014? Onde é que está a construção pública e o arrendamento público nos últimos 20 anos em Lisboa? O problema é de oferta. O problema não é de procura. O problema é de oferta e é de oferta de arrendamento público que nunca existiu. Portugal é o país do mundo com o menor arrendamento público. E, sem isso, não consigo regular preços.
Obviamente, que não posso ter habitação acessível, por muito que isto choque Mariana Mortágua, na Baixa Chiado e na Avenida da Liberdade. Porque isso seria alocar recursos do Estado para financiar este tipo de habitação. Habitação acessível é oferta de habitação pública de arrendamento e é mobilidade acessível. Eu tenho de ser capaz de ter nas áreas metropolitanas a habitação para os jovens a valores acessíveis. Tem que ser fora de Lisboa, mas com mobilidade acessível.

Habitação. Governo só revela índice da estratégia (com 30 medidas), detalhes ficam para depois

As medidas do pacote da construção para tentar aumentar a habitação vão no bom caminho?
Acho que aquilo que o Governo anunciou é uma tentativa de resolver os mal entendidos que vieram do Mais Habitação acentuando o papel de simplificação. Ou seja, não havendo retrocessos e com o qual concordo em absoluto. Obviamente que aquilo [Simplex aprovado no Governo de António Costa] foi um bocado feito à pressa. Estava bem intencionado, mas tem de se ir testando e vendo as reações, fazer essa síntese e aprofundar o processo de simplificação. As outras medidas que acho importantes é que haja um alargamento dos espaços disponíveis para a construção de novas habitações.

"Obviamente, que não posso ter habitação acessível, por muito que isto choque Mariana Mortágua, na Baixa Chiado e na Avenida da Liberdade. Porque isso seria alocar recursos do Estado para financiar este tipo de habitação."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

E o IVA a 6% na construção?
Claro que sim. Quando criei o IVA a 6% da reabilitação esse foi o trigger da reabilitação urbana. O IVA na construção tem um problema porque é assimétrico. Se eu tiver uma construção que seja para fins comerciais deduzo o IVA é neutro. Ou seja, tem um efeito de tesouraria. O IVA na habitação em que não haja uma atividade dedutível, não é recuperável.
Mas depois há outro problema que é o IMT (imposto sobre transação imobiliárias). Sabem porque é que a SISA era 8%? Na reunião do conselho, em 1930, o ministro das Finanças apresentou uma proposta de SISA a 2% e Salazar perguntou se as pessoas apresentavam o valor real das escrituras. A resposta foi que apresentavam pelo menos umas quatro vezes menos. Então, ao invés de ser 2% foi 8%. Guterres dizia que a SISA era o imposto mais estúpido do mundo. E o IMT (sucessor) continua a ser.
Temos ainda um problema da disponibilidade dos solos. Também fui o precursor do fim dos solos urbanizáveis. Mas o princípio era que aquilo que era rústico, e não tivesse uma restrição, podia ser transformado em urbano desde que se fizessem investimentos. Se o rústico não tiver restrições, pode ser desenvolvido para o urbano num projeto de larga escala. A interpretação da massa burocrática foi bloquear tudo. E depois as redes de REN (reserva ecológica nacional) e de RAN (reserva agrícola nacional) começam a cercar os centros urbanos. Se fôssemos aplicar a lei da REN, Lisboa não existia. O que é ecológico são as zonas especiais de proteção, os habitats e as áreas naturais. Não é para proteção ambiental, são riscos orográficos ou físicos. Lisboa, hoje, não era construída. Era impossível. E o Palácio da Pena também não. Somos o único país do mundo que quando deteta um risco, em vez de eliminar o risco, protege-o.

Em relação ao IVA…
A questão da taxa de IVA é mais um obstáculo na distorção de todo o mercado de base que assenta na própria estrutura do mercado territorial. Como uma agravante! Somos o único país da Europa e dos poucos países do mundo que não tem cadastro territorial. Andamos a falar de política florestal, de políticas urbanas e o Estado não cumpre, não se sabe quem são os donos dos terrenos. A SISA devia ser paga para fazer esse cadastro. Pagámos dezenas de milhões de euros ao Estado e o Estado não fez o cadastro. O Estado não conhece o território. Sem conhecer o território, não pode fazer um planeamento.

Tem que haver uma reestruturação também dos impostos sobre o património….
Tem, brutalmente.

Mas devia acabar o IMT?
Não, o IMT devia passar a ser um imposto de registo. Os tais 2%. E o Estado devia fazer o cadastro. Cabo Verde tem-no. Moçambique tem-no. Angola está a terminá-lo. Temos 60% dos prédios na mão de heranças indivisas. Acham que é o sistema fiscal que nos salva?

O Estado devia tomar conta das propriedades?
O Estado devia tomar conta das condições e emitir orientações para que as propriedades fossem limpas, fossem geridas de uma forma agregada, e que a inexistência de qualquer oposição por parte do proprietário não significasse que a propriedade tivesse sido gerida. Não estou a dizer que tome a propriedade como sua.

Mas tentou-se isso com a reforma florestal do primeiro Governo de António Costa….
Eu estive na constituição da primeira AIGP (área integrada de gestão de paisagem) de Alvares que começou em 2018 e só foi aprovada ontem.

O Parlamento não viabilizou a possibilidade do Estado intervir nos terrenos privados de quem não se sabia quem eram os proprietários….
Pelo PCP.

E pela direita que votou contra.
Mas na altura bastava o voto do PC para que a lei passasse. Essa surpreendeu-me. Vejam o nível de desconformidade que temos. Ou seja, vai arder tudo outra vez. É evidente. O nível de biomassa que está em Pedrogão é absolutamente exorbitante. Os ciclos de incêndio são imparáveis. Já passaram sete anos. Não passa dos nove anos. Está estudado e ninguém quer saber. E estamos preocupados em saber se uma pessoa que já morreu, que tem uma herança indivisa e que nem sequer conhece quem é que são os outros herdeiros, tem que autorizar a intervenção de tratamento de uma estrutura florestal.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“O mercado de arrendamento em Portugal é um mercado morto porque ninguém acredita num mercado”

Voltando à questão da habitação. Até que ponto as rendas antigas também são um obstáculo?
Claro que são.

O Governo sinalizou no Orçamento do Estado que queria introduzir um regime de transição e depois recuou.
Você é uma proprietária espanhola de um apartamento em Madrid. E quer pô-lo no mercado e vê aquelas manifestações em que se diz que vamos não pagar e vamos entregar as chaves e etc. O que é que faz? Põe o apartamento no mercado e arrenda ou não? A questão é confiança e risco. Temos, efetivamente, a necessidade de construir pelo menos 400 mil fogos. Se não, continuamos a pôr os migrantes que são críticos, a dormir 30 em T1. A culpa não é deles, é nossa. Que não os acolhemos. Não há aqui hipocrisias, etc.

Também há muitas casas que estão paradas e vazias. Sabemos quantas são?
Os municípios dizem que não sabem, mas sabem. O que me preocupa é a razão pela qual as casas estão vazias. E, efetivamente, existe um preço elevadíssimo que os senhorios podiam receber se as disponibilizassem e não disponibilizam. Tenho que saber porque é que o proprietário não toma a decisão racional de disponibilizar aquele imóvel que está disponível. Porque as rendas foram congeladas em 1910. Até hoje.

"Obviamente, que não posso ter habitação acessível, por muito que isto choque Mariana Mortágua, na Baixa Chiado e na Avenida da Liberdade. Porque isso seria alocar recursos do Estado para financiar este tipo de habitação."
Carlos Lobo, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

Isso é para quem tem lá inquilinos. Os novos contratos não estão congelados.
Mas criou-se essa ideia. O mercado de arrendamento em Portugal é um mercado morto porque ninguém acredita num mercado. Também sabemos que se o inquilino deixa de pagar a renda, pelo sistema de justiça não se consegue que saia. O mercado imobiliário é um mercado como outro qualquer. Tem que ter fluidez. Um processo de arrendar uma casa é muito complicado. O senhorio tem que ter segurança naquilo que faz.

Mas como é que acabar com o regime das rendas antigas ia contribuir?
Mas ninguém vai acabar…

Então o que é que o Governo pretende fazer?
Não sei. Primeiro há uma questão social. Estamos a falar das rendas dos inquilinos mais vulneráveis. Agora também não pode haver uma hipocrisia de esperar que as pessoas morram e que o problema se resolva de per si. Porque na prática o que temos é os senhorios a fazer o papel social. Eu sou um tipo de esquerda, mas para haver política de redistribuição tem que haver criação de riqueza. Porque senão não consigo distribuir o que não existe. Antes conseguia porque ia à dívida pública. Agora não posso. Por isso tenho mesmo que produzir. O congelamento de rendas é pôr os senhorios a prosseguir este papel social por conta do Estado. Posso fazer isso num período de urgência de um ou dois anos. Não posso fazer num século. Se faço num século, o mercado, toda a confiança no mercado, cai totalmente.

Mas para isso foi lançado o apoio ao senhorio, que não está a funcionar….
Pois não. Mas não deve ser a todos senhorios. Tal como não deve ser a todos os arrendatários. Há muita gente com rendas anteriores a 1990, que se calhar ganha mais do que nós e que tem uma situação melhor, eu tenho que ponderar, tenho que verificar caso a caso. Mas para isso é preciso ligar o IHRU (Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana) com os sistemas da AT. Além da construção de novas unidades habitacionais, tenho que criar condições para que as que existem sejam disponibilizadas no mercado. O restaurar dessa confiança do mercado é crítica. Como é que eu faço? Reformando o sistema de justiça, efetivamente, para que sistemas de situações de incumprimento sejam rapidamente resolvidas. E efetivamente, sempre que existe uma função social, seja resolvida. Mas também não posso dizer que o preço do mercado é o valor exorbitante que agora existe por falta de oferta. Eu tenho que ter a capacidade de ter um aumento brutal de oferta, que está disponível no mercado, para reduzir a própria renda. O objetivo aqui é reduzir a renda. E para isso falta-me o referencial do que é que é a habitação acessível.

Como é que se calcula esse valor?
Tendo em consideração o rendimento médio do cidadão e a taxa de esforço médio, tendo em consideração o salário médio de uma determinada região do país. É um preço regulado que seja efetivo. Mas eu, urgentemente, tenho que disponibilizar casas. Sob pena de ter uma crise social fundada.

Então o Estado só compensaria a diferença entre o preço regulado e esse valor de referência?
Como é óbvio.

Mas isso é o Porta 65… para todos.
Sim, mas para todos. Isso é a forma de regular. Mas vai ao Orçamento do Estado. Nós temos que pagar isso. Não são os senhorios. É este o modelo. Eu tenho que equilibrar tudo. Por isso é que eu tenho que criar o hidrogénio verde, os lítios, os centros de dados, para conseguir angariar recursos para poder sustentar isto. É só fazer copy-paste do relatório Draghi [sobre competitividade económica na Europa] e pedir ao Chat-GPT para aplicar aquilo a Portugal. Aliás, o chat-GPT também disse que o orçamento era de esquerda… Todo o modelo de economia social é um modelo de esquerda, que é um modelo de produção, de maximização de produção e de distribuição de quem necessita. E é correto.

Estaria disponível para voltar ao Governo?
Eu não. Felizmente tenho mais coisas para me entreter. Aquilo que eu disse agora era impossível dizer se fosse membro do Governo. Não gosto de andar amordaçado. E eu colaboro com todos os Governos, em todas as áreas, da melhor forma possível para o bem do país.

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