São 16h de uma terça-feira de junho e Patrícia, 38 anos, acaba de chegar ao bairro do Segundo Torrão da Trafaria, onde vive com o companheiro e os três filhos — um com 21 anos, outro com 11 e o terceiro de apenas 10 meses. Está em casa, em layoff, desde dia 17 de março, mas, assim que julho começar, volta ao hotel de Carcavelos onde trabalha, a fazer limpezas e arrumar quartos.
É de lá que vem, de uma sessão de formação sobre os novos procedimentos de desinfeção e segurança. Despachou-se às 13h; um comboio, um barco e muito tempo de espera depois, chega finalmente ao bairro — fora das horas de ponta há ainda menos transportes, explica, mas pelo menos as aglomerações de pessoas são menores do que as que tem de enfrentar em dias normais, quando entra às 8h30 e apanha o cacilheiro das 6h40, depois de deixar a bebé na ama.
Apesar do vento que vai levantando a areia que pavimenta o bairro, clandestino e construído à mão por quem nele mora, com tijolos, cimento, madeira e chapas de zinco, já se vai sentindo algum calor e o que não faltam são crianças a brincar na rua, umas descalças, outras montadas em bicicletas. O pior, acredita, já passou.
Nos últimos três meses, em vez de 500 euros mensais — “Sim, faço horário completo, das 8h30 às 16h30, e, sim, tenho contrato”, encolhe os ombros com um sorriso à menção do valor do salário mínimo nacional —, passou a receber apenas 260 euros. Não fosse o marido, servente numa obra em Cascais, nunca ter deixado de trabalhar — “Graças a Deus as obras nunca pararam!” —, e o caso teria sido ainda mais complicado.
Numa situação normal, juntos, chegam ao fim do mês com 1.130 euros. Durante a pandemia, viram-se com muito menos dinheiro (até o filho mais velho, que ajudava com o que ganhava, a servir às mesas num restaurante, ficou sem trabalho) e, depois de esgotarem as poucas poupanças que começaram a juntar há cinco anos, quando largaram o apartamento que alugavam na Amadora e foram ocupar a casa deixada livre por uma tia que emigrou para França, tiveram de recorrer ao apoio alimentar prestado pela associação de moradores. “Como aqui não pagamos renda, nem água, nem luz, conseguimos ter alguma coisa para as emergências. Gastámos tudo e ficou um pouco difícil, tive falta de comida, de fraldas, de toalhitas, mas a associação e a escola ajudaram”, vai explicando sob o olhar circunspecto de outras duas moradoras do bairro que preferem não partilhar as dificuldades com que vivem.
Encostado ao Tejo, o bairro do Segundo Torrão da Trafaria nasceu na década de 60 do século passado, em terrenos da Administração do Porto de Lisboa, e foi crescendo: primeiro foram construídas umas quantas barracas, para guardar os apetrechos de pesca dos homens que ali se faziam ao mar, depois esses homens foram ficando e a seguir trouxeram as famílias, a que, décadas mais tarde, se foram juntando outras, muitas já sem partilharem a ligação ao oceano, apenas a da necessidade. Hoje, diz ao Observador Victor Reis, presidente do Instituto Nacional da Habitação e Reabilitação Urbana entre 2012 e 2017, será, “em extensão”, o maior bairro precário da região da Grande Lisboa.
De um lado, o bairro tem praia e vista para a capital; do outro, uma zona de pinhal onde se improvisam estendais em cordas esticadas entre troncos. Pelo meio, acumulam-se as cerca de 460 casas que o compõem, contas feitas por alto pelo presidente da comissão de moradores, Paulo “Faísca” Silva, 53 anos de vida, 40 de Segundo Torrão.
Umas são térreas, outras têm mais do que um andar, invariavelmente construído de forma tosca e com os materiais que, na altura, se terão conseguido arranjar. Não há esgotos, mas todas terão água e eletricidade, “só não tem quem não quer”, garante Paulo Faísca e atesta o emaranhado de fios elétricos, até agora puxados à mão e de forma ilegal.
A passagem à fase seguinte está prestes a dar-se. Pela primeira vez, a luz vai passar a ser paga pelos moradores, explica o presidente da comissão e comprovam os contadores já instalados. Nessa mesma tarde, os técnicos da EDP estão no bairro a tratar dos trabalhos de instalação de novos postes, seguidos de perto por um videógrafo contratado pela empresa para registar o processo.
No verão de 2018, Teodolinda Silveira, vereadora de Intervenção Social e Habitação da Câmara de Almada, garantiu à Lusa que legalizar o bairro estava fora de questão e que todos os moradores teriam de ser realojados. “O Segundo Torrão é uma das nossas grandes preocupações e a câmara tem tentado ajudar a melhorar as condições de vida. É um bairro clandestino que está implantado sobre terrenos que pertencem à Administração do Porto de Lisboa e a privados. Não é um terreno onde se possa construir. O que temos de fazer é começar a resolver aqueles problemas aos poucos e arranjar forma de realojar.” Para já, sem novas casas à vista, é hora de tornar menos precárias as condições de quem ali mora.
Não há construções novas, mas os moradores já serão mais de 5 mil
A escassos metros de um monte de lixo e entulho — há vários espalhados pelo bairro e são inúmeras as carcaças de carros, assentes em troncos de árvore ou no chão, sem janelas ou com airbags estourados —, Patrícia, que tratou de forrar a casa da tia com pladur, para “não ter tanto frio”, prefere ver o copo meio cheio: “A luz vai passar a ser paga, mas isso é bom. Às vezes, no inverno, a sobrecarga era tanta que a central rebentava e chegávamos a estar dois ou três dias sem luz”.
Está em Portugal há 20 anos, veio aos 18, era o filho mais velho bebé, e reconhece que já esteve melhor. Até quando vivia em Angola, no Sambizanga, “o bairro mais famoso de Luanda”, ironiza, novamente de sorriso no rosto sem máscara, nunca lhe faltou água nem luz. “Tinha tudo, mas faltavam coisas. A minha mãe era mãe solteira de sete filhos. Comecei a estudar com 9 anos e só fiz o básico: sei ler e escrever. Claro que preferia pagar e poder viver fora daqui, conheço o conforto de um apartamento e conheço o desconforto de um bairro. Mas o que me adianta sair daqui se um, dois ou três meses depois não vou aguentar e não vou ter dinheiro para pagar a renda?”, questiona. “Antes de morar no Casal de São Brás, na Amadora, e de pagar 450 euros por um T2, vivi em Queluz, em 2006, 2007, 2008. Mas depois o senhorio subiu a renda e não estava a dar. E depois o mesmo na Amadora. Até que acabámos aqui.”
O mesmo, revela ao Observador, sem apontar nomes nem portas — “Conheço pessoas, mas se eu falar vão se chatear comigo” —, está a acontecer com inúmeras outras famílias que, com o desemprego ou os cortes salariais impostos pela pandemia, estão a refugiar-se no bairro, em casas de amigos ou familiares — e não só.
A presidente do Banco Alimentar Contra a Fome falou recentemente no bairro, numa entrevista conjunta que deu à Rádio Renascença e ao Público. “[Estes bairros estão] a aumentar muito. Na margem sul, com a subida de rendas, [estão a crescer] os bairros muito difíceis e degradados, como o Segundo Torrão que teve um acréscimo do número de barracas muito substancial. Voltou a haver barracas em Lisboa porque as pessoas tiveram que largar a sua casa e vivem em condições muito precárias”, disse Isabel Jonet.
“É tudo mentira”, garante o presidente da associação de moradores, que, apesar de assegurar que não há novas construções a serem erigidas no Segundo Torrão da Trafaria — “Não são barracas, ainda por cima ofendem-nos! Antigamente isto eram barracas, agora são casas, as pessoas têm de respeitar quem cá vive!” —, admite que algumas casas, deixadas vagas por proprietários que emigraram ou se limitam a passar ali os meses de verão, estão a ser ocupadas e que outras estarão a ser “cedidas” a novos moradores.
“Não podemos falar em vender, o que está a acontecer é que há pessoas que estão a ceder as suas casas a outras — tenho a obrigação de não deixar crescer o bairro, foi esse o acordo que fiz com a Câmara de Almada, mas não posso fazer nada quanto a isso. E também temos o caso de uma ocupação, mas até concordo que quem ocupou a casa tem direito a uma habitação. São dois jovens, que saíram agora da prisão, com isto do Covid. Não lhes deram trabalho nem sítio para ficar, nem nada. Meteram-se lá dentro e estão a limpar aquilo tudo, a dona tem uma casa ali em Santo António [da Caparica] e raramente cá vinha”, justifica. “Por causa da epidemia, muita gente que estava no estrangeiro também teve de voltar. Depois, houve pessoas que perderam as suas casas, porque não tinham como pagar rendas ou água e luz, e vieram morar com familiares. Portanto, casas onde antes viviam quatro pessoas, se calhar agora têm sete ou oito, mas casa nenhuma foi construída para habitação”, volta a frisar.
Porque com a pandemia a necessidade se tornou ainda mais urgente, e recorrendo à ajuda da paróquia do Monte da Caparica, que forneceu fogões, tachos e panelas, a comissão de moradores deu finalmente início ao projeto de montar uma cozinha solidária no bairro — às terças e quintas há jantar comunitário e ao domingo almoço e depois missa, na capela que está ali a ser construída. “Hoje é jardineira de frango”, informa o líder do Segundo Torrão, enquanto três mulheres vão descascando batatas e cenouras, já o refogado de cebola está a fumegar.
Estima Paulo Faísca, polo azul bordado com um leme a atestar nome e cargo, serão entre 200 e 230 as pessoas a recorrer a esta ajuda — no total, calcula também, serão mais de 5 mil as que vivem atualmente no bairro, tendo em conta o aumento provocado pela pandemia e o habitual reforço dos moradores de verão, altura em que a população do Segundo Torrão, explica, mais do que duplica. “No inverno somos entre 2.000 e 2.500.”
“A maior parte dos moradores trabalha na construção civil e nas limpezas, basicamente é isso. Mas também tenho aí controladores aéreos, engenheiros e doutores. E até um campeão nacional de futebol de praia, o Marinho. É gente honesta e de trabalho, que se levanta às 5h da manhã. Há mais cabo-verdianos do que angolanos e pessoal de São Tomé. Do Senegal também há alguns. E depois há portugueses; em tempos já fomos a maioria, mas agora já não.”
Apesar de estarmos em plena fase crítica da pandemia, com índices de infeção diários a rondar os 80% na região de Lisboa e Vale do Tejo, no Segundo Torrão a preocupação com o novo coronavírus é residual, expressa em alguns cartazes colados nas paredes, no painel de acrílico que barra a entrada de clientes na mercearia mais próxima da entrada do bairro e na porta fechada da Fábrica dos Sonhos, o centro comunitário que costumava dar apoio a cerca de 50 crianças do bairro e que, assim que as escolas fecharam, imprimiu milhares de páginas para que os alunos, sem acesso a computadores ou Internet, pudessem continuar a estudar à distância. Quase ninguém usa máscara, jovens e não tanto reúnem-se em cafés, muros ou pátios, para conversar ou ouvir música. Mais grave do que uma hipótese de doença, dizem os moradores ao Observador, será sempre a pobreza — e essa já é real. “2º Gueto 2825”, pode ler-se, escrito a spray, em várias paredes do bairro. Os primeiros quatro números do código postal, comum a toda a zona da Caparica, até podem induzir em erro, o cenário é que não.
Assaltos, ameaças e insegurança (a outra face do bairro)
No outro extremo do bairro, mais perto da zona onde o rio encontra o mar, Alda é atraída à rua pelo cão que, confinado à divisão sem portas nem janelas onde, antes de a pandemia ter deixado o mundo em pausa, estava a ser acrescentada uma nova sala, assinala a passagem de estranhos e não pára de ladrar.
Depois de dois meses em casa, em layoff, voltou ao trabalho, num pronto-a-comer em Santa Marta do Pinhal, em Corroios, no passado 19 de maio — mas o marido, músico, continua sem perspetivas de regresso, portanto as obras de melhoramento da casa, de madeira, uma das originalmente construídas para guardar o material dos pescadores, continuarão paradas. “Até ver.”
Tem 53 anos, vive no Segundo Torrão há 13. “Mas conheço o bairro desde sempre. Esta casa, onde estamos há dois anos, era da minha avó. Antes morávamos do outro lado da rua, na casa que era da mãe do meu marido, ele é que já mora aqui há 30 anos”, explica, de pé, na sala entretanto improvisada à entrada de casa, com espaço para uma mesa pequena, uma enorme cristaleira, duas cadeiras e pouco mais. Como tantas outras no Segundo Torrão, também a casa de Alda e do marido, Fernando, nome artístico “Show Man” — “o único músico português que toca órgão com os pés”, revela ela, orgulhosa —, foi crescendo à medida das necessidades.
Para chegar ao quarto do casal é preciso sair para o exterior e descer um pequeno lance de escadas. É ali, num espaço exíguo e sem janelas, que têm cama, casa de banho e uma pequena zona de arrumos, onde os instrumentos musicais estão guardados, à espera que feiras, bailes e festas de aldeia voltem a ser permitidos no país. “É tudo muito pobrezinho, somos gente de trabalho”, desculpa-se assim que entramos. “O meu marido faz espetáculos de palco e agora está parado completamente. Como também tem umas luzes de mecânica, agarrou-se a isso, sempre entra algum dinheiro”, explica, enquanto mostra a fatura que todos os meses lhes chega por parte da Administração do Porto de Lisboa — 146 euros e 66 cêntimos. “A casa é nossa, mas está em terrenos deles, aquilo que pagamos não é uma renda, é a ocupação do espaço.” No bairro, só as casas dos pescadores originais estão sujeitas a esse pagamento, explica, as restantes não.
Há 30 anos, quando Fernando foi viver para o Segundo Torrão, já havia água e luz. O que não invalida, diz Alda, que em junho de 2020 “às vezes” continue a faltar a eletricidade e que tudo fique às escuras durante dois ou três dias — “Estraga-se a comida toda”.
Pior do que isso, desabafa, é o sentimento de insegurança que, nos últimos anos, tem crescido no bairro e que as placas de alarme colocadas à entrada de algumas habitações vêm confirmar. “Entro no trabalho às 6h, por isso, quando saio de casa, às 5h, ainda é de noite. Olho sempre para os dois lados, tenho medo”, confessa.
Ao Observador, outra moradora do Segundo Torrão, preferindo não ser identificada com receio de represálias, confirma: “Sempre houve assaltos neste bairro, agora está pior. À medida que foi crescendo, o bairro tornou-se uma favela perigosa. Isto é um barril de pólvora, há tráfico de droga e está muita gente nova a entrar. Não sei se há construções novas, mas vejo passar muitas carrinhas com material. E ainda há pouco tempo ocuparam aqui uma casa. Ameaçaram a dona, que veio tentar tirá-los, de que se voltar nunca mais sai de cá”.
Confrontado com este relato, Paulo Faísca, presidente da associação de moradores desde 2017, volta a garantir que não se passa nada e que o Segundo Torrão é absolutamente seguro e pacífico: “Até há três anos havia insegurança, agora já não há”.
Carlos Graça, a quatro meses de completar 85 anos, vive sozinho, numa das casas que mais se destacam no Segundo Torrão, térrea, com janelas com portadas de madeira, pátio, árvores de fruto, oficina e até coelheiras — “Fui eu que fiz tudo”, garante com orgulho.
A placa de alarme, aparafusada junto à porta, assegura, é verdadeira e está ligada à empresa de segurança. E o arame farpado, com que encimou a vedação que protege a propriedade deverá fazer o resto e manter os intrusos do lado de fora. Ainda assim, desde que a pandemia começou já foi roubado. “Deixei entrar uma rapariga e ela levou-me 160 euros, mas como aqui toda a gente me conhece, falei com uns rapazes e eles fizeram-na devolver o dinheiro”, conta entre risos.
Apesar de ter casa no bairro há 60 anos, só há seis é que mora efetivamente no Segundo Torrão, antes só vinha aos fins de semana e durante as férias. “Toda a vida fui serralheiro, tinha casa em Lisboa, na Rua da Bela Vista à Graça. Entrei em acordo com o senhorio, ele deu-me dinheiro, o prédio veio abaixo e eu e a minha mulher, que morreu há três anos, mudámo-nos para aqui”, revela, enquanto exibe o altar com imagens de santos e luzes de Natal que desde então manteve intocado no quarto do casal. “Todos os dias, quando acordo, acendo as luzes, só desligo quando me vou deitar.”
Garante que é feliz ali, longe da zona histórica de Lisboa que viu crescer e mudar com a chegada em massa de turistas estrangeiros — para abandonar o apartamento onde criou os dois filhos, revela, recebeu 15 mil euros; um T2 no condomínio de luxo entretanto construído no mesmo sítio está à venda por 560 mil. “O meu filho comprou uma vivenda, queria que eu fosse para lá morar, mas eu não quero! Aqui estou sempre a mexer, por isso é que ele tem barriga e eu não”, ri-se outra vez, enquanto vai explicando árvores e sementeiras. “Aqui tenho um limoeiro, esta é uma ameixoeira, ali estão alperces, tomates e do outro lado as cebolas, que já estão prontas para apanhar e pôr a secar.”
A viver numa casa com três quartos, sala, cozinha, casa de banho e sala de jantar, esta última acrescentada à construção original e coberta por um telhado de zinco que, nos meses de verão, alcança temperaturas dignas de sauna, terá mais espaço do que quaisquer outros moradores do Segundo Torrão.
Reformado, sozinho e sem grandes preocupações, destoa do conjunto e tem sido penalizado por isso — as desigualdades e a pobreza não a justificam, mas mantêm-se frequentemente próximas da criminalidade. “Já fui assaltado cinco vezes. Deitaram-me abaixo a porta da sala lá de trás; levaram-me o cilindro [termoacumulador]; o enxoval dos meus dois netos, que estão na Noruega; e 60 contos que tinha dentro de um macaco”, vai enumerando, como quem conta medalhas. No fim, encolhe os ombros: “Trabalhei muito a minha vida toda, não foi por isso que me deixaram mais pobre”.