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Marcia Williams foi secretária privada de Harold Wilson, o político britânico que foi duas vezes primeiro-ministro pelo Partido Trabalhista no Reino Unido nas décadas de 1960 e 1970. Mas mais do que gerir agendas, geria o país. Contudo, uma vida privada fora dos moldes convencionais num país que ainda estava para ver o poder no feminino pela mão de Margaret Thatcher não lhe permitiram ter o reconhecimento que merecia. Ficam na memória a relação pessoal com Wilson, uma polémica lista de nomes escrita em papel lilás e o lugar na Câmara dos Lordes sob o nome de Baronesa Falkender. Uma nova biografia chega agora ao mercado para tentar dar-lhe “o seu justo lugar na história política britânica” e apresenta-a como “a outra mulher que geria a Grã-Bretanha a partir do nº 10 de Downing Street”.
As origens de Lady Falkender
Marcia nasceu a 10 de março de 1932 com o apelido Field, quando se casou adotou o nome Williams e viria a ficar conhecida como Baronesa Falkender, que era o apelido da mãe. Esta seria uma filha ilegítima do então príncipe de Gales (futuro Rei Eduardo VII), mas tal nunca foi confirmado. Segundo o próprio Wilson relatou, a paternidade da mãe de Marcia foi assumida por um ajudante de campo que se chamava Falkender. A filha viria a usar este nome como título na Câmara dos Lordes, no parlamento britânico.
Casou-se em 1955 com George Williams, um engenheiro que conheceu na faculdade, mas o casamento não correu bem e o marido emigrou para os Estados Unidos, instalando-se em Seattle em 1957 e acabaram por se divorciar em 1961. A então secretária do Partido Trabalhista viria a ter uma longa relação com Walter Terry, antigo editor de política do jornal Daily Mail, com quem teve dois filhos, em 1968 e 1969, mas ele acabou por voltar para a sua mulher.
De secretária do partido a “peer” na Câmara dos Lordes
Marcia Field estudou história na Universidade de Londres e depois fez um curso em secretariado. Quando acabou os estudos começou a trabalhar no Partido Trabalhista (Labour Party) para o secretário geral do partido, Morgan Phillips, em 1955, quando tinha 24 anos. No ano seguinte conheceu Harold Wilson num jantar oferecido pelo partido trabalhista ao líder soviético Nikita Khrushchev. Segundo ela própria contou, ele reconheceu-a depois numa paragem de autocarro e deu-lhe boleia.
Conta o jornal Guardian que Wilson ficou depois a saber que Marcia era a pessoa que lhe andava a enviar notas anónimas sobre o mau estado da organização do partido quando ele organizava um relatório e também o avisou de movimentações políticas internas contra ele. Wilson chamou então Marcia para perto de si e nesse mesmo ano, 1956, contratou-a para o seu gabinete privado, dando-lhe muita responsabilidade e tornando-a uma ajuda preciosa no que toca ao funcionamento interno do partido. Com o passar dos anos veio a ser uma figura muito influente junto do político, despertando até especulações sobre uma possível relação pessoal e íntima entre ambos.
Em 1974 foi nomeada para a Câmara dos Lordes onde, durante quase 45 anos, ou seja, até à sua morte em 2019, nunca tomou a palavra. “A minha ‘peerage’ [ser membro da Câmara dos Lordes] sempre foi um grande problema para mim, porque nunca soube como lidar com isso. Mas agora, conheço-me a mim própria muito bem”, disse a baronesa citada pela BBC. “E acho que se a imprensa me percebeu mal não há nada que eu possa fazer para o remediar.”
Harold Wilson e a “lavender list”
Quem viu a série de The Crown (Netflix), lembrar-se-á da personagem de Wilson, na terceira temporada. Marcia também aparece e a maltratar o seu chefe, o que será um retrato fiel da realidade que se vivia entre ambos. O reinado de Marcia no nº 10 de Downing Street desagradou a muita gente e terá sido difícil para o próprio Wilson, criando um enredo que mistura intriga política e telenovela.
Mrs. Williams foi secretária privada e política de Harold Wilson (16 anos mais velho que ela) durante quase 20 anos, até 1983, e a sua relação terá sido mais do que profissional. Wilson ganhou as eleições gerais em 1964 e tornou-se primeiro-ministro, mas com uma maioria curta. Em 1966 convocou novas eleições e voltou a ganhar, desta vez com uma maioria confortável. Nas eleições de 1970 Wilson perdeu para os conservadores, mas em 1974 voltou ao nº 10 de Downing Street para ser primeiro-ministro pela segunda vez. Viria a demitir-se do cargo a 16 de março de 1976, cinco dias depois de completar 60 anos.
Por tradição, quando um primeiro-ministro se demite redige uma lista de honras ou distinções (The Prime Minister Resignation Honours). Esta lista é entregue ao monarca reinante e conta com os nomes a quem o primeiro-ministro demissionário gostaria que fossem atribuídos títulos de nobreza ou outras distinções dentro do sistema de honras britânico. No caso de Harold Wilson esta lista ficou especialmente famosa: “lavender list” (a lista lavanda). O nome deve-se ao papel em tom lilás no qual foi redigida e a fama deve-se ao facto de ter sido, alegadamente, elaborada por Lady Falkender e por incluir figuras inesperadas, como por exemplo, o editor e o fabricante de gabardines de Wilson, bem como um magnata do imobiliário, segundo enumera a BBC. Este caso terá manchado o legado político de Harold Wilson.
A “lavender list” já deu muito que falar e o mistério que envolve a sua história inspira a ficção. A BBC fez um documentário dramatizado que terá dado a entender que foi Marcia quem compilou a lista, que inclui nomes do seu interesse pessoal, que teve um caso com Harold Wilson e ainda que usou o mesmo para o chantagear. Por tudo isto, em 2007 Lady Falkender processou a estação britânica por difamação, venceu e recebeu uma quantia de 75 mil libras (aproximadamente 85.900 euros) por danos, segundo relata a própria BBC. Mas as histórias não ficam por aqui.
Terá sido a própria Marcia que, durante um ataque de ciúmes, disse à mulher de Wilson, Mary, o que aconteceu e com dados muito precisos. “Fui para a cama com o seu marido seis vezes em 1956 e não foi satisfatório”, segundo cita o Telegraph na crítica da obra. Quanto às acusações de chantagem, talvez também não fossem infundadas. Joe Haines, antiga figura do partido que conheceu Marcia e contribuiu para o novo livro, diz que Wilson terá reagido com uma certa sensação de alívio. “Bem, ela largou a sua bomba atómica por fim. Ela não me pode magoar mais”, terá ele respondido.
Em relação ao temperamento tempestivo, o livro também apresenta uma explicação. Durante a década de 1970 Marcia era uma mãe solteira a lidar com o trabalho, as contas e a família e recorreu a medicação (o que terá acontecido a muitas mulheres na altura). Tomava anfetaminas para se manter acordada e Valium para “suavizar a sua influência sobre o primeiro-ministro”, com receita do próprio médico de Wilson, segundo cita o jornal britânico. O cocktail conduziu a determinados comportamentos de histeria.
A “brilhante taticista” que merece um lugar na história política britânica
No final deste mês de outubro o lançamento da biografia “Marcia Williams – A vida e os tempos da baronesa Falkender” volta a acender a luz sobre esta personagem tão particular. A autora, Linda McDougall, é jornalista, original da Nova Zelândia e casada com um conhecido jornalista britânico e deputado pelo Labour entre 1977 e 2015. Está habituada a mergulhar na política, uma vez que escreveu uma biografia de Cherie Blair, a mulher do ex-primeiro ministro e líder do Partido Trabalhista Tony Blair, e também dedicou um livro às “Mulheres de Westminster”.
Neste livro, para o qual a autora fez uma série de entrevistas, a baronesa é descrita como “a outra mulher que geria a Grã-Bretanha a partir do nº 10 de Downing Street” mais de uma década antes de Margaret Thatcher chegar ao poder. Williams terá sido a primeira mulher conselheira política de um primeiro-ministro.
Para o que se sabe hoje sobre Lady Falkender muito terão contribuído os registos de Joe Haines, secretário de imprensa de Wilson, e Bernard Donoughue, conselheiro político do ex-primeiro ministro. A autora do novo livro afirma que embora ambos tivessem um certo fascínio, nenhum gostava dela. Haines, agora com 95 anos, falou com Linda McDougall para o livro. “Nunca houve ninguém como Marcia”, disse ele, citado pelo Telegraph. “Nunca conheci ninguém que se aproximasse dela numa escala de maldade, e eu acredito no mal… Ela era má e eu estou a ser preciso.” A autora traz agora, com este livro, um pouco de equilíbrio ao retrato de lady Falkender lembrando que a sua época e o meio da política eram ricos em misoginia.
Segundo o livro, os historiadores têm considerado a relação de Marcia com Harold Wilson como “uma das mais famosas, mas misteriosas parcerias na história da política moderna”. Marcia Williams é descrita como uma “brilhante taticista” e a mente por trás de “múltiplas vitórias eleitorais”. Wilson terá mesmo confirmado que, “se não fosse pela engenhosidade dela, ele nunca se teria tornado primeiro-ministro”. Lady Falkender morreu a a 6 de fevereiro de 2019 num lar, sem dinheiro, mas com muitas histórias para contar.