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As sirenes têm soado cada vez mais em Odessa, com as idas para os abrigos, onde não há rede, a serem frequentes: contactar a agência encarregue da gestação de substituição tem sido uma tarefa cada vez mais hercúlea para Maria (nome fictício), que quer acompanhar, tanto quanto possível, o estado de saúde da bebé de 21 semanas que outra mulher carrega no ventre, a milhares de quilómetros de distância, num país em guerra. “Eles comunicam todos os dias, mas antes respondiam muito rápido. Agora demoram mais e explicam sempre que estiveram no abrigo”, conta ao Observador.
Maria recorda como antes do conflito começar na Ucrânia ela e o marido ficaram alarmados com as sucessivas notícias que assinalavam a escalada de tensão, mas nem por isso a agência valorizou o perigo iminente. “Não acreditavam que a guerra fosse acontecer”, lamenta. Mas caídas as primeiras bombas sobre a capital, a 24 de fevereiro, a abordagem mudou: “Antes os contactos da gestante não eram dados pela agência, mas foi aberta uma exceção. Resolveram dar a cada casal o respetivo contacto, mas foram todos alertados para não criar pânico”.
No dia da conversa com o Observador, Maria estava em contacto com uma pessoa fluente em ucraniano para validar uma mensagem escrita que queria enviar à gestante da sua bebé para dar apoio e “tentar ao máximo não destabilizá-la”. E depois de alguma incerteza quanto ao paradeiro da mulher, sabe agora que está em Dnipro e que não quer sair do país. “Tivémos essa informação ontem, ela está com a família, em segurança. Como mãe, compreendo-a perfeitamente”, assegura. “Estar a mais de 1.000 quilómetros da fronteira, grávida, e deixar a sua terra… Também não sei se teria essa coragem.” O casal diz estar a tentar gerir a situação da melhor forma, mas acusa o desgaste.
Nascimentos em breve, “grandes incertezas” e 15 casais portugueses sinalizados
Esta não é a única portuguesa de coração nas mãos e sem certezas quanto ao futuro da bebé, à medida que a situação na Ucrânia se desenrola e ganha contornos cada vez mais trágicos na sequência da invasão (esta quarta-feira as forças russas bombardearam uma maternidade, a terceira a ser danificada desde o início da guerra). Maria é uma das duas dezenas de pessoas, sensivelmente, que integram um grupo criado no Whatsapp: são pais portugueses na mesma situação, que recorreram a barrigas de aluguer na Ucrânia — onde a gestação de substituição é legal e permitida a casais estrangeiros.
Questionado pelo Observador sobre se recebeu pedidos de apoio por parte de casais portugueses com gestantes na Ucrânia, ou que se veem incapazes de resgatar bebés entretanto nascidos naquele país, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) confirmou a existência de “15 casos de casais portugueses na situação em apreço”, sendo que há duas crianças que podem estar a caminho de solo nacional. “Foi emitida, em articulação com o Instituto dos Registos e Notariado, toda a documentação necessária para viabilizar a vinda destas crianças para Portugal”, assegurou ainda o MNE.
A Associação Portuguesa de Fertilidade (APF) confirma que já foi contactada por pelo menos cinco casais angustiados com o cenário de guerra, embora admita que existem mais nestas circunstâncias. “Temos noção de que são mais por partilhas que têm feito connosco. Apontava para mais de 20 casais”, diz Joana Freire, membro desta associação, ao mesmo tempo que explica que a APF não tem números reais, uma vez que não há uma base de dados que congregue esta informação.
Em causa estão duas realidades: bebés que já nasceram e bebés que ainda vão nascer, sendo que aí a grande incógnita é saber como é que os pais vão ter com os filhos e respetivas gestantes. “Para já não há resposta nenhuma”, assegura, falando em “grandes incertezas” e numa “grande ansiedade”. Freire salienta ainda que nos primeiros dias de guerra houve casais que não conseguiram contactar as gestantes e clínicas que não estavam a dar feedback. Uma comunicação entretanto aparentemente reposta.
Os cinco casais portugueses de que a APF tem conhecimento direto têm em comum o facto de a gestação dos respetivos filhos ainda estar em curso, sendo que há nascimentos para breve, daqui a dois ou três meses: “Não temos data concreta”. A responsável da APF fala em tempos “completamente atípicos” que todos — clínicas, gestantes e casais — estão a viver pela primeira vez. “A pouca (pouquíssima) informação que nos chega pode alterar-se a qualquer momento. É um cenário de guerra, um cenário de incertezas e de constantes mudanças.”
Mas nem todas as histórias são uma incógnita: a 1 de março, já a guerra tinha arrancado, a agência Successful Parents divulgava nas redes sociais a notícia de um casal português cujos filhos gémeos, um rapaz e uma rapariga, tinham nascido na terceira semana de janeiro com recurso a uma barriga de aluguer. Os pais, identificados na publicação pelas iniciais T.S.M e A.T.P conseguiram, com sucesso, retirar os gémeos de solo ucraniano “apenas três dias” antes da invasão russa, voltando para casa “com uma composição familiar maior” após os papéis emitidos pelo consulado português — o Observador tentou contactar a embaixada portuguesa na Ucrânia, mas até ao momento de publicação deste artigo não obteve qualquer resposta. A embaixada ucraniana em Portugal diz não ter qualquer informação.
Por seu turno, Sam Everingham, diretor global da Growing Families, uma instituição de caridade que trabalha com pais que recorrem a barrigas de aluguer, explica ao Observador que está a ajudar dois casais portugueses. No primeiro caso, conseguiu ajudar o casal a trazer os filhos gémeos, nascidos um dia depois de a guerra começar, da fronteira ucraniana para a Polónia. “Foi muito stressante para o casal, eles contactaram-nos em desespero. Da nossa parte, explicámos que documentos precisavam de mostrar.” Everingham recorda como, numa primeira tentativa, à gestante foi dito que não podia atravessar a fronteira, mesmo tendo consigo ambos os bebés. “A gestante estava a viajar com outra mulher grávida e uma senhora da agência.” Os gémeos que nasceram a 25 de fevereiro chegam ao colo dos pais dias depois, a 2 de março, já eles estavam “completamente desesperados”. O outro casal que está a receber apoio ainda está à espera do bebé, cujo nascimento está previsto para 8 de abril. “Vai ser uma situação difícil.”
Bunkers para recém-nascidos e clínicas encerradas: há processos em stand by
Atualmente a trabalhar com 70 casais de 12 nacionalidades, o responsável pela Growing Families confirma que há gestantes em bunkers, sobretudo em Kiev, mas também recém-nascidos, e estima que haja pelo menos 1.000 gravidezes em curso de casais estrangeiros na Ucrânia, tida como o “destino mais popular na Europa para se ir por causa das barrigas de aluguer”.
A 25 de fevereiro, a agência ucraniana de procriação medicamente assistida BioTexCom descrevia as últimas 24 horas como “terrivelmente difíceis” e assinalava as “dezenas de mensagens” que estava a receber dos clientes, de “amor” e de “muita preocupação”. Numa tentativa de acalmar a comunidade, garantia também que as gestantes a viver em Kiev já tinham chegado ao bunker e que, por isso mesmo, estavam “protegidas”. “As mulheres que moram noutras cidades estão reunidas com as famílias dentro dos abrigos antiaéreos.” No post, a agência assegurava também ter planos de evacuação para lugares mais seguros e que, mesmo com medo, continuaria a fazer o seu trabalho. Dias antes, publicava um vídeo no Youtube a simular a vida num bunker capaz de dar guarida a 200 pessoas, fazendo inclusivamente uma tour pelo espaço subterrâneo — do kits de primeiros socorros às máscaras de gás, passando pelo sacos de cama de padrão militar e pelas prateleiras carregadas de comida juntamente com fraldas e afins.
Com a guerra, todos os processos de preparação, da criação de embriões à escolha de gestantes, estão suspensos uma vez que as clínicas permanecem encerradas, esclarece a agência “New Hope – Nova Espero”, que fala da sua própria experiência. Não é uma clínica médica, mas antes uma entidade que providencia serviços associados à gestação de substituição — desde fazer o match entre a gestante e o doador de óvulos, a preparar a documentação necessária de acordo com as leis ucranianas. Em carteira, tem cerca de 15 processos de transferência de embriões em stand by e assegura que o melhor a fazer é optar pelo “armazenamento correto e seguro dos biomateriais”. A agência que trabalha com clientes da Alemanha, Bulgária, França, EUA, Reino Unido, Índia e China esclarece ainda que, de momento, conta com oito gestantes grávidas, as quais foram realojadas em regiões seguras da Ucrânia ou saíram do país. Os clientes, diz Sergey Glushchenko, são afetados diretamente “porque não podem viajar para a Ucrânia para virem buscar os bebés.”
O sonho de Anabela e Alexandre que a guerra suspendeu
O desejo de Alexandre e de Anabela está em suspenso por causa da guerra. Em 2020 deram início ao processo de gestação de substituição na Ucrânia e em abril do ano seguinte formalizaram o contacto. Infelizmente, dizem ao Observador, não chegaram “à parte da gravidez”. “Fomos à Ucrânia quatro vezes. A última foi quando finalmente tivemos material válido para uma possível gravidez. Entretanto, a Rússia invadiu a Ucrânia.” Na segunda-feira antes de a guerra começar, o casal fez o último pagamento. “Ficámos por aqui, com o material lá e nós cá, sem grandes avanços”, lamentam. O casal nunca perdeu contacto com a agência e sabe que os dois óvulos continuam a ser monitorizados, só não sabe até quando vão estar preservados. E já não conseguem garantir se os mesmos estão ou não em Kiev.
“Não temos dúvidas que estamos a lidar com pessoas muito sérias, mas infelizmente eles não podem fazer mais. Estão a lutar por sobreviver.” Ao todo, Alexandre e Anabela — que estão no mesmo grupo de Whatsapp que os restantes casais portugueses — já gastaram cerca de 28 mil euros, dinheiro que não sabem se vão conseguir reaver, até porque no contrato assinado existe uma cláusula que assegura que o mesmo fica sem efeito em caso de “força maior”, e a guerra é um dos exemplos. Mas também a mudança de regime ou de legislação — e o que acontece se, perante o movimento de refugiados a que o mundo assiste, alguns bebés nascerem fora da Ucrânia?
O Observador questionou o MNE sobre o assunto e até ao momento de publicação do artigo não obteve resposta. No entanto, ao Expresso uma fonte assegurou que o MNE está a estudar uma “solução excecional” para casos em que as gestantes estejam dispostas a vir para Portugal — o contrato que os casais assinam com as agências ucranianas não é válido em Portugal, sendo que, na Ucrânia, a gestante renuncia ao bebé imediatamente após o parto e a criança é depois registada na embaixada de Portugal em Kiev.
Liliana: “Todos os dias lhe mando mensagens de manhã. Devo tudo àquela mulher”
Os gémeos nasceram em 2019, no dia de aniversário da mãe. Antes da guerra, Liliana foi mais uma portuguesa a procurar a solução para a infertilidade na Ucrânia. O processou começou anos antes, em 2016, quando viajou pela primeira vez para o país que agora está a ser invadido para assinar os primeiros papéis e escolher a gestante. “Fazemos a escolha por fotografias. Ficamos a saber se são casadas ou separadas. Lá é obrigatório já terem tido filhos”, explica ao Observador. Foram muitas as tentativas após a recolha do material genético do casal para a fecundação — ao início nem tudo correu bem e Liliana recorda como conheceu casais, cujos processos se desenrolaram mais depressa, sem problemas. Quando as crianças estavam finalmente para nascer, o casal português foi novamente convidado a voltar à Ucrânia, onde Liliana conheceu a sua gestante, o que “raramente acontece”. “Só quando realmente há vontade de a conhecer, porque, por norma, as pessoas não querem criar afeto.”
Três anos após o nascimento dos gémeos, Liliana não esquece o que aquele país lhe deu e segue a guerra com o coração apertado: “Graças a Deus tenho cá os meus filhos. Vou agradecer sempre à Ucrânia por ter dado o melhor da vida”. Vai recebendo algumas informações de casais que têm as gestantes em solo ucraniano e diz não conseguir conjeturar o nível de frustração e desespero: “Ninguém imaginaria que iam entrar em guerra. Não consigo imaginar a situação que possa ser.” Também ela angustiada, garante que criou laços na Ucrânia e que tem contactado regularmente a gestante: “Todos os dias lhe mando mensagens de manhã. Um dos filhos dela é maior de idade e alistou-se. O marido também por causa da lei marcial. Devo tudo àquela mulher.”
A mulher que carregou os gémeos de Liliana durante nove meses não quer sair do país de origem. Ainda assim, a portuguesa não tem dúvidas: se precisar de ajuda, não vai hesitar. “Já lhe disse que a porta da minha casa está aberta.”
Maria quis acolher as mulheres que carregaram a primeira e a segunda filha
Postura semelhante é a de Maria — a filha de 21 semanas tem uma irmã mais velha que também nasceu através de uma “barriga de aluguer”. Perante o risco de vida caso engravidasse, e depois de falhado o plano inicial de adotar em Portugal, a portuguesa escolheu a Ucrânia para recorrer à gestação de substituição. A primeira filha tem já mais de um ano: a meio da gravidez o mundo estava no olho do furacão da pandemia, mas, apesar da preocupação, tudo acabou por correr bem. Mais imprevisível é a chegada da segunda bebé.
“No primeiro dia [da guerra] contactámos a agência e disponibilizamos logo alojamento para todos, para a gestante atual e para a anterior. Sabemos que ela está bem e em segurança, soubemos pela agência”, conta.
Em Portugal, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou no final de novembro de 2021 a alteração ao “regime jurídico aplicável à gestação de substituição”, alterando a lei que regula a procriação medicamente assistida. O diploma em causa sofreu uma alteração depois de a gestação de substituição ter sido aprovada na Assembleia da República, nesse mesmo mês de novembro, com votos a favor de PS, BE, Iniciativa Liberal, PAN, PEV e da deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira. Apesar de publicada em Diário da República, com o início da aplicação previsto para 1 de janeiro de 2022, a nova lei ainda não foi regulamentada.
São muitos os casais que continuam a procurar soluções lá fora, em particular na Ucrânia. Tanto a Successful Parents Agency como a BioTexCom — que o Observador tentou contactar, embora sem sucesso — são nomes já conhecidos da APF. São representativas de um negócio bastante maior, sendo que há várias clínicas que disponibilizam estes serviços. Do que a associação tem conhecimento, os tratamentos em causa podem variar entre os 30 mil e os 50 mil euros, dependendo do pacote que o casal beneficiar. Alexandre e Anabela explicam que há uma vasta e essencial etapa burocrática para iniciar o processo de gestação de substituição na Ucrânia: “Temos de ser casados e dar provas de que não podemos ser pais. Tivemos até de apostilar a nossa certidão de casamento. Foi um pouco burocrático, mas muito rápido.”
Não é certo o número de nascimentos por ano naquele país, mas a publicação The Atlantic aposta em talvez 2.500. Se dúvidas houvesse, a Ucrânia é um “hub internacional” no que às barrigas de aluguer diz respeito, sendo procurada por pessoas de diferentes nacionalidades — Estados Unidos, China, Alemanha ou Austrália, além de Portugal — que procuram o país para aí encontrar uma mulher capaz de gestar os seus filhos. Mas há regras a cumprir: os casais têm de ser heterossexuais e casados, e têm de ter um motivo médico para necessitar da gestação de substituição. Até à guerra começar, as barrigas de aluguer eram comuns na Ucrânia: pagar-lhes era legal e o processo aparentemente simples.