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Outubro de 2020: a pandemia do novo coronavírus faz desta ModaLisboa uma edição histórica. Com todos os desfiles a acontecerem na rua — mais de 20 distribuídos por quatro dias –, uma assistência reduzida a um máximo de 200 pessoas, para as quais usar máscara não é facultativo mesmo estando ao ar livre, a transmissão de todos os conteúdos em canal digital e uma dispersão estratégica dos diferentes palcos do evento pelo Parque Eduardo VII, o evento, que conta com quase 30 anos de história, vê-se alinhado com as grandes plataformas internacionais.
Em Nova Iorque e Londres, mas sobretudo em Milão e Paris, vimos o engenho e a criatividade serem postos ao serviço de um setor que quer prosseguir a todo o custo. O poder do livestreaming não anulou a magia das locations. Foram montados cenários e escolhidas paisagens soberbas — do rooftop de Manhattan ao palácio renascentista italiano, passando pelo encantador bosque inglês.
Em Lisboa, moda e cidade compõem agora um postal único. Depois da Linha d’Água e do Jardim Amália Rodrigues, esperam-se desfiles na Estufa Fria, no miradouro do parque e no Jardim Carlos Lopes, já bem mais perto do quartel-general, onde centenas de pessoas (ainda que o número também tenha sido reduzido) trabalham para que o evento seja possível. Algumas permaneceram incrédulas até às vésperas, a achar que pôr a fashion week de pé não seria possível em condições tão adversas, outras respiram de alívio com um teste negativo na mão.
Outrora lotado por um caos cheio de vida, os bastidores da ModaLisboa parecem agora laborar sob uma dormência imposta. Organização máxima, espaço a triplicar e distância, a palavra que se tornou tão corrente como os verbos vestir, correr, pentear e maquilhar. “Parece que não está a acontecer aqui nada”, ouve-se numa conversa de ocasião. “Não vai haver aquela adrenalina”, escuta-se mais à frente. Há poucas exceções ao uso obrigatório de máscara, litros e litros de desinfetante à disposição e uma já natural hesitação no toque. Por muito multissensorial que a moda seja, por enquanto, terá de se habituar a isto.
O triplo do espaço, zero trocas de roupa e mais de 200 testes
Sem as equipas de produção, de aderecistas, coordenação de bastidores, cabelos e maquilhagem, além dos próprios manequins, a ModaLisboa não é possível. A estrutura, sempre montada longe do olhar do público, mais do que valiosa é essencial, razão pela qual os primeiros esboços para assegurá-la, mesmo no contexto de uma pandemia mundial, surgiram no final de abril. “Na edição passada, já tivemos um pequeno primeiro embate com o vírus. Esta edição requereu um trabalho muito mais cirúrgico”, começa por explicar Inês Bandeira Guimarães, diretora de produção.
Fala dos bastidores como uma das áreas de risco dentro do evento — um espaço invariavelmente fechado, onde diferentes equipas se cruzam e algumas tarefas exigem um contacto físico próximo. Vestir e despir manequins, pentear e maquilhar violam qualquer distância de segurança e, no caso das duas últimas, obrigam mesmo os modelos a tirar a máscara. O desafio de minimizar riscos passou assim por aumentar o espaço.
“Fizemos um trabalho exaustivo no estudo da lotação. Estes bastidores têm o triplo da área habitual — são cerca 1.200 metros quadrados, por onde, numa situação normal, poderiam passar à volta de 3.000 pessoas. Neste caso, não poderá ir além das 350”, explica Inês, que também foi uma das responsáveis pela produção da Feira do Livro.
Dentro do Pavilhão Carlos Lopes, o espaço agora ocupado pelos gabinetes — salas reservadas aos designers e às suas coleções –, mas também pelo catering é o mesmo que, durante várias edições, albergou a sala de desfiles e ainda todo o aparelho de bastidores. Um espaço amplo e imenso, um tanto ou quanto inóspito, planeado para possibilitar distância. “Não se esqueçam das luvas”, exclama uma das assistentes de coordenação. O alerta é dirigido à equipa de aderecistas, profissionais cuja única tarefa é ajudar os manequins a vestir e a despir a roupa do desfile.
“Está tudo mais relaxado”, desabafa Sofia. Tem experiência no trabalho, mas é a primeira vez que desempenha a função na ModaLisboa. “É uma modelo por coordenado. Antes, havia sempre uma manequim ou outra que tinha de trocar [a meio do desfile], então era aquele stress dela a correr e de nós a vesti-la para ir direta para a passerelle outra vez”, explica. A lei do coordenado única foi implementada nesta edição, tudo porque a pressa é, regra geral, pouco amiga da cautela.
Mariana e Margarida compõem o trio que encontrámos à conversa durante um dos tempos mortos do primeiro dia de desfiles. “O pior é ter de usar luvas, sem dúvida. Tira-nos um bocado a sensibilidade”, admite a segunda, desvalorizando o incómodo causado pela máscara. “Elas têm aquele medo de se apoiarem em nós, precisamente por causa da questão do toque. Mas acho que é normal. Algumas perguntam-me se lido bem com isso, claro que sim”, partilha Mariana.
Parte desta confiança vem precisamente dos testes. Através de uma parceira com o Synlab, foi possível à ModaLisboa testar mais de 200 pessoas, todas as que aqui estão contratadas diretamente pela organização do evento. Mas há exceções, entre elas manequins internacionais, que ainda assim são obrigadas a apresentar declarações em como foram testadas recentemente, e as equipas dos próprios designers (também estas sofreram limitações — de comitivas que chegavam às 20 pessoas, passaram a poder trazer, no máximo, quatro e mais seis manequins extra). Durante a última semana, o processo obrigou a substituições de última hora, depois de alguns profissionais terem testado positivo.
Cabelos, maquilhagem e a dança da máscara
Tira a máscara, põem a máscara. Não há volta a dar — algumas coisas só se fazem de cara destapada. O desafio é grande sobretudo para a ala da maquilhagem, uma sala independente situada num dos átrios do pavilhão. “Está tudo calmo. Somos menos, também porque há menos manequins. Vamos desinfetando os pincéis e o material que usamos e, claro, sempre de máscara”. A explicação é de Sara, maquilhadora a integrar pela segunda vez a equipa de Antónia Rosa para a ModaLisboa.
O novo normal traz regras específicas. O grupo, também ele testado, mantém-se inalterado durante os quatro dias de desfiles e ninguém roda, cada profissional mantém a sua zona de trabalho do princípio ao fim. Isso e uma fixação extra na maquilhagem. Segundo Antónia Rosa, os batons são à prova de máscara — texturas mate muitas vezes com um acabamento que usa pó translúcido para tornar a cor mais resistente. Ainda assim, o foco está nos olhos. A pele é deixada mais natural, os maquilhadores limitam-se, na maioria dos casos, a corrigir imperfeições localizadas. No final, a máscara volta ao sítio.
Também os cabeleireiros foram instalados numa sala à parte — uma equipa excecionalmente reduzida, sob a orientação de veterana Helena Vaz Pereira. Feitas as contas, o Pavilhão Carlos Lopes está transformado num gigante complexo de bastidores com as diferentes áreas mais afastadas do que em qualquer outra edição. À semelhança das restantes equipas, as máscaras descartáveis são trocadas de quatro em quatro horas. Também as zonas de espera foram aumentadas. Dúvidas houvesse, distância é mesmo a nova palavra de ordem.
Desfiles no parque, manequins à solta
“Isto está super estranho, tudo muito calmo e silencioso”, exclama Catarina. É manequim e está longe de ser novata nestas andanças. Acaba de recusar uma proposta de trabalho nas Canárias. No pavilhão, está em território de confiança, mas ainda cedo para ir para fora. “Para já, não me sinto muito confortável”, justifica. É uma das que, inicialmente, cede à tentação do toque, embora muitos dos abraços acabem por ficar no ar. “O mais estranho é não nos podermos abraçar. Há pessoas com quem estou com alguma frequência, são meus amigos, é diferente. Outras só vejo de seis em seis meses e com essas não dá para sentir aquela proximidade. Mas já é bom conseguirmos fazer, achei que não ia ser possível”, remata.
Mas há dinâmicas que permanecem intactas. Equipas e manequins chegam horas antes do primeiro desfile. Há tempo para provas com os designers, outro dos momentos que, ocasionalmente, pode justificar a ausência temporária de máscara. O line-up, formação dos modelos pela ordem com que entram na passerelle, faz-se mais cedo. Com os desfiles a acontecer a mais de meio quilómetro daqui, há que sair mais cedo para chegar a horas. “Temos carrinhas para transportar os manequins, mas alguns designers preferem que eles venham a pé para não amarrotar a roupa”, explica rapidamente um dos assistentes envolvido no processo.
A surpresa é geral, sobretudo para os transeuntes (alguns deles turistas, porque já começa a havê-los). Pelo próprio pé e pronto para o desfile, o casting sobe o Parque Eduardo VII. É caso para dizer que, antes de chegarem à passerelle, as tendências para o próximo verão já saíram à rua. À chegada, são dados os retoques finais numa boca de cena improvisada, por vezes, à beira da estrada.
Na assistência, os lugares não vão além dos 200, além dos mirones que, à distância, param para ver passar as modas. Na era do distanciamento, mais mais aberta à cidade do que nunca, a ModaLisboa viu nos desfiles ao ar livre a única solução para manter o seu lugar no calendário. “Começámos por pensar esta edição a partir dos constrangimentos, mas sempre a pensar em como íamos comunicar um setor tão importante como o que representamos, o da moda portuguesa de autor. Mas foi sempre muito claro que íamos fazer tudo na rua, porque, durante o confinamento, os momentos de maior liberdade que tivemos foram ao ar livre”, afirma Eduarda Abbondanza, presidente da ModaLisboa.
O tempo não podia ter cooperado mais — certamente que os termómetros atingiram uns generosos 30 graus ao sol ao início da tarde de quinta-feira, o primeiro dia de desfiles. Para a eventualidade de chover, Eduarda diz que já tinha o plano b no telemóvel, pronto a rumar às redes sociais: uma fotografia do desfile da Kenzo, em Paris, há mais de uma semana — o cenário era fresco e verde, os convidados assistiram a tudo de guarda-chuva aberto.
“Gerir o público foi o mais desafiante”, afirma Inês Bandeira Guimarães. Sábado e domingo abrem-se as exceções à regra com a abertura do espaço Resort, onde decorrem as apresentações de cinco jovens designers, inseridas no programa Workstation, mas também a apresentação de Olga Noronha, o anúncio dos finalistas do concurso Sangue Novo e duas conferências, marcadas para as 15h e as 15h30, respetivamente. A primeira reúne Raquel Strada, Branko, Gisela João e Marta Gonçalves, designer da Hibu, em torno da relação entre moda e entretenimento. A segunda contará com Joana Astolfi, Filipe Faísca e Paulo Gonçalves, da APICCAPS, a falar sobre o saber-fazer português.
Os espaço terá 6.500 metros quadrados e poderia levar entre 20 e 25 mil pessoas, segundo explica Inês. Mas os tempos são outros e este Resort não irá além de uma lotação máximo de 500 visitantes. Será necessário fazer um registo prévio e, mesmo estando ao ar livre, o uso de máscara é obrigatório. A ideia de que a moda está a ser vista ao longe é ilusória. Em tempo de pandemia, e limitados na socialização, a verdade é que nunca a tivemos tão perto.