Mal se lhe via a cara na escuridão. Só o lume do isqueiro com que ia acendendo os cigarros quase incessantemente e a luz do telemóvel que não parava de tocar mostravam, por segundos, as expressões do seu rosto. É “a filha do senhor que lá está” — lá, soterrado no poço da pedreira a cerca de 200 metros dali, onde esta segunda-feira desabou um troço da Estrada Nacional 255, entre Vila Viçosa e Borba. A mulher, com pouco mais de 30 anos, é uma das poucas pessoas que permanece junto ao agente da GNR — por vezes juntam-se dois — que fixa o limite a partir do qual ninguém pode passar, além das autoridades. A “a filha do senhor que lá está” vai ficando junto a esse agente, como se aguardasse um milagre.
Além daquele limite, os terrenos são instáveis e ir até lá é um risco. Grandes volumes de terra e blocos de mármore continuam a deslizar e a cair. O barulho que os pedregulhos fazem ao atingir a água da chuva que ali se acumulou ecoa por toda a pedreira. A escuridão também não facilita as operações de buscas e resgate. “É um desafio tremendo em termos de operações de resgate”, alertou José Ribeiro, comandante do Centro Distrital de Operações de Socorro (CDOS) de Évora, numa conferência de imprensa realizada ao início da noite desta segunda-feira.
Várias ambulâncias, carros dos bombeiros ou do INEM avançam em direção ao clarão dos holofotes que iluminam as operações ou de lá vêm. Numa direção ou noutra passam, sem saber, pela “filha do senhor que lá está”, no poço da pedreira. Espera alguma notícia, embora saiba que o pai é uma das duas vítimas mortais já confirmadas — uma natural de Bencantel e outra de Pardais, freguesias do concelho de Vila Viçosa. São os dois corpos que são possíveis observar do topo da pedreira — um deles, dentro da retroescavadora onde seguiam.
Eram operários da pedreira — o maquinista da retroescavadora e o auxiliar — e exploravam o local quando foram atingidos por um “deslizamento de massa”, com “um grande volume de terra” e “uma quantidade significativa de blocos de mármore”, segundo explicou o comandante José Ribeiro. A restroescavadora onde seguiam os operários da pedreira permanece no fundo do poço, completamente esmagada pelas pedras.
As famílias das duas vítimas já foram informadas. À saída do edifício da autarquia, os gritos e o choro da mãe que acabara de perder um filho e da mulher que acabara de perder o marido substituíam o silêncio da cidade, que até ali só tinha sido cortado pelos sinos da igreja. Estiveram na Câmara Municipal de Borba durante várias horas a receber apoio psicológico do INEM. Pouco antes das 23h00 foram encaminhadas para as suas casa depois de a equipa ter considerado que estavam estáveis. Poderão ter de esperar dias — “provavelmente semanas”, segundo o comandante José Ribeiro — para poderem velar o corpo dos familiares.
Em Borba, estão “mobilizados todos os meios necessários para resgatar as vítimas com toda a segurança”, garante o secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves. Chegou a estar no local um helicóptero do INEM. A operação é “complexa”, diz José Artur Neves. “Tratou-se de um arrastamento de uma grande massa de solos com mistura de pedras, que resvalou sobre um poço com cerca de 200 mil metros cúbicos de água, cheios de rochas”, explica.
O alerta foi dado pelas 15h45. Desde aí e apesar de, a certa altura, se ter admitido a possibilidade de parar as buscas e as retomar ao nascer do sol, as operações não pararam. A prioridade é retirar as duas vítimas “que é possível observar”, segundo o comandante do CDOS. Mas a tarefa está a ser dificultada pela instabilidade dos terrenos, que não permitem que os operacionais desçam em segurança. “Serão operações muito morosas, muito delicadas, em que cada decisão e ação terá que ser bem calculada, ponderada e validada, sob pena de pormos em risco os próprios operacionais que estão no terreno”, explicou o comandante José Ribeiro.
Além das duas vítimas mortais, as autoridades admitem que haverá, pelo menos, quatro pessoas desaparecidas, que seguiam em duas viaturas — um veículo ligeiro e uma carrinha de caixa aberta — que, até ao momento, não serão visíveis. As vítimas terão sido arrastadas para o fundo da pedreira com o deslizamento de terras e lá permanecerão submersas na água da chuva que se acumulou.
Os familiares da única pessoa dada oficialmente como desaparecida também estiveram na Câmara Municipal de Borba esta noite de segunda-feira a receber apoio psicológico. É a família de um homem que estaria a passar naquela zona, numa carrinha cinzenta carregada de azeitonas, na altura em que o acidente aconteceu. Não deu sinais, desde então. O telemóvel toca mas ninguém atende. A família do homem também foi para casa — esta, carregada de esperança e à espera de um milagre.
Ao final da noite desta segunda-feira estava a ser retirada a água da pedreira — operação que poderá demorar dias — para permitir que sejam localizadas outras eventuais vítimas. Para esta terça-feira, para as “primeiras horas, assim que as condições o permitirem”, será realizada uma “avaliação criteriosa daquilo que são as operações e as manobras que podem ser executadas”.
A par das operações começará já a ser feita “uma avaliação técnica” e “criteriosa” sobre o que poderá ter causado este aluimento, embora o secretário de Estado tenha dito que “este não deve ser o momento para estar a avaliar”. “Estamos numa operação de proteção e socorro”, disse, acrescentando: “As causas naturalmente serão investigadas, averiguadas”. Até lá e por enquanto, a cidade aguarda em silêncio. O presidente da Câmara Municipal de Borba, António Anselmo, disse estar de “consciência tranquila” em relação àquilo que nega ser uma “tragédia anunciada”. “Quando morre alguém dói muito, quando morre alguém da minha terra ainda me dói muito mais”, disse, em conferência de imprensa.
Da retroescavadora à operação de resgate. As imagens da estrada que ruiu entre Borba e Vila Viçosa