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Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Artur Bordalo, que assina como Bordalo II, nasceu em Lisboa em 1987

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Artur Bordalo, que assina como Bordalo II, nasceu em Lisboa em 1987

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Bordalo II: "Uma obra minha na casa de um político iria irritá-lo mais a ele do que a mim"

É inaugurada no próximo dia 8 de outubro a exposição "Evilution". Em entrevista ao Observador, o artista fala de política, alterações climáticas, de novos materiais e mudanças de vida.

Artur Bordalo chega aos armazéns do número 19 da Avenida Marechal Gomes da Costa em Lisboa com umas calças pintadas, mãos sujas, marcas de quem ainda não parou um segundo. São 10h30, o trabalho de montar a sua nova exposição, “Evilution”, com peças inéditas, está prestes a terminar. Faltam colocar algumas obras, uns quantos detalhes, mas o percurso está mais do que definido. Artur Bordalo, Bordalo II como é conhecido, parece um homem transformado. Não no sentido de pessoa que vira a vida dos pés à cabeça, deixa o trabalho de escritório e vai para as Bahamas tratar de tartarugas. Em vez disso: um artista que teve de tirar o pé do acelerador para se refocar. “Nos últimos anos mudei bastante. Trabalhava dia e noite, não parava. Agora levo a vida de outra forma. Essa mudança foi fruto da Covid-19, de mudanças drásticas, de problemas de saúde por causa do excesso de trabalho. Essa grande produção estava a gerar obra, mas a destruir-me”, conta em conversa com o Observador.

Nesta entrevista, fala das constantes preocupações ambientais e de sustentablidade, fruto de um “egoísmo coletivo” que parece ter vindo para ficar, mesmo que agora a palavra “sustentabilidade” esteja na publicidade e no discurso político. A sua visão crítica, que muitas vezes pode ser entendida como radical, já o levou a ser convidado por movimentos e partidos políticos, mas nunca aceitou. Não acredita em utopias, nem mesmo as que levassem a pessoas com rendimentos mais baixos a conseguirem comprar uma obra sua. E também não percebe como é que as gerações mais velhas não percebem “o planeta que vão deixar”: “As pessoas habituam-se a fazer as coisas de uma dada forma, alguém diz que está errado, o pessoal não quer saber. Quem vier atrás que feche a porta. E eu interrogo-me: então as pessoas querem ter filhos para quê? Que mundo é que deixamos aos que ficam cá? Os mais velhos deviam pensar nisso”, desabafa.

“Evilution” abre portas, de forma gratuita, no próximo dia 8 de outubro e pode ser visitada até dia 11 de dezembro, no Edu Hub Lisbon. Bordalo II apresenta aqui peças inéditas com materiais novos que foi recolhendo, quer em Portugal quer no estrangeiro, num contínuo trabalho sobre o desperdício humano. Vai ser possível também ver uma séria específica que foi desenhada durante a pandemia — e que envolve um documentário — mas também revisitar ouras como Smalltrashanimals Bigtrashanimals. Um homem em evolução num “mundo em desenvolução” que quis voltar às raízes, à rua, aos tempos do graffiti. “Andámos para trás, especialmente na pandemia. Parei para pensar de onde é que vim. Voltar atrás, mas não ao ponto de partida. É como os filmes dos anos 70/80, em que o pessoal imaginava que o futuro seria algo diferente. Aqui é ao contrário: voltamos ao passado, mas o passado é diferente do que realmente foi”, diz.

Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Por vezes, vejo um objeto, tem potencial, é difícil usá-lo logo, mas pode fazer parte de um conjunto. O processo é muito orgânico, pode começar num ponto e acabar noutro"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Fala de uma evolução do seu trabalho nesta exposição. Em que é que o uso de novos materiais interferiu no seu método?
Evoluir, enquanto artista ou criativo, é sempre necessário. Inventar uma forma e explorá-la eternamente é muito redutor, é uma castração. Sempre quis fazer coisas diferentes. Ao longo do tempo, tenho olhado para materiais e vejo que pode ser agregado a um conceito forte para ser trabalhado. No entanto, não sei como o usar, por isso, vou guardando alguns desses materiais até que surja uma ideia. Por vezes, vejo um objeto, tem potencial, é difícil usá-lo logo, mas pode fazer parte de um conjunto. O processo é muito orgânico, pode começar num ponto e acabar noutro, posso não ter uma solução mas, no final, quando já testei uma ou outra vez, encontro essa solução.

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Quando é que surgem esses momentos? Há artistas com mecanismos concretos.
É viver. Se estivesse fechado em casa era mais difícil ter ideias. Por exemplo, algo que é muito estimulante é entrar em sítios abandonados, onde as pessoas não andam. Os ambientes desses espaços criam-se de forma independente e encontra-se algo na organização ou desorganização que a natureza deu ao espaço. Tudo o que o tempo dá ao espaço. É muito inspirador.

Vai apresentar novas peças e, sem querer revelar muito, deu a entender que teremos uma representação de algo que aconteceu durante a pandemia: a recuperação de espaços por parte dos animais.
Um dos espaços na exposição é exatamente uma reintrepretação desse facto: ter a natureza e os animais a recriar a selva num espaço do qual, outrora, já fizeram parte. Só que já não fazem porque nós, seres humanos, ocupamos tudo com betão, casas ou automóveis.

"As pessoas habituam-se a fazer as coisas de uma dada forma, alguém diz que está errado, o pessoal não quer saber. Quem vier atrás que feche a porta. E eu interrogo-me: então as pessoas querem ter filhos para quê? Que mundo é que deixas aos que ficam cá? Os mais velhos deviam pensar nisso."

O seu trabalho está, mais do que nunca, ligado às questões da sustentabilidade. Tem sido uma palavra usada tanto pelo lado político como pela publicidade, nos últimos anos. Olhando para o seu percurso, acha que já estamos todos mais conscientes? Acredita que o seu trabalho tem também esse impacto?
Pontualmente, sim. Quando temos uma visita de estudo e percebe-se que os miúdos entendem sobre o que estamos a falar, é bom. É a geração mais nova a perceber o que vai ser deixado. As gerações mais velhas tendem a ignorar, “burro velho não aprende línguas”, já fazem merda desde sempre. Muitas vezes existe um egoísmo coletivo de comodismo. As pessoas habituam-se a fazer as coisas de uma dada forma, alguém diz que está errado, o pessoal não quer saber. Quem vier atrás que feche a porta. E eu interrogo-me: então as pessoas querem ter filhos para quê? Que mundo é que deixamos aos que ficam cá? Os mais velhos deviam pensar nisso. Faz-me lembrar quando pensamos nos nossos antepassados, que foram para África, que mataram, que violaram, fizeram trinta por uma linha e roubaram, olhamos para eles e dizemos: “tu és português, roubaste”, e alguém contrapõe: “espera lá, não tenho nada a ver com o que os meus antepassados andaram a fazer”.

É isso que estas personagens vão deixar para trás. Daqui a uns anos os miúdos vão olhar para o avô e para o bisavô e achar que são uns idiotas. A forma como deixaram o espaço estava completamente errada e eles sabiam. Já não dá para dizer que não se sabe. Oiço falar sobre as alterações climáticas desde que me lembro de existir. Só agora é que se vai falando. Sempre foi um tema de fato e gravata. Fala-se. Mas do falar ao fazer coisas relevantes vai uma distância gigante. Hoje em dia temos mais presente do que nunca que isto é um assunto real. E as pessoas só se preocupam quando lhes toca no pelo, quando têm uma casa de férias e entra água pela janela. Isso é egoísmo. Temos de ter um pensamento coletivo. Já existem problemas de cheias ou de seca extrema em países de terceiro mundo, mas está lá, na televisão.

É uma realidade distante.
É. Como é distante, não interessa.

Já teve esse debate de ideias com responsáveis políticos em países onde estão obras suas expostas?
Muitas vezes é uma relação laboral artística. Mas vamos conhecendo locais, há diferentes pontos de vista e também temos olhos, vemos o que funciona ou não. A verdade é que há países desenvolvidos e subdesenvolvidos que têm problemas mais graves para resolver, de facto. Têm fome, mortalidade infantil, coisas muito mais importantes relativas à sobrevivência. Mas estas questões também o são, pelo menos a médio prazo. Se o mundo está a girar ao contrário e as alterações climáticas são reais, isto é uma questão de sobrevivência. Nós acharmos que a problemática ambiental está em segundo plano no desenvolvimento e sobrevivência das pessoas é errado. Primeiro, temos de ter uma terra estável para viver. Se destruímos isso disso, já não temos estabilidade para viver, nem é em paz, mas com condições.

Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Evilution" pode ser visitada a partir de dia 8 de outubro e até 11 de dezembro, no Edu Hub Lisbon, de quarta a domingo, das 14h às 20h

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Esse espírito crítico tira-lhe espaço mental para criar?
Não, de forma nenhuma. Está tudo ligado. Se tivesse a minha cabeça só a fazer coisas bonitas era só superficial. A partir do momento em que conseguimos comunicar com o público, passamos a ter responsabilidade social. Temos de falar do que interessa. Se há visibilidade, é preciso tocar nos pontos relevantes no mundo. Não é só vender os produtos através do Instagram e ser mais bem pago pelas marcas. É muito pouco. Se podemos fazer de uma mudança ativa, não há nada mais gratificante do que isso.

Voltemos à exposição. Onde é que encontrou estes novos materiais?
A maior parte dos materiais foram encontradas em Portugal. Por exemplo… ah!, não posso dizer…

Não quer fazer revelações ainda, portanto…
Sim… Por exemplo, estava a cozinhar uma ideia há algum tempo, mas não sabia como executá-la. Fizemos uma viagem durante a qual recolhemos muito material repetido, existe uma organização obsessiva nesta exposição. E encontrámos, havia muito, fazia sentido usá-lo. Estava tudo na praia, em todo o lado, levantávamos uma folha de bananeira e encontrávamos. Trouxe uma mala cheia. Mas foi simbólico. O resto tínhamos cá.

O seu método mudou com estes novos materiais?
Sim, sem dúvida. Até os designs, a forma como tudo é organizado. A forma como corto, como fixo o material, como organizo a equipa para me ajudar a construir a peça, para não ter o peso todo em cima de mim.

Porque é que queriam fazer esta exposição sem ser num museu? É preciso apostar mais na arte pública?
Não tem só a ver com a ideia de as peças funcionarem num espaço da cidade. Não se paga para ver esta exposição, é muito importante. É um incentivo à cultura, puxar as pessoas, não é para impingir. O dinheiro, infelizmente, é sempre uma barreira. Da mesma maneira que aqui toda a gente pode vir ver, e que a cultura é um pilar importante de uma sociedade sustentável, ao trabalhar num espaço público estamos a dar a hipótese das pessoas verem arte sem terem de se deslocar. Mata-se a preguiça. O espaço público têm imenso potencial de chegar ainda a mais pessoas do que o que está num museu ou numa coleção privada. Aqui até brincamos com isso. Normalmente, um artista começa na rua, ganha reconhecimento, começa a trabalhar no exterior. O trabalho acaba por ser metido “lá dentro”, a parte da rua perde-se, transforma-se em algo institucionalizado. Aqui fizemos o processo inverso: já se convencionou que as peças vão ter o seu valor de coleção, mas andámos a passear com elas pela cidade… já estou a falar de mais…

"O mundo mudou assim tanto? Talvez, mas para pior. Para uma evolução de "evil", como diz o nome da exposição. Acho que o Artur dessa altura não estaria na mesma sintonia daquilo que faço nos dias de hoje. Era muito quadrado em relação à maneira de intervencionar na rua. É bom sinal. Quer dizer que evoluí."

As peças foram então para a rua primeiro?
Sim.

Porquê?
Estiveram num determinado momento muito específico, com um objetivo. Mas também é uma retrospetiva da minha vida enquanto artista, pintava muito na rua, pintava graffiti. Não quero dizer que era arte, era o que era. Um hobby, exploração artística e urbana, trabalhei a noção de escala, ter visão onde as obras funcionam. Deu-me ferramentas úteis para o trabalho que desenvolvo hoje. Andámos, portanto, para trás, especialmente durante a pandemia. Parei para pensar de onde é que vim. Como é que eu hei de explicar… é voltar atrás, mas não é voltar ao ponto de partida. É que já não estou a pintar na rua.

É outra pessoa.
Sim. Tenho outra perceção, tenho outros meios que não tinha. É um “retrofuture”, como os filmes dos anos 70/80, em que o pessoal imaginava que o futuro seria algo diferente. Aqui é ao contrário: voltamos ao passado, mas o passado é diferente do que aquilo que realmente foi. É essa a lógica.

Façamos essa retrospetiva futurista. O Artur dessa altura ficaria desiludido com o mundo que existe?
Boa questão. O mundo mudou assim tanto? Talvez, mas para pior. Para uma evolução de “evil”, como diz o nome da exposição. Acho que o Artur dessa altura não estaria na mesma sintonia daquilo que faço nos dias de hoje. Era muito quadrado em relação à maneira de intervencionar na rua. É bom sinal. Quer dizer que evoluí, espero eu.

Essa evolução artística também é feita de forma involuntária?
Sim, não se pode definir o que vai acontecer. Se for atropelado quando sair desta entrevista e tiver uma recuperação difícil, se tiver uma vida que não era igual à que tinha, vou dar valor a imensas merdas às quais não dava valor nenhum. O dia a dia, a experiência sensível, é o que faz com que mudemos enquanto pessoa.

Essa sua consciência ativa que transporta para o trabalho, no dia a dia, levou-o a mudar o quê? A nível artístico e pessoal.
Desde quando para quando?

Desde o momento em que Bordalo II começou a ser um nome conhecido.
Muda muita coisa. Até a nível artístico. Acho que nos últimos anos mudei bastante. Eu, por exemplo, trabalhava dia e noite. Não parava, quaisquer que fossem os objetivos. Hoje em dia levo a vida de outra forma. Entendo que ter um horário de trabalho mais regrado, não trabalhar milhões de horas — e atenção, gosto muito de trabalhar — dá-me tempo para testar e fazer coisas novas. Era um objetivo que tinha há muito tempo. Em vez de estar a fazer cinquenta milhões de murais das séries que sei que funcionam, se calhar faço menos e sobra-me tempo para explorar. Se o tiver, chego a outras séries e cenas novas.

Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Se for só um trabalho superficial mais gente vai parar, mas não tem sumo. Então tem de se arranjar um equilíbrio, para fazer um trabalho interessante, fazer algumas pessoas parar e pensar"

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Esse descanso e esse tempo de reflexão, encontrou-os sozinho?
Foi fruto dos covids-19 da vida, de mudanças drásticas, de problemas de saúde que vieram pelo excesso de trabalho. Foi um conjunto de coisas que me estavam a levar a uma autodestruição. Essa grande produção de trabalho… estava a produzir, mas a destruir-me. Foi uma aprendizagem da vida.

Fez com que perdesse oportunidades de trabalho?
Acho que não. É preciso escolher. Se tem um tabuleiro cheio de comida, não é preciso comer tudo. Escolhem-se os projetos que sejam mais sustentáveis para continuar a carreira, outros porque, não dando prejuízo, não alimentam a máquina, mas podem dar uma satisfação pessoal e visibilidade diferente que é bastante enriquecedora. Enriquecedor não é só alimentar a máquina. É preciso equilíbrio.

Tem esperança de que o seu trabalho, muitas vezes em grande escala, não se fique só pela fotografia do turista?
Era bom não era? Muita gente vai entender e explorar, outras pessoas só vão ter uma experiência superficial. Mas se fizer algo demasiado interventivo, como também faço, por exemplo, numa outra série de trabalhos [“Provocative“], nem toda a gente vai gostar. Mas quem gosta, vai entender. Outras passam para o lado. Não quero deixar de fazer essas peças. Só que para fazer um trabalho mais abrangente, é preciso encontrar um equilíbrio entre aquilo que toca no ponto e o que pode ser agradável à vista. Não é fazer um trabalho pimba, se for só um trabalho superficial mais gente vai parar, mas não tem sumo. Então tem de se arranjar um equilíbrio, para fazer um trabalho interessante, fazer algumas pessoas parar e pensar. Todas é difícil.

[Bordalo II é interrompido]
Desculpe, deixe-me só dizer aqui uma coisa. João, o lago é o dos patos, OK?

Estava a falar desse tal equilíbrio artístico.
Sim. É como conhecer alguém muito bonito mas, porra, não há conversa…

Olhemos para as redes sociais, porque é aí que se passam muitas destas discussões que estamos aqui a ter. Há mais ruído do que outra coisa…
…é cobardia da rede social. Chamam muitos nomes, mas chegamos à rua e baixam as orelhas. É algo mau dos nossos tempos, a falta de interação. Muito facilmente estamos atrás do computador e fingimos que somos maus. Não somos, leva-se um estalo e ficamos com medo do outro. Talvez esse medo que teríamos na vida real faça com que tenhamos alguma humildade. Aí ganhamos um discurso. Se as pessoas se encontrarem cara a cara, com algum receio, isso faz com que haja discurso. A tecnologia permitiu que mais gente fale, mas não da forma correta. Falta a existência física, faz diferença. Afasta-nos da polarização.

"É muito mais fácil ter um discurso medíocre, que dá para ir para a esquerda ou para a direita, conforme vier o dinheiro. É poucochinho. Acho que se ganha com a credibilidade da visão. Quem gosta do que fazemos, dá-nos mais crédito porque tocamos na ferida. Vou estar calado porque posso perder algo com isso? Estamos a perder se não dissermos aquilo que pensarmos."

Era bom que as suas peças também combatessem essa polarização? Gostava de estar mais presente nestes debates? Talvez não chegue só ter as suas peças expostas. O artista também tem de intervir?
Só a obra falar é difícil, precisa de ser contextualizada, nem que seja uma legenda. Se dedicar todo o meu tempo às palestras, não faço arte, e é aí que gosto de gastar o meu tempo. Mas quando tenho oportunidade de falar, seja numa entrevista ou em algo do género, pretendo mostrar a maneira como penso e falo. Não só da cor dos plásticos, não quero ter uma abordagem superficial do meu trabalho. Tenho um espírito crítico, sou contra o machismo, xenofobia e racismo, que ganharam espaço nestes últimos tempos, o que é assustador. Meia dúzia de idiotas que falam, as redes sociais viralizaram essa brutalidade no discurso, parece que as pessoas se esqueceram. É o tal egoísmo coletivo. Como artista, como pessoa com visibilidade, tenho de falar.

[a intervenção de Bordalo II nas conversas TEDx de Aveiro, em agosto deste ano:]

Há artistas que preferem não o fazer.
São cobardes.

Acha que sim?
Sem dúvida. É muito mais fácil ter um discurso medíocre, que dá para ir para a esquerda ou para a direita, conforme vier o dinheiro. É poucochinho. Acho que se ganha com a credibilidade da visão. Quem gosta do que fazemos, dá-nos mais crédito porque tocamos na ferida. Vou estar calado porque posso perder algo com isso? Estamos a perder se não dissermos aquilo que pensarmos.

Já teve convites de movimentos ou de partidos políticos?
Sim.

Aceitou?
Não. Ter uma visão política não me deve filiar obrigatoriamente a um partido político. Para já, um partido em que voto hoje e que defende as coisas certas, não sabemos se não vai haver uma figura que também tinha essas ideias, mas depois está envolvida num escândalo e faz o contrário.

Ou quando ganham poder.
Sim, da esquerda à direita. Já votei em muitos lados diferentes. Não tem mal nenhum. É importante os partidos políticos entenderem que assim é. Votar de um lado ao outro, para não estarem confortáveis. As pessoas são clubísticas. É estúpido. Dá conforto a quem está no parlamento porque se fizer algo errado, está tudo bem. O José Sócrates roubou meio mundo e há quem continue a achar que não por causa dessa clubite. Ou o Isaltino Morais, que foi julgado e volta a ser presidente da câmara. É clubismo e é estupidez. É aquela ideia do “este é mau, mas o outro é pior”. Ou: “vais comer merda líquida ou merda sólida?”. É preciso haver outra hipótese.

Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista com o artista Bordalo II, no espaço onde vai inaugurar a sua nova exposição a 8 de Outubro, com obras inéditas. 4 de Outubro de 2022 Olivais, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No momento da entrevista ao Observador, a exposição de Bordalo II ainda estava em montagem. O artista fez questão que não revelar detalhes antes da inauguração

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Depreendo que seja um homem mais à esquerda, como é que olha para estes últimos sete anos de governação do PS, que já teve o apoio do Bloco de Esquerda e do PCP?
As minhas ideias estão mais à esquerda, há uma ou outra de direita com o qual me identifico. É preciso, outra vez, um equilíbrio. Há muitas ideias à esquerda com as quais não concordo.

Por exemplo?
O controlo da habitação privada. A habitação, neste momento, é um problema terrível. É necessário a intervenção estatal para que seja diferente, mas o Estado não pode definir o lucro. E isto é independente de achar que está errado um tipo ter um Airbnb que podia estar alugado para estudantes e está a fazer numa semana aquilo que podia fazer em dois meses, que para mim está errado, não nos cabe a nós, Estado, estar a limitar como é que isto é regulado. A forma de regularizar a habitação passa pelo Estado ter habitação mais barata. Há zonas pobres em Lisboa que têm imenso património do Estado, a cair de podre há anos. Se a habitação é um problema, se o Estado tem alguma responsabilidade, é preciso ajudar. Não é com os 125 euros de subsídio por causa da inflação. Se o Estado tem, não utiliza e não dá hipótese que seja uma alternativa, não faz sentido.

Mas estes sete anos desiludiram-no ou não?
Há coisas boas, outras más. Este governo teve algumas ideias de esquerda, mas é um centro travesti. No entanto, perante as alternativas, talvez tenha sido um mal menor. Há políticos com zero noção de estado social, que nunca andaram em transportes públicos, que só andaram em escolas privadas. Não sabem como é viver como uma pessoa. No parlamento, defende-se um coletivo, como as pessoas vivem. Mas quando não se sabe como é viver como uma pessoa, não se pode tomar decisões. É como eu agora decidir ser treinador de futebol. Não é a minha cena. Precisamos de personagens do mundo real. Temos alguns que estão no governo ou no parlamento que vivem na lua.

Já teve contacto com Carlos Moedas?
Só tivemos o primeiro contacto agora, uma conversa informal de uma inauguração de uma peça que fiz com a Carris. Não tenho ainda opinião formada. Espero que dê para fazer coisas.

"Aqui na exposição decidimos, pela primeira vez, fazer uma edição de risografias muito grandes, que serão vendidas a 50 euros. Não vou ficar rico, mas qualquer miúdo pode abdicar de uns ténis e comprar algo meu. Não é um original, porque dá mais trabalho a fazer e tem outro valor, mas assim dou um contributo às pessoas."

Por ser de direita não o assusta?
Acho que esta direita ou esquerda central mistura-se muito. Infelizmente, as grandes diferenças que são usadas como matéria de campanha eleitoral depois, no fundo, não são assim tão diferentes. Para o bem ou para o mal.

Não sei se é dado a utopias, mas gostava que fosse possível para pessoas com rendimentos médios/baixos adquirirem uma peça sua?
Não é possível. Aqui na exposição decidimos, pela primeira vez, fazer uma edição de risografias muito grandes, que serão vendidas a 50 euros. Não vou ficar rico, mas qualquer miúdo pode abdicar de uns ténis e comprar algo meu. Não é um original, porque dá mais trabalho a fazer e tem outro valor, mas assim dou um contributo às pessoas.

Já não é tão utópico então.
Nos originais, claro que é complicado. Aí voltamos ao espaço público. Algumas peças não são privadas, não estão fechadas na casa de um colecionador.

Uma última pergunta em jeito de provocação: se visse uma das suas obras em casa de um político, isso irritá-lo-ia?
Acho que iria irritá-lo mais a ele do que a mim. Porque o meu discurso é tão direcionado ao que acredito e não acredito, que me parece que essas personagens não vão querer ter um pedaço de mim nas suas casas.

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