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Cabanyal, o bairro que é uma metáfora espanhola

Ao fim de 24 anos no poder em Valência, o PP foi destronado por uma coligação de esquerda. Um dos bairros da cidade está a recuperar de décadas de abandono, mas está num jogo perigoso para o futuro.

Reportagem em Valência do nosso enviado a Espanha

É impossível não reparar no silêncio que reina no Cabanyal. Ao contrário do resto da cidade, onde o movimento de carros, autocarros e pessoas é constante, neste bairro faz-se silêncio. Aqui, os autocarros não entram, os carros são escassos e as pessoas de fora evitam visitas. Percebe-se porquê, num passeio rápido. Ruas sujíssimas, prédios a cair aos bocados, caixotes do lixo incendiados, espaços verdes quase sem verde. E grupos. Muitos grupos de pessoas espalhados pelas ruas, a não fazer nada, apenas a vaguear ou a vasculhar contentores.

Até há alguns meses, o destino deste bairro estava traçado num sentido que parecia não ter retorno. Para que a maior avenida de Valência pudesse estender-se até ao mar, 1.651 casas do Cabanyal, plantado à beira do Mediterrâneo, tinham de ir abaixo. E milhares de pessoas tinham de sair da zona e ir viver para outro lado qualquer. Demolido o miolo central do bairro, a nova avenida teria torres de escritórios, habitação cara e comércio de luxo. A degradação, a sujidade e sobretudo as pessoas, desapareciam. Tudo mudou com as eleições autárquicas de maio: depois de 24 anos de governação do Partido Popular, a Câmara Municipal de Valência passou a ter um executivo de coligação de esquerdas — e a primeira medida que se aprovou foi parar o plano de demolições no Cabanyal.

A história deste bairro é uma metáfora, uma fábula da Espanha moderna. Mas também pode ser encarado como um prenúncio do que está a acontecer ao país. Nas autárquicas o PP teve mais votos, mas não obteve maioria absoluta e outros três partidos entenderam-se para pôr fim ao reinado da alcadessa que ocupava o cargo quase desde a queda do muro de Berlim. Rita Barberá Nolla foi-se embora e deixou atrás de si um rasto de suspeitas de corrupção, planos megalómanos, obras de utilidade discutível e cofres vazios. Deixou também um Cabanyal em estado de guerra, esquecido e abandonado.

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O Cabanyal num mapa de 1883

Em tempos que a memória já esqueceu, os pescadores valencianos começaram a construir cabanas junto ao mar, que fica relativamente longe do centro da cidade. Pouco a pouco, o bairro cresceu e as cabanas foram sendo substituídas por construções de pedra mais permanentes. Ao mesmo tempo, Valência crescia e ia-se aproximando do Mediterrâneo. Até ao final do século XIX, o Cabanyal era um município autónomo, mas por essa altura a grande cidade já estava ali mesmo à porta e o bairro começou a ser ameaçado. Projetos, debates e polémicas não deram qualquer resultado até ao fim da década de 1990, quando a câmara valenciana decidiu que era hora de demolir parte do bairro, de uma vez por todas.

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“Durante todos estes anos, a câmara foi comprando as propriedades para as poder mandar abaixo”, explica Vicente Gallart, o homem que é há dois meses o responsável pela Plan Cabanyal, uma empresa pública que durante anos tinha como missão preparar e fazer demolições de casas no eixo onde ia ser construída a avenida. A missão, entretanto, mudou. “Mudou radicalmente. Mudou 180 graus.” Entre 2000 e 2015, altura em que “se esqueceu totalmente a possibilidade de estender a avenida”, a autarquia conseguiu comprar cerca de 600 das 1.651 casas. Terá gasto qualquer coisa como 50 milhões de euros, aos quais se acrescenta o gasto que a alcadessa tirou do seu próprio bolso para adquirir apartamentos. Hoje, “com tantas casas, a câmara pode pôr em marcha um plano municipal de habitação”, explica Vincent Gallart. E é exatamente isso que está a tentar fazer.

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Vicente Gallart com uma planta do bairro. Todas as casas com cores são da câmara, a amarelo estão as que já foram abaixo.

Um gueto dos dias de hoje

Junto ao que outrora foi um conjunto de muitas casas e hoje é apenas um descampado cheio de entulho, a tía Gúzman fala com desgosto do passado. Diz que está quase a fazer 82 anos e que já viu de tudo por ali. Desde apresentadores de televisão que levavam mulheres trinta anos mais novas nos seus Jaguares para a escuridão do bairro, às rusgas policiais violentas no prédio que fica mesmo em frente à horta que cultiva. “Isto aqui houve um abandono muito grande”, comenta, enquanto uma cadela caniche sem dono lhe vem cheirar as pernas e, no dito prédio, muitos homens caminham de um lado para o outro sem destino.

Das 600 casas que a câmara comprou, mais de 300 foram demolidas. Nos terrenos que ficaram vazios, a autarquia ergueu muros onde pintou barras castanhas e amarelas. Quem vê aquele sinal sabe que os prédios que ali estavam foram mandados abaixo pelo ajuntament, que ainda é dono dos terrenos. “É como se disséssemos que o Cabanyal é uma zona de guerra, como um gueto”, diz Vicente Gallart, que antes de chegar à Plan Cabanyal era vice-presidente da associação de moradores do bairro.

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Com a compra dos imóveis, a câmara fez com que muitos dos tradicionais moradores se fossem embora. Mas as casas não ficaram vazias muito tempo, “foram ocupadas ilegalmente por famílias ciganas espanholas, primeiro, e depois por famílias ciganas romenas”, explica Vicente. Por regra, os apartamentos no Cabanyal são pequenos e antigos, e uma vez que a intenção da câmara era demolir, não fez qualquer investimento de manutenção. Assim, hoje há muita gente que vive “sem condições de salubridade ou habitabilidade”, uma situação que a autarquia não viu ou não quis ver até demasiado tarde. “A câmara permitiu e até facilitou a degradação da zona, porque isso favorecia o plano, convencia as pessoas a pensarem que era melhor haver uma avenida”, acusa.

A degradação não foi só patrimonial, foi também social. Vicente fala longamente sobre o problema do tráfico de droga, de maus hábitos de higiene pessoal e urbana, da cata de lixo, da não realização da mínima obra que seja precisa nas casas. Tudo isso afasta as pessoas e dá-lhes uma ideia de insegurança. “Mas é só mesmo a sensação”, garante. “O Cabanyal não é um bairro perigoso”.

Mudar o mundo com alfaces

O projeto de estender a Avenida Blasco Ibáñez até ao mar foi desde o início fortemente contestado por movimentos cívicos, associações e grupos informais que se juntaram na Plataforma Salvem el Cabanyal. Este grupo, cujos membros integram hoje o executivo da nova câmara, foi o que mais lutou para a manutenção do bairro como estava, mas outros foram surgindo entretanto.

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Este cartaz é raríssimo de se encontrar: defende o prolongamento da avenida até ao mar e a demolição do Cabanyal

É o caso do Cabanyal Horta e do Cabanyal Z, grupos mais ou menos informais de pessoas ligadas às belas artes que lançaram projetos muito concretos e localizados para tentar melhorar a vida do bairro. No terreno descampado onde a tía Gúzman falava há pouco, uma rapariga que prefere não ser identificada explica quais são as intenções do Cabanyal Horta. “A ideia é fazer hortas urbanas e criar espaços verdes” naquele espaço a menos de 50 metros da praia, onde até há pouco tempo havia lixo e mais lixo. “Começámos a limpar o terreno e só encontrávamos baratas”, ri-se. De um lado, uma fila de prédios velhos, do outro, um edifício enorme ocupado quase exclusivamente por famílias ciganas, atrás um campo de ténis (o anterior ajuntament espalhou vários pelo Cabanyal), à frente o mar e no meio o jardim. É este o sonho.

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Mundos contrastantes

Mal a antiga alcadessa saiu do poder, os jornais regionais começaram a fazer manchetes com alegados casos de corrupção e esquemas de branqueamento de capitais que envolvem membros do PP, construtores civis e investidores imobiliários. As suspeitas não eram novas, tanto que até há grupos que se dedicam a fazer passeios turísticos alternativos pelas obras de utilidade duvidosa que a câmara mandou fazer ao longo dos anos. Há uma pista de Fórmula 1 que dá prejuízos de 100 milhões de euros por ano, uma linha de metro que está quase pronta mas onde não passam comboios, um estádio de futebol cujas obras estão paradas há seis anos, uma cidade das artes que é considerada um tesouro arquitetónico mas onde pouco acontece.

Os casos são tantos e tão estranhos que, no Cabanyal e em Valência inteira, muitos eram os que queriam ver o PP pelas costas de vez. Mas apesar dos elogios que o novo executivo de esquerda merece a muita gente, há quem ache que só isso não basta. “O tecido PP continua por aí espalhado”, afirma um outro membro do Cabanyal Horta. “Esses funcionários, que só mandam num pedacinho da realidade, têm o poder de bloquear muito. A algumas pessoas já disseram que daqui a três anos o plano da avenida volta, basta que mude a câmara.”

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Além disso, a ideia de reabilitação do Cabanyal agora proposta não convence toda a gente. “Em resumo, há aqui duas visões em confronto: a de quem quer manter as pessoas no bairro e a de quem só quer ganhar dinheiro”, explica Joan, ativista do grupo Cabanyal Z, que acusa a autarquia de querer promover a especulação imobiliária. Vicente Gallart nega. “Apareceram esses grupos com um perfil anarquista, os típicos okupas, a dizer que estavam a defender-nos e entendiam que isso se fazia ocupando as casas. Pois bem, agora já não existe o risco de demolição do bairro e eles não se vão embora.”

Queremos o Cabanyal para as pessoas normais. Não queremos nem reformados alemães, nem ciganos romenos, nem pintores franceses, nem yuppies americanos. Queremo-lo para todos.
Vicente Gallart

Não se vão embora, dizem, para impedir que o Cabanyal caia nas mãos dos “grandes interesses capitalistas de imobiliárias que querem especular e fazer do bairro um sítio turístico”. O que está a acontecer, acusam, com a cumplicidade da câmara de esquerda. “Aumentou a pressão policial contra os ciganos. Aplicam multas de dois mil e quatro mil euros por fazeres uma ligação elétrica em tua casa. Claro que assim não se pode aguentar.” Por outro lado, a autarquia declarou guerra à charrata, que é aquilo a que muitos no bairro se dedicam: andar pelas ruas à cata de lixo aproveitável para o revender em feiras. Isso, diz Gallart, faz com que as ruas estejam todas sujas; para o Cabanyal Z, é uma atividade económica fundamental para as pessoas, e portanto não se pode impedir.

Curar a hemorragia

Numa entrevista publicada esta sexta-feira num jornal regional, o líder do Podemos, que é um dos partidos que apoia o novo executivo municipal, afirmava: “De Valência, antes dizia-se que era mal gerida e que havia corrupção. Agora é um exemplo de bom governo e de ética”. Isso também gostava Vicente Gallart de explicar aos okupas. O seu objetivo, afirma, é “recuperar a normalidade do bairro, acabar com o gueto”, mas não à força. “Poderíamos mandar a polícia expulsar as pessoas que ocupam as casas ilegalmente, mas não é isso que queremos.” Acima de tudo, diz, é preciso dialogar “para curar esta hemorragia”.

E a hemorragia cura-se trazendo mais e novas pessoas para o Cabanyal, “estabelecendo uma nova política de habitação municipal”, sem esquecer o “problema social” que está na base de tudo neste momento. O próprio Vicente Gallart sabe que é preciso manobrar o assunto com pinças, pois o Cabanyal está nessa linha estreita entre a reabilitação e a especulação. Esta é uma história que pode marcar o início da diferença em Valência (e em Espanha) ou que pode ir parar aos livros da história negra da cidade.

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