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KIMIHIRO HOSHINO/AFP/Getty Images

KIMIHIRO HOSHINO/AFP/Getty Images

Cães. Quando os donos veem beleza nas “aberrações”

Alguns cães estão condenados a uma vida difícil. Criadas para serem bonitas, muitas raças têm à partida problemas de saúde que acompanharão os animais toda a vida, seja ela longa ou muito curta.

O lobo é o animal selvagem mais próximo do cão, mas do husky siberiano, que denuncia fisicamente a sua origem, ao pug, de focinho achatado, ou ao xoloitzcuintle, a raça mexicana sem pelo, muita coisa mudou no caminho. Nenhuma outra espécie doméstica apresenta aspetos tão distintos entre as diferentes raças. Alguns foram selecionados pela utilidade, como os cães São Bernardo, outros pela beleza, como os pequineses. Mas os cruzamentos seletivos em busca das características desejadas trouxe consigo um problema: as doenças genéticas.

“O cão é certamente a espécie doméstica com maior número de raças que, além disso, também apresenta a maior variedade de conformações e tamanhos, ou até mesmo de tipos de pelagens”, disse ao Observador Rita Payan Carreira, veterinária e professora na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Os criadores podem optar por três tipos de cruzamento entre animais – inbreeding (consanguíneo), linebreeding (em linha) ou outcrossing (aberto) -, explicou ao Observador Manuel Piçarra Correia, criador de cães há 33 anos. Mas este criador prefere um linebreeding espaçado, como o cruzamento entre um bisavô e uma bisneta, porque lhe “interessa manter a homogeneidade fenotipicamente [as características morfológicas externas]”, mas não quer um excesso de consanguinidade, como num cruzamento entre pai e filha ou entre dois meios-irmãos (inbreeding).

Rita Carreira, num comentário ao trabalho de 2004 da equipa de Heidi Parker, na altura investigadora na Centro de Investigação em Cancro Fred Hutchinson, disse que o estudo “mostra que algumas [raças] são ainda geneticamente muito próximas do lobo, enquanto que outras se foram afastando em resposta à seleção imprimida pelo homem”.

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“Alguns cães com pedigree vêm de um grupo de reprodução muito limitado, logo de uma variedade genética limitada, e foram reproduzidos durante várias gerações para acentuarem certos aspetos da sua aparência.”
Cuidados com o seu cão, Sophie Collins, Presença

O aumento da consanguinidade diminui a variedade genética e pode aumentar a frequência dos defeitos genéticos e doenças. Por isso, alguns criadores podem ter de recorrer esporadicamente ao outcrossing. “Para refrescar o sangue”, ilustrou Manuel Correia. O outcrossing consiste no cruzamento entre animais que não são aparentados, cujas histórias familiares nunca se cruzaram, logo com “zero por cento de consanguinidade”.

Cada característica física é normalmente definida por um gene (ou um conjunto de genes). Cada gene tem dois alelos – duas versões – e cada alelo ou é dominante ou recessivo. Havendo um alelo dominante é essa a característica que se vai manifestar no indivíduo. Mas a combinação dos alelos vindos do pai e da mãe em cada um dos cachorros da ninhada é aleatória e cada animal pode apresentar características físicas distintas. Por isso é que os criadores tentam manter uma diversidade genética mais ou menos controlada.

“O outcrossing é um tiro no escuro em termos de criação”, referiu o criador. Manuel Correia procura ter os melhores animais em termos físicos e mentais, para isso precisa conhecer muito bem qual o resultado provável do cruzamento. Os criadores podem inclusivamente escolher machos noutros países para encontrar a melhor combinação com as fêmeas que querem reproduzir.

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O outro lado é que “um excesso de genes consanguíneos predispõe o aparecimento de doenças que podem ter uma manifestação que facilita a sua deteção, como a surdez, a cegueira, a displasia da anca ou do cotovelo, e outras que podem ser mais difíceis de perceber, como uma falha na imunidade ou a infertilidade”, explicou Rita Carreira.

O pedigree, que corresponde à árvore genealógica dos animais de linhagem pura, ajuda o criador a perceber se os seus animais reprodutores podem passar doenças à descendência. Mas há algumas doenças que, mesmo estando presentes nos genes, ainda não se manifestaram em nenhum dos elementos da família. Uma análise genética pode ajudar a despitar as doenças mais comuns para cada raça, contou ao Observador Hugo Carvalho, veterinário e diretor clínico do laboratório veterinário Cedivet. O teste é feito aos progenitores e “os criadores conscenciosos acabam por tirar estes animais dos cruzamentos”.

“Quando [uma raça] entra na moda todos querem ganhar dinheiro com isso. Há misturas que são feitas só para ganhar exposições.”
Manuel Correia, criador de beagles no Casal da Vinha

Mas como lembrou ao Observador Claudia Rodrigues, veterinária no Hospital Veterinário Montenegro, não existe legislação específica sobre os cruzamentos de cães, “nem todos os criadores respeitam as regras estabelecidas pelos clubes das raças e [além disso] qualquer pessoa pode cruzar animais, mesmo que depois não tenham pedigree”. O critério parece ser “cruzar com o cão do vizinho”, lamentou Manuel Correia.

“Existem atualmente no mercado dois tipos de criadores de cães de raça pura: os criadores selecionadores, inscritos no Clube Português de Canicultura (CPC), que produzem cachorros certificados com LOP (Livro de Origens Português), a partir de exemplares de genealogia certificada nacional e internacionalmente, e os criadores que eu chamo de ‘multiplicadores’ que possuem exemplares que cumprem os padrões raciais, mas que não são certificados, e que geralmente são menos criteriosos na seleção dos cruzamentos”, criticou Rita Carreira.

Sobre seleções e cruzamentos, novas raças e doenças genéticas, a Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia disse ao Observador que: “não tem uma posição oficial sobre esta temática, porque é uma questão muito controversa”.

A pair of Beagles on the grooming table during the 136th Westminster Kennel Club Annual Dog Show held at Madison Square Garden. February 13, 2012. AFP PHOTO / TIMOTHY A. CLARY (Photo credit should read TIMOTHY A. CLARY/AFP/Getty Images)

Manuel Correia tem atenção às características genéticas que quer manter na sua linhagem. Entre outros problemas, os beagles podem ter glaucoma (elevada pressão dentro do globo ocular, que pode levar a perda de visão) – Timothy A. Clarky/AFP/Getty Images

Manuel Correia criticou também certas seleções feitas e alguns critérios aprovados pelos clubes da raça. Para o rafeiro alentejano cumprir o estalão tem de ter “movimentos lentos e bamboleantes” – uma característica pouco útil para um cão de trabalho, lembrou. “Os pelos longos também são uma aberração.” Na natureza os pelos ficaram presos nos galhos e formam ninhos. “Não há tosquiador.” O criador não percebe como se podem promover características desvantajosas para os animais, como o excesso de peso no mastim napolitano.

Vida de cão: características nada úteis

Para Manuel Correia os animais devem ser saudáveis e ter um bom temperamento, e se forem bonitos melhor. Mas o criador também aprecia cães que mantêm características mais próximas dos ancestrais, capazes de sobreviver na natureza, como os podengos portugueses. “[Porque] há raças que para sobreviverem estão dependentes do homem.” Como os basset hound e o bulldog inglês que, “por uma questão anatómica, não conseguem ter um acasalamento natural”.

“Estima-se que os cães foram domesticados há cerca de 14 mil anos, mas os estudos genéticos revelam que a maioria das raças modernas se originaram apenas há cerca de 200 anos.”
Rita Carreira, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

O criador deu outro exemplo, o dos pastores alemães, que foram sendo seleccionados para terem as patas traseiras mais esticadas para trás, o que faz com que a cabeça do fémur (na parte superior da perna) salte facilmente do encaixe da bacia. E a veterinária Claudia Rodrigues deu como exemplo os shar pei, que antes dos seis meses, têm de retirar algumas das pregas faciais para evitarem lesões nos olhos. Uma intervenção que pode ser repetida várias vezes ao longo da vida do animal.

A veterinária explicou que as cirurgias estéticas, como o corte das orelhas e da cauda, estão proibidas, e que este tipo de intervenção só é possível por motivos médicos, como em caso de lesão. Mas outras cirurgias são quase obrigatórias. Nas raças de pastoreio amputam-se os dedos acessórios das patas posteriores, porque dificultam a locomoção e podem ficar presos, provocando uma lesão. E os braquicéfalos – os cães de focinho curto como os bulldog – são operados ainda pequenos para prevenir complicações respiratórias. “Aquilo que as pessoas gostam é um problema de saúde”, disse Claudia Rodrigues, referindo-se ao roncar característico destas raças.

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Caen Elegans, no blogue Dog Behavior Science, escreveu sobre como as raças têm mudado ao longo do tempo, mais propriamente nos últimos 100 anos. Nas versões atuais, o bull terrier tem um excesso de dentes e um comportamento compulsivo de perseguição da cauda, o basset hound tem problemas nas vértebras e orelhas demasiado grandes, o boxer tem dificuldade em controlar a temperatura em ambientes quentes – o que faz com que tenha um mau desempenho físico nestas condições -, o teckel ficou tão alongado que tem problemas na coluna que podem levar a paralisia. E o que dizer do São Bernardo, outrora um cão de trabalho, agora tem um excesso de peso e de pele que não lhe permite controlar o sobreaquecimento.

Algumas experiências nos últimos anos:

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Labradoodle = labrador + poodle
Cockapoo = cocker spaniel + poodle
Puggle = Pug + beagle
Poogle = Poodle + beagle
Schnoodle = Schnauzer + poodle

“Há raças que são disparatadas. Aberrações”, afirmou o criador. “Tudo o que é aberração tem valor comercial para a humanidade, mas há raças que exageram.” E quando as raças se tornam populares e os cruzamentos são feitos sem terem em consideração se o animal é saudável ou se é portador de alguma doença, nascem animais que podem ter problemas graves.

As raças, os genes e as doenças

Hugo Carvalho referiu que atualmente é possível fazer testes específicos por raça a mais de 40 doenças, entre elas a doença de Von Willebrand nos dobermann, que pode originar hemorragias, ou a displasia da retina nos samoieda, que pode resultar em cegueira. Mas os testes genéticos podem ir mais longe e ajudar a determinar a paternidade de um animal, confirmar a raça quando não existe pedigree ou avaliar a probabilidade da descendência ter determinado padrão de cor.

“Raças que possuam poucos indivíduos estarão em maior risco de estrangulamento genético se não houver cuidados na sua criação, do que raças em que o número de indivíduos é grande”, alertou Rita Carreira. Por isso é que para Manuel Correia “o que interessa é a linhagem que se utiliza” e garantiu que para criar os beagles (que tem agora) – ou os rottweiler, setters islandeses e cães da Serra de Aires (que criou no passado) -, usa as “melhores linhagens do mundo”.

Os pugs no Reino Unido têm um nível de consanguinidade tão grande que estão geneticamente mais ameaçados do que os pandas-gigantes.
“Pedigree Dogs Exposed”/BBC

O criador reforçou que “é preciso ter conhecimentos de genética” e “um grau de exigência muito grande” para não acontecer o mesmo que acontece com a grande maioria dos cães que existem em Portugal ou Espanha: “são histéricos, pouco equilibrados”.

Mas há problemas que surgem quase intencionalmente ou que nada se faz para que sejam evitados, como acusou o documentário da BBC “Pedigree Dogs Exposed”. Os leões-da-rodésia, segundo o padrão definido pelo guia de raças do The Kennel Club, devem ter uma coluna saliente (ridgeback) e os criadores matam as crias que não têm esta característica – que afinal traz problemas aos animais. Mais, os animais que apresentam ridgeback têm um pequeno furo na pele que é um canal aberto para a medula espinal provocando graves infeções. Os que não têm ridgeback não.

Problemas nos olhos dos labradores, uma deficiência numa enzima que acontece apenas nos springer spaniel, alta incidência de cancro nos golden retriever ou propensão a alergias nos westie, são outras das doenças apontadas no documentário da BBC. The Humane Society Veterinary Medical Association publicou uma lista com as doenças congénitas das várias raças. Por exemplo, os podengos portugueses e os cães-de-água portugueses podem ter um crescimento anormal das pestanas – que podem causar lesões nos olhos – ou um encaixe deficiente entre os dois maxilares, assim como muitas outras complicações – incluindo epilepsia.

https://vimeo.com/17558275

“Pedigree Dogs Exposed”: um documentário de uma hora da BBC que expõe os problemas genéticos de várias raças

A epilepsia é uma doença comum em várias raças de cães, uma entre as mais de 500 doenças genéticas conhecidas (algumas delas identificadas aqui). São menos do que nos homens, mas afeta os cães com mais frequência. Rita Carreira referiu ainda outras doenças com elevada prevalência – até 4% dos animais – “a cardiomiopatia dilatada e a estenose aórtica, o hipotiroidismo, a displasia da anca e do cotovelo, a dermatite atópica, o criptorquidismo e as cataratas”.

“Existem algumas raças onde ocorrem com mais frequência, pelo que devemos estar alerta, mas devemos estar também conscientes de que a prevalência descrita para estas doenças varia com a população na localização geográfica do estudo e com a data em que foi feita, e que estas doenças também podem ocorrer em animais sem raça definida – rafeiros.”

Mas não são só as doenças conhecidas ou as mais comuns nas raças que podem afetar os animais, como descobriu Henrique Saldanha. Apesar de saber que os boxers poderiam ter alguns problemas de coração, nada fazia prever que Dallas apresentasse, aos três meses, uma doença de cão velho — uma cardiopatia dilatada. Nenhum dos elementos mais velhos da família, nem os irmãos, nem os primos, apresentaram alguma vez esta doença.

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“As doenças congénitas são aquelas com que o cão nasce, mas nem todas têm um fundamento genético. Por exemplo uma falha de ácido fólico pode levar ao não encerramento do palato, que é observável quando o cachorro nasce”, disse Rita Carreira, lembrando que “as doenças congénitas não são exclusivas das raças puras”.

A veterinária aconselha que os futuros donos, antes de adquirirem um cão, se aconselhem com um médico veterinário, visitem o espaço onde os criadores têm os cães, conheçam o animal antes de o levar para casa – “e nunca levem para casa um cachorro com menos de sete semanas” – e que verifiquem se têm as condições ideais para receber aquela raça. “Os cães não são biblots. Como com qualquer ser, tem personalidades e necessidades diferentes consoante a raça e mesmo o sexo.”

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