Entrevista originalmente publicada no Observador a 10 de maio de 2017, na véspera de visita do Papa Francisco a Fátima, na qual o cardeal George Pell, que esta quinta-feira foi acusado de abusos sexuais pela polícia australiana, responde a várias perguntas, incluindo sobre essas suspeitas.
Entrevista no Vaticano
Quem o vê sem as vestes de cardeal, de trato gentil, altíssimo apesar das costas ligeiramente curvadas pela idade, dificilmente imagina que George Pell é um peso pesado das reformas que o papa Francisco pôs em marcha no Vaticano. Em 2014, a convite do Pontífice, chegou a Roma para assumir o lugar de Prefeito da Secretaria para a Economia, um super ministério que deveria supervisionar todos os assuntos financeiros da Santa Sé. Filho de um lutador de boxe, o australiano tinha fama de nunca fugir a um combate e de enfrentar de caras as batalhas mais exigentes.
Quando começou a pedir contas e pôr em prática as primeiras recomendações da COSEA, a comissão pontifícia criada para estudar a organização económica e administrativa da Santa Sé, surgiram resistências internas e o arcebispo-emérito de Sydney começou a sofrer alguns revezes.
Se, por um lado, se anunciava o encerramento de cerca de cinco mil contas suspeitas no Banco do Vaticano, por outro, em 2015, o escândalo Vatileaks II, com a divulgação de documentos secretos da Santa Sé, dava a conhecer números sobre o património da Igreja e demonstrava que a reforma financeira estava longe do fim. Pell aparecia na linha de fogo: uma lista de despesas publicada no livro Avareza, de Emilioano Fittipaldi, revelava que, nos primeiros meses de atividade, a Secretaria para a Economia gastara cerca de meio milhão de euros. O gabinete do cardeal refutou as acusações de despesismo numa nota pública.
Com o passar do tempo, os críticos do Prefeito da Secretaria para a Economia passaram a acusá-lo também de querer ter demasiado poder. O Papa, sem nunca o afrontar, passou o controlo da APSA (a Administração do Património da Sé Apostólica) para as mãos da Secretaria de Estado, reservando à Secretaria para a Economia um papel de vigilância, não executivo, nessa matéria.
As finanças não eram, porém, a única frente onde George Pell era posto em causa. O arcebispo-emérito de Sydney foi chamado a depor por uma Comissão Real australiana criada para investigar abusos sexuais cometidos pelo padre Gerald Ridsdale, em Ballarat, na Austrália, nos anos 70, e por outros elementos do clero no país. Pell conhecia bem Ridsdale: os dois chegaram a partilhar casa durante alguns meses. O cardeal garante que nunca soube dos crimes cometidos pelo padre, que acabou condenado e preso.
A Comissão, que ainda ainda não revelou os relatórios finais, quer ainda determinar se Pell, enquanto arcebispo de Melbourne, ajudou a encobrir outros atos de pedofilia cometidos por elementos da Igreja. Pell sempre negou as acusações de abusos de que foi alvo e rejeita ter ajudado a esconder os crimes de outros padres. Chamado a depor na Austrália, alegou motivos de saúde para ser ouvido em Roma, o que aconteceu em março de 2016. Durante três dias, o cardeal disponibilizou-se para responder às perguntas da Comissão por video-conferência, a partir do Hotel Quirinale.
O Papa jamais o deixou cair e já disse publicamente que aguarda a decisão da justiça australiana para, depois, se pronunciar. George Pell continua a ser a terceira figura na hierarquia do Vaticano, para onde se mudou definitivamente. Vive num apartamento espaçoso no segundo andar de um prédio da Piazza Città Leonina, junto à Praça de São Pedro, onde moram outros cardeais. Como é hábito entre os cardeais, tem à entrada de casa o barrete vermelho e também o solidéu da mesma cor.
Os embates que tem sofrido não o impedem de sair à rua para caminhar e beber café nas redondezas. Admite que tem hoje uma agenda muito menos agitada do que antes e diz que dormir a sesta o rejuvenesce. Durante uma hora, sentado numa poltrona da sua sala de estar, respondeu a todas as perguntas que o Observador lhe colocou.
Qual era o seu nível de proximidade com o cardeal Bergoglio antes de ele ser eleito Papa?
Não éramos particularmente próximos. Tinha estado com ele algumas vezes em reuniões da Congregação para a Disciplina dos Sacramentos. Tínhamos falado algumas vezes, mas não o conhecia bem.
Foi surpreendente ser chamado a Roma para assumir esta missão?
Foi, certamente. Mas havia uma razão de ser: eu era membro do Conselho de quinze cardeais que, supostamente, no passado, era responsável pelos assuntos financeiros. Alguns de nós lutávamos por reformas neste campo há muitos, muitos anos. Eu era o último que restava. O cardeal [Joachim] Meisner estava aposentado. Quando avançámos com as reformas, disse-nos que lutava por elas há 23 anos. O cardeal Francis George morreu, o cardeal [Roger] Mahony, de Los Angeles, estava reformado, Rouco Varela também. Eu era quase o único que sobrava desses 15 que queriam mudanças.
Até que ponto estava por dentro das finanças da Santa Sé? Tinha conhecimento de tudo, nessa altura?
Ninguém tinha conhecimento de tudo nessa altura. Essa foi uma das coisas de que nos apercebemos. O que se tornou claro para o Conselho dos Quinze foi que, não só não sabíamos de tudo, como não sabíamos o número de coisas que desconhecíamos. Como se recordará, descobrimos que 1,4 mil milhões de euros não estavam registados em lado nenhum. Isso queria dizer alguma coisa.
Como recebeu o convite?
O Papa ligou-me e pediu-me que viesse.
Estava na Austrália?
Eu vinha a Roma com alguma frequência. E julgo que nessa altura já tinha sido nomeado para o C9 [o Conselho de nove cardeais que aconselha o Papa e reúne de poucos em poucos meses em Roma], que na altura ainda era C8, antes da nomeação de [Pietro] Parolin [Secretário de Estado].
E como é que foi parar ao C9?
Há lá gente de todo o mundo. A Austrália e a Oceania são indissociáveis. Não sei como o Santo Padre me escolheu, mas aqui estou.
Como foram as primeiras reuniões do C9? A criação do Conselho representou uma ideia nova para o governo da Igreja.
Foi uma ideia nova e muito boa, espero que sobreviva. As opiniões não são unânimes, mas…
Entre os cardeais?
Sim, a Igreja é mesmo assim. Mas é um grupo muito alegre e próximo.
Discutem?
É muito, muito raro. É um grupo bem disposto com um ambiente muito agradável, muito amistoso.
Como é que decorrem habitualmente as reuniões?
Temos três dias de reuniões, o cardeal [Rodríguez] Maradiaga é quem lidera, o arcebispo [Marcello] Semeraro, de Albano, é o secretário. A agenda é pré-preparada, os papéis são-nos entregues antes e é mais ou menos assim. O Santo Padre participa em quase todas as reuniões.
E ouve ou fala?
Ouve muito mais do que fala.
E depois toma decisões.
Sim, ele é o único que toma decisões.
Nunca sabem o que ele vai decidir ou já aprenderam a ler os sinais?
Às vezes sabemos, outras não. Se ele nos diz que pensa de determinada maneira, torna-se mais fácil perceber. Não é particularmente difícil saber a direção que ele vai escolher.
Há uma oração no início?
Sim, há uma oração simples no início e no fim. Encontramo-nos na Casa de Santa Marta. As reuniões duram todo o dia, paramos para almoçar e fazemos uma pausa para a sesta.
Dorme a sesta?
Durmo. Rejuvenesce-nos.
Quando a Secretaria para a Economia foi criada, que tarefa é que lhe chegou às mãos?
Havia dois aspetos: não sabíamos qual era a situação financeira global do Vaticano e não estávamos certos de não estarmos em dívida. Ninguém, no Vaticano, tinha uma ideia completa do que se passava.
Quem é que decidiu chamar consultoras externas para avaliar os dinheiros?
O Papa, claro.
Esteve de acordo com essa decisão?
Certamente. Chamámos uma comissão de especialistas, a COSEA, liderada, por Joseph Zahra. Eles fizeram um relatório muito bom, definindo qual era a situação e o que é que precisava de ser feito.
Ficou surpreendido ou chocado com algumas partes do relatório?
Essa é uma boa pergunta. Creio que quanto mais lia, menos surpreendido ficava. Mas muito do que li não é edificante.
Depois de ler o relatório, por onde que é que decidiu começar?
A própria COSEA definiu um programa de reforma, que não foi totalmente seguido, embora tenhamos seguido amplamente as recomendações. Adoptámos os princípios de contabilidade modernos, transparência e cooperação internacional. O Papa inovou ao criar um Conselho conjunto para a Economia, que conta com oito cardeais e sete leigos. São eles quem faz recomendações ao Papa sobre as Finanças. O Conselho para a Economia não está sob a alçada da Secretaria de Estado, e isso foi uma grande mudança. Houve uma separação de poderes.
Com que frequência fala com o Papa sobre o seu trabalho?
Encontro-me com ele de duas em duas semanas, no Palácio Apostólico. São audiências formais. Já houve alturas em que fui a Santa Marta, mas normalmente não é lá.
É nesses encontros que o põe a par do que se passa?
Sim, e pergunto-lhe o que quer fazer. Mantenho-o informado.
A última palavra é sempre dele.
Absolutamente.
O Papa nunca abre mão desse poder de decidir?
Ele reconhece que não é um especialista em assuntos económicos e concorda com quase tudo o que nós, ou o Conselho, sugerimos, mas não se sente refém das recomendações de qualquer Conselho ou Congregação.
Decide sempre com base no seu próprio discernimento.
Depois de ouvir os conselhos que lhe dão.
Como disse há pouco, o consenso nem sempre é possível nas reuniões e na Igreja. Como lida com a diferença de opiniões em relação ao Papa?
Na maior parte das vezes estamos de acordo. E depois há casos em que não concordamos um com o outro, mas isso é a um nível pessoal, porque se houver um desacordo com o Papa, ele é o chefe. Se ele disser que uma coisa deve ser feita, é feita.
Mas os cardeais têm oportunidade de argumentar com o Papa?
Ele é um bom ouvinte.
E zanga-se com quem não concorda com ele?
Nunca o vi zangado.
O senhor cardeal nem sempre esteve de acordo com o Papa Francisco. Durante o Sínodo da Família, foi quem lhe entregou a carta que foi divulgada nas notícias. [A carta assinada por 13 cardeais alertava para a forma como o Sínodo estava a decorrer e o risco de os novos procedimentos facilitarem alterações em matérias sensíveis para a doutrina da Igreja.]
Na verdade, não lhe entreguei a carta. Deixei-a na Casa de Santa Marta, é apenas um preciosismo.
Qual foi a reação dele?
Entreguei-a na Casa de Santa Marta e fui-me embora.
Não falaram sobre o assunto?
Deixe-me pensar… Não creio que o tenha feito. Já tínhamos discutido o assunto anteriormente duas ou três vezes.
Antes do Sínodo?
Sim.
Então ele conhecia a sua opinião.
Sim, sim.
Quando o Papa publicou a encíclica Amoris Laetitia, ficou desapontado com o texto?
Bom… O texto, em si, à parte dessa nota de rodapé, não tem nada a apontar. A questão está apenas nessa nota de rodapé.
A nota de rodapé é o capítulo VIII? [O capítulo VIII dá azo a interpretações diferentes quanto ao acesso dos recasados à comunhão.]
Sim.
Qual é a sua opinião sobre o assunto?
Não se pode alterar a doutrina da Igreja com uma dúvida, uma ambiguidade. Creio que a tradição da Igreja continua no mesmo lugar.
Nem todos estão certos de que essa seja a opinião do Papa.
Aparentemente há uma carta para o povo da Argentina [enviada por Francisco em resposta a uma missiva dos bispos desse País], mas não houve nenhuma mudança oficial nos ensinamentos da Igreja.
Na sua opinião, Francisco deveria responder à Dubia [uma carta enviada ao Papa por cinco cardeais que lhe pediram esclarecimentos sobre a encíclica Amoris Laetitia]?
Isso é com ele. É assunto dele, não é meu. Eu ocupo-me das questões do dinheiro.
Durante o processo de reforma económica, enfrentou várias dificuldades. Quais foram as maiores resistências?
É difícil precisar isso. Fiquei muito desapontado quando a auditoria externa da PriceWaterhouseCoopers foi suspensa.
Não sabia dessa decisão, foi uma surpresa para si.
O assunto tinha sido discutido três vezes no Conselho. A própria PriceWaterhouseCoopers tinha ido ao Conselho. Portanto, fiquei surpreendido. A auditoria não cessou, foi suspensa.
Na sua opinião, ainda é necessário ter um auditor externo?
Sim, sim. Quer dizer: nós temos um auditor-geral próprio muito bom, muito capaz e honesto, comprometido com a missão de garantir que as coisas são feitas como deve ser. Mas, segundo me dizem, o papel de um auditor externo é diferente do de um interno, e certamente que um auditor externo aumenta a nossa credibilidade em relação ao mundo exterior.
Quando o jornalista Emiliano Fittipaldi publicou o livro Avareza, em 2015, como foi lidar com a divulgação de toda aquela informação?
O que saiu estava 18 meses desatualizado, porque ele teve acesso aos documentos da COSEA. Não sei se ele é a favor ou contra a reforma, não sei qual é o jogo dele.
Nunca falou com ele?
Não, não.
Nem falaria?
Nunca digas nunca, mas ele nunca pediu para falar comigo e eu não tenho boa impressão da qualidade do trabalho dele.
Ele foi particularmente incisivo em relação às despesas da Secretaria para a Economia.
Isso foi absurdo. Absolutamente absurdo.
Mas é ou não verdade que a Secretaria fez as despesas de que Fittipaldi fala no livro?
Que despesas? Que despesas?
Ele refere despesas na ordem de 500 mil euros.
Nós emitimos um comunicado oficial sobre este assunto.
Sim, tive acesso a ele.
Então aí tem a sua resposta. A objeção às despesas é ridícula. Não há despesas exageradas em viagens.
Voa em classe executiva ou em económica?
Claro que voo em executiva. Sem qualquer remorso. Esse é um exemplo de uma distração. É uma estratégia diversiva, porque não há nada significativamente errado na forma como gastamos o dinheiro.
Faria tudo igual, se pudesse voltar atrás?
Não sei. De um modo geral, sim. Provavelmente, daria mais interesse a algumas pequenas coisas.
O livro diz, inclusivamente, que o Papa o chamou para falar dessas despesas.
De maneira nenhuma… De maneira nenhuma… Como se o Papa andasse preocupado com estas despesas… O Papa tem acesso a tudo o que quiser, só precisa de pedir. Nunca me repreeendeu, na verdade, nunca sequer falou comigo sobre as despesas. Os montantes são insignificantes comparando com o orçamento global.
Fittipaldi diz também que a Igreja, apesar de rica, gasta muito pouco dinheiro em caridade, ainda que o Papa tivesse dito que queria uma Igreja pobre para os pobres. É verdade?
Essa informação é truncada. Não sei se é propositadamente intrincada e confusa ou se alguém está à procura da verdade, de forma genuína. A Igreja é rica em bens, mas tem pouco dinheiro. O Vaticano perde dinheiro todos os anos.
No ano passado, as perdas rondaram os 12 milhões de euros.
E isso foi depois de receber 50 milhões do IOR [Instituto para as Obras Religiosas, conhecido habitualmente como Banco do Vaticano]. No passado, recebemos 50 milhões de euros por ano do IOR, mas isso provavelmente não vai continuar assim. O Governadorado traz muito dinheiro, graças a Deus, e chega dinheiro de todo o mundo. Não há razão para entrar em pânico, mas dentro de 10 ou 15 anos, temos um grande desafio relativamente ao nosso fundo de pensões. Por isso, o Vaticano não está a nadar em dinheiro. Sem querer ser pedante, se a Igreja for mesmo muito pobre, não pode ajudar os pobres a nível financeiro, não tem essa capacidade. Maggie Thatcher disse uma vez sobre o Bom Samaritano que, se ele não tivesse capital para pagar pelos cuidados de saúde do homem que fora roubado, ele não o teria podido ajudar. Recebemos o dinheiro do Óbolo de São Pedro, que se destina fundamentalmente às obras destinadas aos pobres e às despesas da Igreja. É muito claro para mim que pelo menos metade [das verbas] do Óbolo de São Pedro devia ser gasto com os pobres.
E quanto é destinado a esse fim neste momento?
Mais ou menos isso, neste momento. Mesmo que isso faça aumentar o défice.
Quanto recebe o Óbolo de Pedro por ano?
Em média 50 milhões de euros, mas é preciso verificar isso.
Em março, saiu uma nota de imprensa com o balanço de 2015, mas o documento refere apenas as linhas gerais, não entra em pormenor.
Não, mas nós estamos a trabalhar nesse sentido e eu reconheço que temos de detalhar mais. Estamos a trabalhar com novas normas, normas internacionais e eu insisto para que todos os dados divulgados sejam rigorosos.
O seu objetivo é divulgar um relatório semelhante ao das empresas cotadas em bolsa, por exemplo?
Esse é o objetivo.
É que, procurando dados sobre as obras de caridade, não é tarefa fácil encontrá-los.
A maioria das obras de caridade não é feita pelo Vaticano e a Igreja deve ser julgada como um todo. Se o Vaticano perde dinheiro todos os anos, isso significa que não tem uma capacidade ilimitada para dar.
Com todos os bens imobiliários que a Igreja detém, a venda de parte desse património pode ser a solução para aumentar o apoio aos pobres?
Não, não, não. O património pertence a toda a Igreja, através dos tempos e também no futuro. Esta geração não tem o direito de o vender, gastando-o agora e impedindo-o de estar disponível no futuro. Aquilo que temos de fazer é conservar o património e desenvolvê-lo de maneira a recebermos receitas a partir daí. Se o organizarmos melhor, os nossos sucessores podem beneficiar deles também. Os nossos ativos não são bem geridos.
Pensa que é possível retirar mais dinheiro desses ativos?
Tenho a certeza que sim. Não aconteceu ainda, mas com uma boa gestão, isso é possível. Esta questão estava descrita de forma muito explícita no relatório da COSEA.
Em que questões específicas é possível fazer isso?
Uma percentagem significativa das nossas propriedades está desocupada.
E os preços das rendas estão atualizados?
Segundo me dizem os especialistas, uma percentagem significativa dos imóveis estão abaixo dos preços de mercado. Há uma margem real para melhorias.
Como é que isso se põe em prática?
Com gestores eficientes.
Isso demora tempo.
Demora, e implica ter critérios e procedimentos claros. Na verdade, levou algum tempo para termos um registo rigoroso daquilo que detínhamos.
Ficou surpreendido com esse património?
Em que medida?
Pelo dimensão, pelo valor…
Não particularmente. É possível que o valor ronde os 4,5 mil milhões. Não é nada do outro mundo, de forma alguma. [Em inglês, ‘It’s not a big show, at all.’]
Daqui a quanto tempo espera ver resultados da reforma financeira?
Começámos a fazer mudanças há três anos. As alterações que fizemos foram significativas e, segundo acredito, irreversíveis. Seguimos padrões de contabilidade modernos, estamos comprometidos com a transparência, estamos comprometidos com a cooperação internacional. Por isso, se os governos da Suíça, da Itália, da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos nos pedirem informação, dar-lha-emos. O Papa Bento XVI criou a AIF (Autoridade de Informação Financeira), um gabinete contra a lavagem de dinheiro, temos um auditor. A informação que divulgamos não é tão detalhada como gostaríamos, mas eu acredito, nós acreditamos, que é rigorosa. Todas estas coisas representam avanços enormes e irreversíveis.
Este ano, pela primeira vez, o orçamento já foi elaborado tendo em conta as novas normas financeiras, mas o relatório ainda diz que levará algum tempo até que elas estejam totalmente implementadas. Que intervalo de tempo será este?
Um par de anos, mais ou menos. O nosso pessoal tem falta de formação, são boas pessoas, muitas delas são grandes apoiantes das reformas, mas há falta de conhecimentos. Não em todos os departamentos. Alguns são muito capazes, outros não. É um trabalho em curso.
Quais são as principais resistências à reforma financeira da Igreja?
Não há uma resistência generalizada, pelo menos a nível financeiro. Há bolsas de resistência e três possíveis razões para isso acontecer: em primeiro lugar, as pessoas não gostam de mudanças; em segundo, algumas pessoas podem sentir que perderão poder com as alterações…
Pessoas da Cúria?
Sim, sim, sim. E em terceiro, poderá haver pessoas que resistem à mudança e à transparência porque querem manter escondidas a ineficiência e até, possivelmente, a corrupção.
Algum dia será possível erradicar totalmente a corrupção?
Bem, por exemplo, eu penso que, se alguma vez houve lavagem de dinheiro no IOR, agora já não existe.
As contas suspeitas do IOR foram encerradas.
De Franssu, o presidente, e o seu conselho de leigos fizeram um ótimo trabalho. Não geram tanto dinheiro como nós gostaríamos, mas limparam aquilo tudo.
A Igreja decidiu não divulgar a identidade dos titulares dessas contas suspeitas.
Creio que está certa, no IOR.
Há quem argumente que, dessa forma, tudo permanece escondido.
Veja: caso tenha havido informações suspeitas, isso terá sido identificado pela AIF e encaminhado para o Promotor de Justiça.
Num determinado momento, o Cardeal Pell foi acusado de querer centrar em si todos os poderes financeiros.
Essa é uma estratégia diversiva clássica. Era suposto que nós ficássemos encarregues dos investimentos, das propriedades e de tudo isso. Foi isso que a COSEA propôs. Isso não nos foi permitido, com a justificação de que tínhamos o controlo e a supervisão de tudo. Por isso, seria melhor que não fizéssemos nós mesmos as coisas. Teríamos criado um departamento diferente. Um dos desafios constantes é o de perceber o que é informação errada, o que é dito para esconder alguma coisa e o que são os verdadeiros desafios. As despesas iniciais do Conselho para a Economia são uma distração, uma cortina de fumo.
Então o que é que interessa, de verdade?
Quero que giramos uma organização honesta e competente, e quero que o Vaticano se sustente a si próprio.
Até que ponto é que o Papa quer saber dos montantes gastos em caridade por todo o mundo?
Ele interessa-se por isso, mas muito desse dinheiro não vem da nossa parte, porque nós não o temos. Mas já falei várias vezes com ele sobre a importância de usar uma parte significativa do Óbolo de São Pedro com os pobres. E ele concorda com isso.
Em Itália ou em qualquer parte do mundo?
Não sou a favor de que o dinheiro fique em Itália. A Itália tem um imposto a favor da Igreja, o otto per mille. Outros países do mundo não têm [essa contribuição]. Penso que o dinheiro do Vaticano deve continuar a ser usado — como é –, no Médio Oriente, em África, nalgumas regiões da Ásia, onde há muito mais necessidades dos que nos países do primeiro mundo, na Europa ou nos Estados Unidos, ou na Coreia do Sul.
Ter um Papa que vem “do fim do Mundo”, como ele próprio disse, trouxe riqueza espiritual à Igreja?
Sem dúvida nenhuma. Provavelmente, mais de metade dos católicos de todo o mundo estão na América Central e na América do Sul.
Nos últimos meses, Francisco tem enfrentado críticas bastante duras. O que é que está no centro dessas críticas?
Críticas sobre o quê?
Em parte, sobre questões de doutrina, em parte devido ao seu próprio estilo de ser Papa.
Não há assim tantas críticas provenientes da Cúria. A maioria chega de fora. Algumas críticas devem-se a questões doutrinais, as pessoas sentem-se confusas. Outras críticas são políticas, outras económicas. Suspeito que parte delas venha de fora da Igreja e que uma parte não seja de forma alguma inspirada em ideais cristãos.
De fora da Igreja? Então o mundo não está apaixonado por este Papa?
De onde viriam as críticas se todos estivessem apaixonados por ele?
Alguns analistas têm escrito que essas críticas vêm dos seus pares.
Não, não, não. Isso pode existir, até certo ponto, mas nós temos esperança que aqueles posters horrendos [afixados em Roma, pondo em causa a misericórdia do Papa] não tenham tido origem no seio da Igreja, não creio que tenham qualquer inspiração cristã.
Qual foi a sua reação? Como é que soube da existência dos posters?
Passei por um deles de carro.
Viu-os na rua?
Sim, isso mesmo. Alguém falou nisso e ficámos atentos.
Percebeu o que lá dizia?
Não, porque estavam em romanesco, mas alguém traduziu.
Como é que reagiu?
Pareceu-me inconveniente, totalmente inconveniente.
Falou sobre isso com ele?
Na reunião [do C9] falámos no assunto.
O próprio Papa falou no assunto numa entrevista ao El Pais, com sentido de humor.
Não me recordo do que ele disse.
Disse que o romanesco do cartaz era bastante cuidado.
Isso foi bem merecido.
Porque é que os cardeais do C9 decidiram tornar pública uma mensagem de solidariedade para com o Papa?
Ele estava a ser atacado e, quando isso acontece, é simpático ter alguém a dizer: “Apoiamo-lo e pensamos que, de uma maneira geral, isto é bastante inadequado.”
Consideraram que não bastava dizer-lho a ele em privado.
Talvez bastasse, ou talvez não bastasse. Decidimos fazê-lo de outra forma, não estou arrependido, não creio que tenhamos aberto nenhum precedente inoportuno. Trabalhando com o sucessor de Pedro, e é assim que o vemos, cremos que ele tem o direito a um apoio básico, tem o direito aos nossos comentários. Mas, no fim de contas, ele é o Papa e é preciso apoiá-lo.
O próprio Papa tem-no apoiado muito no que toca as investigações que estão em curso na Austrália e nas quais o senhor cardeal também está envolvido [por suspeitas de encobrir abusos sexuais, nos anos 70]. Francisco disse publicamente que era preciso esperar pelas conclusões da Justiça e só depois falaria. De alguma forma, sentiu que agora estava a retribuir-lhe?
De forma nenhuma. Senti-me grato pelo apoio. Questiono-me até que ponto os meus problemas na Austrália estarão de alguma forma relacionados com as reformas que estou a fazer aqui. Mas trata-se de uma mera hipótese, não tenho provas firmes disso.
Há quem o critique, dizendo que o senhor cardeal apenas veio para o Vaticano para escapar à investigação na Austrália.
Isso é um disparate, um disparate, um perfeito disparate.
Pensa que foi embaraçoso para a Igreja quando a Royal Commission veio a Roma interrogá-lo?
Não foi. E correu muito melhor do que as pessoas pensavam. Mal algum foi exposto de forma inesperada, creio que respondi a todas as perguntas, encontrei-me com todas as vítimas durante uma hora.
Como foi o encontro?
Foi bastante bonito. Todos, exceto um, me abraçaram antes de irem embora.
O que é que lhe disseram?
Isso é assunto deles.
O facto de estarmos a aguardar as conclusões da Royal Commission fragiliza-o enquanto Secretário para a Economia?
Não particularmente, não particularmente.
Parece-lhe que existe hipótese de os católicos australianos terem preferido que o senhor cardeal fosse lá responder em vez de o fazer daqui?
Eu não estava bem [de saúde], não pude lá ir, fui ouvido durante três dias inteiros por videoconferência. Sempre cooperei totalmente. Já saíram vários relatórios da Royal Commission. Os últimos ainda não, mas os primeiros relatórios preliminares já apareceram e eu saio bastante bem.
Então não lhe parece que haja quem pense que o facto de não ter ido não tenha levado parte das pessoas a considerá-lo culpado.
As opiniões dividem-se na Austrália. Culpado? Culpado de quê? Há pessoas que preferiam que eu tivesse ido, eu também teria preferido, se a minha saúde tivesse permitido.
No seu íntimo, como é que lida com o facto de o seu nome estar envolvido num processo deste tipo?
Bom, obviamente que é desagradável. É uma coisa que tem de ser enfrentada honesta e diretamente.
Se pudesse mudar a forma como agiu no passado, teria agido de maneira diferente?
Não sei do que é que está a falar.
Houve comportamentos que não viu e deveria ter visto?
Fui o primeiro na Austrália, se não no mundo inteiro, a instituir um sistema compreensivo, de avaliação independente, e não feita por elementos do clero, com compensações e acompanhamento psicológico. Isso é público. Por isso, é bastante irónico que eu, apesar de ter sido o primeiro a implementar uma abordagem compreensiva, seja visto como o símbolo de um velho mundo que eu fiz mudar. Uma das coisas estranhas na Austrália, e que não é mencionada, é que, durante 20 anos, houve um número muito, muito limitado de incidentes nessa região do país. Os novos sistemas e a publicidade que eles tiveram ajudaram a limpar o sistema. Isso é do conhecimento público. É de certa forma estranho que isto não seja dito de forma mais clara na Austrália.
No ano passado, atingiu os 75 anos, apresentou a sua resignação ao Papa. Fê-lo porque não quis ser um embaraço para o Papa?
Fi-lo porque a Lei Canónica me obrigava a fazê-lo aos 75 anos. Se eu me visse como um verdadeiro embaraço para o Papa, parava amanhã. Não estou aqui para embaraçar a Igreja. Estou aqui para garantir que sou tratado de forma justa, tal como quero que se faça justiça em relação ao dinheiro. De certa maneira, estou a fazer com o dinheiro o que fiz com a pedofilia em 1996.
Que foi…
Implementei uma série de reformas para lidar com uma situação desagradável. Isso é do conhecimento público. Algumas pessoas disseram que [as reformas] eram demasiado legalistas, outras não gostaram delas. Não conheço outro sistema compreensivo de compensação e acompanhamento em qualquer parte do mundo, anterior a este.
Passando agora à ida do Papa a Fátima este ano. O senhor cardeal estará presente?
Não creio. Infelizmente, nunca estive em Fátima, mas hei de ir.
Porque é que a presença do Papa é tão importante no centenário das Aparições?
É um grande centro de devoção e creio que a mensagem de Nossa Senhora, a chamada à oração, à penitência e à conversão, são absolutamente necessárias hoje, especialmente no Primeiro Mundo. A fé está em declínio em várias partes da Europa. A Igreja entrou em colapso na Bélgica, na Holanda, em partes da Suíça, na América do Norte, no Quebeque. E isto é muito, muito triste. É algo que nos deve preocupar. [O teólogo] Bonhoeffer falou na graça barata. A Europa não será salva por uma graça barata, não conseguiremos reverter a situação com soluções simples. Só será possível encontrando mais pessoas dispostas a converter-se. Conquistar a simpatia de pagãos é bastante diferente de chamá-los à conversão.
A forma de o conseguir passa pela abordagem pastoral de que Francisco tanto fala?
Depende do que se entende por isso. O Ano da Misericórdia teve um sucesso considerável. Falei com um bom amigo que é confessor habitual na Catedral de Sydney. Houve um acréscimo significativo do número de pessoas que pediram para se confessar durante o Ano da Misericórdia. O Papa conseguiu levar a mensagem de Cristo a todo o tipo de lugares onde ela não chegava. Ele foi particularmente importante na Austrália, onde as reações à crise da pedofilia variam dependendo das sensibilidades. A crise da pedofilia é indicada por algumas pessoas que se afastaram da Igreja como justificação para isso.
A demissão de Marie Collins [vítima de abusos sexuais na infância] da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores foi um revés?
Não foi uma coisa boa. Ela tem sido uma voz muito pertinente e sensata sobre a matéria, e eu apoio-a e, seguramente, apoio o cardeal O’Malley [que lidera a Comissão] neste aspeto. Prometi-lhe o meu apoio pessoal. Não tenho acesso a dinheiro, não tenho um fundo de que possa dispor. Mas aquela comissão deve ter dinheiro suficiente para fazer o seu trabalho.
Collins foi particularmente dura com a Cúria.
A Cúria, no seu todo, não estará contra [o trabalho da Comissão], mas há aqui uma cultura que faz com que algumas pessoas levem uma eternidade a fazer alguma coisa. Uma parte do problema deve residir aí. [Às vezes passam] Seis meses sem haver uma resposta ou algum tipo de ação. Sou tentado a dizer que isto é tolerado em muito poucas organizações de todo o mundo.
Mas as pessoas não batem à porta umas das outras?
Ocasionalmente. Isto não é uma coisa generalizada, mas às vezes [há estes atrasos]. É para mim um mistério porque é que as coisas não foram mais ágeis em relação ao cardeal O’Malley e à Comissão.
Enquanto Secretário para a Economia, o que é que já está feito e o que é que ainda está por fazer?
Há um ou dos nós para desfazer, mas não muitos.
Tornou-se amigo do Papa?
Diria que sim. Não diria que sou próximo, mas ele é sempre muito respeitador em relação a mim.
Qual é melhor qualidade de Francisco?
Tem uma enorme empatia com as pessoas que sofrem.
E a pior?
Não sei se ele tem partes más, quanto mais as piores.
Essa é a resposta politicamente correta.
Estamos a falar do sucessor de Pedro…
Que diz frequentemente que é um homem e um pecador…
Mas isso é o que ele diz, não eu.