910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Miniatura medieval do século XV que mostra o momento em que Dido, rainha de Cartago, se apaixona pelo troiano Eneias
i

Miniatura medieval do século XV que mostra o momento em que Dido, rainha de Cartago, se apaixona pelo troiano Eneias

Universal Images Group via Getty

Miniatura medieval do século XV que mostra o momento em que Dido, rainha de Cartago, se apaixona pelo troiano Eneias

Universal Images Group via Getty

Carlos Ascenso André: "A 'Eneida' é a obra-prima da literatura ocidental, sobretudo pela capacidade que tem de nos colocar em antevisão"

A complexidade com que Vergílio dotou a "Eneida" fazem dela "a grande obra-prima da literatura ocidental". É esta a opinião do tradutor Carlos Ascenso André, responsável pela nova tradução do poema.

    Índice

    Índice

Carlos Ascenso André começou a traduzir a Eneida em 2015. Compromissos profissionais no oriente, onde foi responsável por um projeto de implementação do estudo do português em universidades chinesas, fizeram com que o desafio se tornasse ainda maior — o tempo escasso, levou a que a tradução se fosse fazendo lentamente, ao ritmo de “20 versos cada dia e não era todos os dias”. Foi só quando regressou a Portugal, há cerca de dois anos, que o antigo professor da Faculdade de Letras de Coimbra encontrou a tranquilidade necessária para mergulhar a fundo no maior desafio de tradução da sua vida e concluir o trabalho iniciado em 2015. A sua tradução da Eneida, a primeira em verso em muito tempo, chegou às livrarias no mês passado, numa edição da Cotovia, editora por onde lançou toda a poesia de amor de Ovídio e os poemas de Tibulo. O livro surge alguns meses depois da publicação de uma nova tradução das Bucólicas e das Geórgicas, também de Vergílio, da responsabilidade de  Gabriel A.F. Silva.

A nova tradução da Eneida é “efémera” como todas as traduções o são, mas é o mais próximo que Carlos Ascenso André conseguiu chegar do original recorrendo à linguagem do seu tempo. “Eu falo a língua do meu tempo, respeitando o latim original”, admitiu durante uma entrevista telefónica com o Observador. “Quando traduzo, devo ter consciência que não sou capaz de traduzir o poema original, porque, para ser o poema original, era ele que lá estava. Então, tenho de fazer chegar ao meu potencial leitor, que neste momento é um leitor do ano de 2020 e dos anos que vierem aí, um texto que seja o mais próximo possível.” Isso faz da tradução uma coisa obrigatoriamente datada, mas o tradutor não vê nada de trágico nisso — quando decidiu que queria traduzir poesia latina, sabia perfeitamente no que se estava a meter.

E foi precisamente pelas dificuldades de traduzir um poema como a Eneida, “a obra-prima da literatura ocidental”, sobretudo pelo seu caráter profético no que diz respeito à História da Europa, que a conversa com Carlos Ascenso André começou.

Carlos Ascenso André demorou cinco anos a concluir a tradução da Eneida. A nova edição foi publicada em junho, pela Cotovia

Esta foi uma tradução que lhe levou alguns anos.
Não sei dizer ao certo quando comecei, mas foi seguramente quando publiquei os Remédios Contra o Amor [de Ovídio]. Foi em 2015, sensivelmente. Digamos que foram cinco aninhos que a Eneida me tomou. Estava no oriente e tinha muito trabalho. O peso pesado disto tudo aconteceu depois de ter voltado e de ter começado a ter o tempo todo, porque decidi não regressar a Coimbra [onde dava aulas na Faculdade de Letras]. Facilitou-me a vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Conseguiu encontrar tempo para a Eneida.
Foi de facto aí que encontrei tempo, porque a Eneida precisava de uma dedicação muito grande. Enquanto estive no oriente, devo ter traduzido dois ou três Livros, mas não podia ir além disso, não conseguia traduzir mais do que 20 versos cada dia e não era todos os dias. Era um trabalho lento, moroso. Beneficiava de uma certa solidão que tinha lá, mas só podia traduzir à noite. Foi mesmo preciso vir para o meu espaço. Ainda por cima vivo no campo, posso viver bucolicamente, e isso permitiu-me dedicar o tempo inteiro dos últimos dois anos à Eneida.

Foi esse o maior desafio com que se deparou? A escassez de tempo?
Já traduzi muito, mas nunca tive um desafio desta dimensão. Por alguma razão, muita gente considera que a Eneida é a obra-prima da literatura ocidental. Eu considero. Exige uma atenção aos pormenores. Quando ensinava a Eneida, costumava dizer aos meus alunos que nenhuma palavra está por acaso. E se nenhuma palavra está por acaso temos de nos concentrar em cada uma e descobrir porque é que ela está naquele lugar, o que é que significa naquele lugar, porque se estivesse noutro lugar, provavelmente significaria uma coisa diferente e teria uma dimensão estética e uma carga semântica diferentes. Isso é um trabalho que se faz em cada momento. Não é um trabalho de olhar para um texto uma hora ou duas por dia, é um trabalho que requer muita atenção. Às vezes dormimos com um problema na cabeça e acordamos com ele solucionado.

"Os grandes textos literários são eternos, as traduções são efémeras. Esta tradução tem prazo de validade. Quem me dera a mim que valesse umas dezenas de anos."
Carlos Ascenso André, tradutor da "Eneida"

Esta é a primeira tradução em verso da Eneida em muito tempo.
Há muita gente que ao traduzir os poetas clássicos, e eu tenho todo o respeito por essa opção, traduz colocando em prosa. Acho que o texto perde o sentido. Perde o aspeto, desde logo. Além disso, o verso não é só uma questão de forma. Tem uma carga estética, uma semântica, tem a posição das palavras, o ritmo. O latim não tem rima, claro, e o ritmo era diferente. O latim tem uma prosódia que não temos [em português], porque não temos sílabas longas e breves, mas se quiséssemos repor isso tudo, estávamos a fazer marcenaria, não estávamos a traduzir. Portanto, a primeira coisa que se tem de fazer quando se traduz poesia é fazer com que o poema continue a ser poema, mas sem o adulterar muito. Ele vai perder o ritmo [original], vai ter outro, um ritmo na nossa língua do século XXI. Não será, manifestamente, o ritmo do latim do século I a.C.. Quando traduzo, devo ter consciência que não sou capaz de traduzir o poema original, porque, para ser o poema original, era ele que lá estava. Então, tenho de fazer chegar ao meu potencial leitor, que neste momento é um leitor do ano de 2020 e dos anos que vierem aí, um texto que seja o mais próximo possível. Não terá a beleza poética do texto original, mas deverá ser o mais próximo possível. Este é o meu desafio quando faço tradução, e se esse era um desafio com a poesia de Ovídio ou Tibulo, com Vergílio o desafio é ainda maior. Hoje releio o texto e às vezes surpreendo-me com as soluções que encontrei. Isto é uma obra-prima e uma obra prima não vai morrer nunca.

Uma obra-prima é eterna.
Os grandes textos literários são eternos, as traduções são efémeras. Esta tradução tem prazo de validade. Quem me dera a mim que valesse umas dezenas de anos.

Acha importante que as traduções reflitam o tempo em que são feitas?
Sim. Uma tradução é um compromisso entre o texto original e o tempo em que foi escrito e o tempo para o qual é traduzido. A carga semântica que empresto a determinada palavra não vai funcionar seguramente daqui a 50, 60 ou 70 anos. Ainda há dias o romancista Mário Cláudio pôs quatro ou cinco versos da minha tradução na página dele do Facebook. O passo que ele escolheu é o da morte de Dido, e há um momento, depois disso, em que digo: “A fama faz disso festim”. Isto é uma metáfora que está no latim, não inventei. No latim está qualquer coisa que diz que a morte de Dido foi uma festa para a fama, porque pôde ser linguareira e abalar a cidade. “A fama faz disso festim” é uma expressão que seguramente faz sentido hoje, em 2020, mas não sei se fará em 2070. Não tenho a noção. Eu falo a língua do meu tempo, respeitando o latim original, que, para fazer valer um conceito que aprendi, também já foi transformado. É o mesmo, mas foi transformado pelos séculos, pelas leituras que dele foram feitas, pelas interpretações. Aquele texto que tenho não é o texto original pelo simples facto que na minha cabeça estão as interpretações, as leituras. Há muita coisa pelo meio que me impede de ter acesso ao original.

E tudo isso influencia a forma como olha para ele e o interpreta.
Claro. Não posso ser alheio aos dois mil anos que trouxeram o texto até agora. Não posso dizer “isso não me diz nada”, porque diz. Mesmo que queira que não diga, diz. Tudo isso interfere na minha tradução, na minha leitura, e a minha leitura comanda a tradução. Não digo isto com um sentido de frustração. Quando escolhi esta vida, sabia no que me estava a meter. Tenho consciência que o meu texto é efémero. Não quer dizer que não haja alguém que lhe pegue daqui a 50 anos e diga “olha, que tradução interessante!”, mas será só uma tradução interessante.

Uma parte da "Eneida" passa-se em Cartago, onde Eneias se estabeleceu junto da rainha Dido. A aventura amorosa terminou graças à intervenção de Júpiter, pai dos deuses

Universal Images Group via Getty

A obra-prima do ocidente que foi muito além de Roma: ”Há uma dimensão profética na Eneida

Disse que a Eneida é a grande obra-prima da literatura ocidental.
Acho que é.

É, pelo menos, a grande obra-prima de Vergílio. Surge depois de outros poemas de menor dimensão, as Bucólicas e as Geórgicas. Parece ter existido um salto muito grande destas duas obras para a Eneida.
Sim e não. Vergílio faz uma progressão, e acredito que não é por acaso. O seu percurso é filosófico e, ao mesmo tempo, poético. Além disso, tem o seu próprio percurso biográfico, mas não quero ser positivista e estar aqui a misturar a biografia [com a obra], embora tenha de ser misturada. Quando Vergílio escreve as Bucólicas é um jovem recém chegado a Roma, a viver ainda o drama do resultado das guerras civis [após a morte de Júlio César em 44 a.C.], talvez ainda a viver a utopia. As Bucólicas vivem da utopia do renascimento da idade de ouro [latina], [da crença que] ainda teria sido possível naquele tempo.

Entretanto, Vergílio ia melhorando a sua consciência filosófica, sobretudo no epicurismo. À medida que se foi aventurando na filosofia epicurista, foi criando uma consciência menos otimista em relação ao futuro. As Bucólicas que têm uma curiosidade, que tenho o hábito de dizer, terminam em morte. Têm um fim triste. A última Bucólica é aquela em que Galo parte do paraíso bucólico, ou seja, da Arcádia, onde vivem os pastores. A Arcádia não existe, é uma utopia. Os pastores cantam o amor dentro da Arcádia, mas o amor concretiza-se apenas no canto, não se concretiza de outra forma. O amor existe para ser cantado. No final da Bucólica X, o pastor Galo, que não é nada mais nada menos do que o poeta [Gaio Cornélio] Galo, amigo de Vergílio, deixa a Arcádia para ir em busca de Licóris, a amada que o tinha traído, que tinha partido com um soldado. Ao partir para fora da Arcádia para viver um amor além de o cantar, Galo marcou-a. Ou seja, a Bucólica X é a morte da Arcádia.

Nas Geórgicas, encontramos ainda uma crença possível no renascimento de Itália, mas o que paira é a ideia triste da terra devastada pelas guerras civis. As Geórgicas são um poema didático, é certo, um poema da terra, mas são tristes, porque [falam] de uma Itália devastada que o poeta epicurista acredita poder ressurgir através do apego à terra. Não há heróis especiais, mas, curiosamente, as Geórgicas terminam em morte, com a morte de Orfeu. A última Geórgica é a morte de Orfeu e Eurídice com tudo o que isso possa significar. Claro que é metafórica, mas é uma morte. Ao longo deste percurso todo, Vergílio evoluiu para o grande canto. Ele desenha este percurso e desemboca na Eneida que, para ele, era a grande obra.

[Na Eneida], ele fundiu os heróis míticos com os heróis do seu tempo. A fusão maior é a de Augusto com Eneias e de Eneias com Augusto. Na minha leitura, são um só. Eneias é sempre Augusto e Augusto é sempre Eneias. Não sei se é Augusto que é Eneias ou se é Eneias que é Augusto. Nunca sabemos quando estamos a ler o poema. Foi ali que ele desenhou Roma de outra forma porque, ao mesmo tempo que é o canto da queda de Troia e da viagem de Eneias, a Eneida é o canto do nascimento e do triunfo de Roma, cuja história se funde com a do herói.

"Foi ali que ele desenhou Roma de outra forma porque, ao mesmo tempo que é o canto da queda de Troia e da viagem de Eneias, a' Eneida' é o canto do nascimento e do triunfo de Roma, cuja história se funde com a do herói."
Carlos Ascenso André, tradutor da "Eneida"

Essa história de Roma é, na versão de Vergílio, uma história de contradições. Começa por dizer isso mesmo na introdução à sua tradução. 
Sim, porque, repare, o herói é um semideus, mas não não quer ser herói. Ele recusa sempre a sua condição divina. Não recusa objetivamente, não há nunca essa afirmação, mas, na prática, recusa essa condição. Ele chora, está sempre do lado dos que sofrem, padece como qualquer mortal. Ele não tem nada da dimensão heroica dos heróis homéricos. E sobretudo tem defeitos, e muitos: é impulsivo, reage arrastado pela fúria. O final do poema é quase tenebroso. [A morte de Turno] é uma morte a sangue frio, é absolutamente injustificável.

Outra contradição.
Sim. No Livro VI, o seu pai, Anquises, diz-lhe que ele há-de governar o mundo com o seu poder, e depois usa uma expressão que pretende ser a máxima de vida para Eneias: “Poupar os que se submetem e abater os soberbos”. Agora dê um salto para o final do poema. O que é que Eneias tem diante dele? Um vencido, de mãos estendidas, [que lhe diz] “venceste, fica com Lavínia” e que ainda por cima lhe pede para não levar mais longe o seu ódio. Era momento exato para Eneias fincar no preceito de Anquises o futuro de Roma, ou seja, poupar os que foram vencidos. Só que, em vez de o poupar, é toldado pelas Fúrias e mergulha a espada no peito de Turno. E o último verso [do poema], tal como aconteceu nos anteriores, [é sobre a morte]: “E a vida, com um gemido, se esvai, revoltada, para o mundo das sombras”. Acho que foi Saint-Exupéry que disse nunca ter conseguido perceber como é que Vergílio conseguiu acabar a Eneida com aquele verso.

Não haverá aí uma constatação por parte de Vergílio de que a história de Roma é uma história de violência, de morte e sangue derramado?
É isso mesmo. É por isso que digo que não é só a história de Roma [de que fala], porque há uma dimensão profética na Eneida.

O que é que quer dizer com isso?
A História da Europa é a História dos seus impérios, começando com o de Roma. E nesta História de impérios, em que eles se constroem através da violência, porque não há nenhum na Europa que não tinha sido marcado por isso, há um percurso ascendente e há um percurso de ruína. No percurso ascendente, os homens que fizeram os impérios e se consideravam deuses, exatamente como Augusto, ficaram marcados por uma sementeira de cadáveres. Todos deixaram para atrás de si muitos cadáveres, ou seja, deixaram cair quem tinham de deixar cair, não por uma razão objetiva, mas porque deixar cair era importante para o sucesso que vinha a seguir. Todos eles foram, se me é permitido um anacronismo, maquiavélicos na gestão do seu percurso. Eneias foi um bocadinho isso, apesar de aparentemente não o querer ser. É esta a leitura que faço.

Eneias era troiano. Devemos olhar para Roma como uma nova Troia?
Não na totalidade. Há várias razões: uma é, desde logo, objetiva, porque Juno impõem a Júpiter [a morte de Troia no final da Eneida], mas há outra que, para mim é muito mais forte. No Livro VI, Eneias desce aos Infernos como troiano. Não é possível passar nos Infernos e sair. É um sítio onde se entra, passa-se o Rio do Esquecimento e morre-se, mas Eneias não morre, e isto é mais do que uma metáfora.

Eneias é sempre tratado como troiano durante a primeira parte do percurso nos Infernos, onde ele se encontra o seu passado pela ordem inversa e assim se vai libertando dele. Na minha leitura, ele vai cometendo o seu suicídio enquanto troiano. Filosoficamente, a passagem de Eneias pelos Infernos é um suicídio. Como é que isto se comprova? A última fala de Anquises, a tal de que lhe falava há pouco, é assim: “A ti compete governar os povos com tua autoridade, ó romano, lembra-te bem”. Na despedida, Anquises chama-lhe romano. Ele já não é mais troiano, e sai dos infernos como romano quando entrou como troiano. Há aqui este trânsito que tem de ser tido em consideração.

"Acho que Vergílio é um poeta misógino. A única personagem feminina que trata com elevação, apesar de estar contra o projeto, é Camila, a amazona. Aliás, li um vez uma frase que achei muito interessante: Camila foi a única mulher que Vergílio amou."
Carlos Ascenso André, tradutor da "Eneida"

Vergílio “esculpiu o caráter de cada personagem”. Todas “têm densidade filosófica e psicológica”

A descida aos Infernos de Eneias é decalcada da Odisseia, mas o poema de Homero não tem esta complexidade filosófica.
Não, não tem. Não há muitos heróis que tenham passado pelos infernos. Ulisses…

Orfeu, de que falámos há pouco.
E Pirítoo [herói natural da Tessália que, na Ilíada, é apresentado como filho de Zeus e de Día]. Não são tantos quanto isso os heróis míticos que passaram pelos Infernos. Mas [na Eneida] é muito densa, há uma complexidade fortíssima. Toda a passagem é de uma densidade psicológica tremenda e de uma densidade filosófica tremenda.

Este é apenas um dos episódios inspirados nos poemas homéricos. Vergílio foi buscar muitas outras coisas à Ilíada e à Odisseia.
Tudo, tudo. A estrutura é homérica. A primeira metade da Eneida é a viagem.

Como na Odisseia.
Chamamos habitualmente à primeira metade da Eneida a Eneida odisseica. É a viagem, e há ali muita coisa que tem a sua semelhança [com a Odisseia]. Dido podia ser Nausícaa, a princesa dos feaces, [o ciclope] Polifemo aparece nos dois lados… A segunda metade é a Eneida iliádica, [é] a guerra. Os elementos estão lá, mas estão profundamente transformados e ganharam todos uma densidade que não existe em Homero. Em segundo lugar, há uma concentração fortíssima, quase que podia dizer violentíssima. Cada um dos poemas homéricos tem 24 livros, tanto a Odisseia como a Ilíada, e a Eneida faz tudo isto em 12. Ou seja, reduz de 48 para 12 [livros]. Claro que isso corresponde aos cânones do tempo. Vergílio era um poeta neotérico e, portanto, um poeta que adotou os princípios de concisão que era preceituados pela escola alexandrina, mas ao fazê-lo optou por reduzir os elementos narrativos, dizendo em meia dúzia de versos o que Homero precisou de centenas [para dizer] e aumentando a densidade filosófica e psicológica. Todas as personagens têm densidade filosófica e psicológica.

Podemos dizer que esse o grande feito de Vergílio foi a densidade psicológica com que dotou cada uma das personagens?
É verdade, ele esculpiu o caráter de cada personagem. E não é só de uma ou duas, a galeria é notável — não é só Eneias, é também Turno, Palinuro, Anquises, Dido, Ana, que é uma personagem fantástica. A irmã de Dido é uma personagem fantástica, de que se fala muito pouco, porque é a maior vítima da história.

Juno é a principal oponente de Eneias. A deusa chegou a pedir a Éolo que destruísse a frota do troiano

Universal Images Group via Getty

Porquê?
Pela simples razão que é ela que fica viva num território que não é dela. Fica condenada à solidão. Mas são dezenas de personagens, todas elas ricas, umas mais do que outras. E depois há aquela personagem feminina fabulosa, Camila, a amazona [rainha dos volscos e aliada de Turno]. Claro que tem muita coisa de Pentesileia, [uma amazona] que é cantada por Homero, mas Camila não é Pentesileia. Camila tem beleza, feminilidade, que Pentesileia não tem.

Vergílio parece ter dado muito mais atenção às personagens femininas do que Homero alguma vez deu.
É verdade, apesar de Vergílio ser misógino. As personagens femininas de Vergílio tendem para a desgraça. Estão todas do lado do mal, todas são opositoras à viagem [de Eneias]. Não há uma única personagem feminina que não contrarie o projeto.

Então e Vénus?
É caso único, porque mesmo as outras deusas são todas horríveis para o projeto, não há praticamente ninguém que escape. E mesmo Vénus há um momento em que a coisa é complicada: ao apadrinhar a relação de Eneias e de Dido, está a dar a Eneias confortos e a deixá-lo ficar como rei em Cartago. É isso que faz com que ela e Juno se entendam, aquilo serve para as duas. Aí temos de nos interrogar se é assim tão favorável ao projeto quanto pode parecer. É protetora do filho, isso é. Tem um amor maternal em relação a Eneias.

Mas acho que Vergílio é de facto um poeta misógino. A única personagem feminina que trata com elevação, apesar de estar contra o projeto, é Camila, a amazona. Aliás, li um vez uma frase que achei muito interessante: Camila foi a única mulher que Vergílio amou.

Porquê ela?
Acho que isso tem a ver com uma coisa — Vergílio nunca maltrata os adversários de Eneias. A leitura é que os adversários de Eneias são uns desventurados do destino, são vítimas dos fados. Na minha opinião, mesmo o próprio Turno não é maltratado. Ele tem a sua razão e a sua verdade e combate por ela.

A “epopeia da condição” humana criada para divinizar um homem que nunca deixará de ser humano

Na introdução, chama à Eneida a epopeia da condição humana e, como vimos, o poema faz de facto um retrato muito humano das personagens. É esta uma das razões pelas quais a considera a obra-prima da literatura ocidental?
É uma das razões. Acho que a Eneida é a obra-prima do ocidente pela carga estética, a carga filosófica e sobretudo pela capacidade que tem de nos colocar em antevisão. Por isso é que digo que tem uma certa dimensão profética na História do ocidente. Mas também porque é uma rara epopeia em que os heróis são seres humanos como nós. nenhum dos heróis daquela galeria é outra coisa que não um ser humano como nós, e sobretudo o grande herói que é Eneias. É isso que é surpreendente na Eneida. Repare: uma das razões pelas quais a Eneida é feita é para desenhar uma origem mítica para o imperador romano. Ao escrevê-la, Vergílio sabia que estava a legitimar a divinização de Augusto. Ao dar a Augusto Eneias como antepassado, está a dar-lhe um antepassado que é filho de uma deusa [Vénus] e, ao mesmo tempo, que faz faz o oposto disto, que é fazer com que essa divindade, chamemos-lhe assim a Eneias agora, seja tudo menos um deus. Eneias é humano, é essencialmente humano, e é esta contradição que me faz desenhar a Eneida como a epopeia da condição humana, como uma epopeia feita por seres humanos para desenhar um deus.

"Eneias é humano, é essencialmente humano, e é esta contradição que me faz desenhar a 'Eneida' como a epopeia da condição humana, como uma epopeia feita por seres humanos para desenhar um deus [Augusto]."
Carlos Ascenso André, tradutor da "Eneida"

Apesar das ambições divinas, Augusto nunca deixará de ser humano.
Nunca deixará. Os atos tresloucados de Eneias ao longo do poema correspondem em iguais aos atos tresloucados de Augusto durante o seu percurso para o império. Dou-lhe um exemplo simples que passa despercebido à maior parte das pessoas: depois da morte de Palante, há um momento em que Eneias sacrifica a sangue frio aos manes de Palante alguns dos jovens das famílias mais ricas do lado de Turno. Isto é algo que arrepia. Os romanos não cultivavam o sacrifício humano, e portanto sentiam-se arrepiados com isto, mas perante esta cena lembravam-se de certeza de que, na guerra, Augusto teve atos semelhantes. Isto é um paralelo entre os dois percursos.

E uma lembrança de que o império teve um custo.
Teve. Todos estes percursos têm um custo, como todos os impérios do ocidente tiveram um custo. Tiveram muitos loucos pelo caminho, muitos assassinatos. no império francês há os imperadores e há os Richelieu, há as personagens que manobram as teias, e é por isso que a Eneida representa, em boa medida, a História do ocidente.

Nota: optámos por seguir o critério adotado em artigos anteriores e escrever o nome do poeta da Eneida como Vergílio e não Virgílio, como surge nesta tradução

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.