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PAULO NOVAIS/LUSA

PAULO NOVAIS/LUSA

Cartão do Cidadão em 5 minutos? Só depois de esperar horas (ou meses) para chegar ao balcão

O Governo anunciou que o Cartão do Cidadão vai ser feito em apenas 5 minutos, mas isso fará pouca diferença nos serviços em ruptura. Há senhas limitadas, horas de espera e marcações que demoram meses.

Maria da Paz Brito espera sem saber bem o quê. Está sentada no piso -1 do Instituto de Registos e Notariado (IRN), na Avenida Fontes Pereira de Melo, sem a senha de que precisa, mas tem um problema urgente para resolver. “Preciso de acompanhar o meu pai numa viagem, por causa de um problema de saúde”, conta, aflita. Perdeu o Cartão do Cidadão e também não tem um passaporte válido. A viagem é já no domingo — dois dias depois desta sexta-feira, em que a encontrámos na sala de espera. Quando chegou, às 9h40, já não havia senhas para o cartão de identificação. Tirou senha para o passaporte (para ver no que dava), mas, ao fim de um par de horas de espera, descobriu que só podia tratar daquele documento se tivesse consigo um Cartão de Cidadão válido. O problema acabaria por resolver-se, contou, mais tarde, ao Observador: a ajuda da coordenadora do serviço e uma máquina que voltou temporariamente a dar senhas permitiram que, ao fim de cerca de três horas e meia, Maria da Paz Brito, de 31 anos, saísse daquele balcão com a garantia de que, durante a tarde, podia levantar um Cartão do Cidadão temporário no Campus da Justiça.

Será, ainda assim, um caso raro. Quem passa na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, antes das oito ou nove da manhã, já está habituado a ver a longa fila que dobra a esquina do edifício onde se encontra o IRN. Assim que as portas abrem, às 9 horas, começa a corrida às senhas, que se esgotam em menos de um fósforo. A interrupção na distribuição de senhas é decidida pelo próprio serviço — assim como o momento em que voltam a distribuí-las. Manuela (nome fictício) chegou às 9h30 e ainda conseguiu senha, mas não hesita em criticar o que vê, nem se inibe de o fazer em voz alta. “Entre as 9h30 e as 10 horas, vai tudo [os funcionários] tomar o café. Só atenderam duas pessoas”, diz, lembrando que trabalhou na Administração Pública e sabe bem como é que as coisas funcionam. “Andou mais rápido nestes 30 minutos [por voltas das 11h30] do que na manhã inteira.”

Nos serviços do Campus da Justiça e da Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, encontrámos utentes à espera há várias horas. As senhas tinham acabado pouco depois da abertura das portas.

Acompanhada pelo marido, Manuel tinha a senha 60 na mão, mas ainda só tinham chamado até à senha 40. Esta pertencia a Mariana Bernardo, que, ao contrário de outros, até estava num dia de sorte. Quando chegou, às 10 horas, já não havia senhas, mas, como que por artes mágicas, o segurança tirou uma do bolso: era o número 80. Menos mal. Logo depois, uma senhora que precisava de ir a outro sítio e de ser atendida mais tarde propôs-lhe uma troca — e assim chegou à senha 40. Estava ali porque decidiu arriscar: tentou o agendamento prévio, mas a melhor marcação disponível seria apenas daí a um mês, em Vila Franca de Xira, e não podia continuar a conduzir todos os dias já com o Cartão do Cidadão caducado.

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Mariana Bernardo teve sorte: em cerca de duas horas, resolveu o problema. Mas muitas das pessoas que, esta sexta-feira, aguardavam naquela sala de espera chegaram antes das 8 horas da manhã, esperaram na rua que as portas abrissem e voltaram a esperar que o número que lhes tinha sido atribuído piscasse, finalmente, no quadro eletrónico. Depois, cada uma delas tirou uma fotografia, deixou as impressões digitais, fez uma assinatura que será digitalizada e confirmou os dados no sistema, num processo que pode levar entre 15 minutos e meia hora.

Novo sistema em Espaços do Cidadão permite renovar cartão de cidadão em cinco minutos

O cenário parece bater de frente com a imagem de agilidade e modernização transmitida ainda esta quarta-feira pela secretária de Estado da Justiça, Anabela Pedroso, e pelo secretário de Estado Adjunto e da Modernização Administrativa, Luís Goes Pinheiro, que anunciaram que, quando uma nova versão do sistema informático entrar em funções, será possível renovar o cartão em cinco minutos. Descentralizar e melhorar o fluxo dos serviços são as palavras de ordem para um atendimento que, segundo o Ministério da Justiça, será “mais cómodo, mais rápido”. Os dois governantes dizem que essa mudança vai resolver o problema das pessoas que, hoje em dia, esperam cinco horas até chegar o momento em que precisam de gastar os tais cinco minutos — mas é difícil perceber de que forma uma redução de 10 minutos no processo resolverá um problema que, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, revela serviços em ruptura, com horas de espera ou meses para os agendamentos. Essa é, aliás, uma grande parte das quase 500 reclamações que o IRN tem no Portal da Queixa.

As senhas para os atendimentos no IRN da Av. Fontes Pereira de Melo acabaram antes das 9h40 desta sexta-feira

Ao Observador, o Ministério da Justiça diz que, com o novo sistema, “o novo fluxo de atendimento é mais rápido porque permite, mediante autorização do cidadão, renovar o cartão com aproveitamento dos dados anteriormente recolhidos para o seu anterior documento de identificação, nomeadamente impressão digital, fotografia e altura”. Além disso, haverá 54 espaços adicionais (os Espaços Cidadão), que vão “permitir descongestionar a pressão de atendimento em Lisboa”. O problema é que também esta medida tem as suas limitações: “A medida abrange as primeiras renovações de Cartão de Cidadão com validade de cinco anos, desde que o mesmo não se encontre caducado há mais de 30 dias e os pedidos de renovação por parte de cidadãos com idade igual ou superior a 25 anos”.

As senhas acabam mal as portas dos serviços abrem

Quem já teve de esperar que as portas do IRN, no Campus da Justiça (Lisboa), abrissem às 8h30, sabe que a fila vai de um edifício ao outro e continua quase a perder de vista. Ana Vilela chegou às 8h50 e ainda apanhou a senha 125, mas, cerca de 20 minutos depois, as 140 ou 150 senhas distribuídas diariamente estavam esgotadas. Volvidas quatro longas horas de espera, quando o Observador a encontrou a passar o tempo de telemóvel na mão, ainda faltavam 19 números para ser atendida. Aproveitou o dia que tinha de férias para tratar do assunto — mas escolheu um dia em que os próprios serviços só estavam a funcionar a meio gás, por causa da greve dos funcionários. Fosse como fosse, desta vez havia de ser. Já antes tinha tentado tirar senha ali no Campus da Justiça e na Loja do Cidadão das Laranjeiras, sem sucesso. Tinha tentado o IRN na Avenida Fontes Pereira de Melo, mas as 70 pessoas que encontrara pela frente fizeram-na abandonar a sala. Até tinha tentado agendar, mas a vaga só para junho fê-la desistir dessa opção.

Ao esbarrarem com a falta de senhas, os utentes são informados que, naquele serviço, só há senhas de manhã — com atendimentos até às 14 horas — e que da parte da tarde, entre as 14 horas e as 19h30, só para quem tem marcação. Adama Barros não sabia. Quando chegou com o filho de 12 anos, por volta das 13 horas, já não tinha senha. Mas tinha mais um caso urgente e o vigilante deu-lhe uma senha de outro serviço para tentar a sorte. Tinha acabado de chegar da Guiné, não tinha conseguido tratar dos documentos da criança na Embaixada de Portugal — estavam à espera de máquinas com leitura biométrica, contou — e esperava poder fazê-lo em Portugal antes de embarcar, no sábado, para Inglaterra, onde vive. Já tinha estado na Amadora, em Queluz e nas Laranjeiras, sem sucesso. Se não resolvesse o assunto esta sexta-feira, teria de deixar o menino ao cuidado de uma tia.

No Portal da Queixa, o Instituto dos Registos e Notariado tem 493 queixas, grande parte das quais relacionada com o Cartão do Cidadão, e apenas meia estrela na apreciação global — Portal da Queixa

As estratégias de distribuição de senhas vão variando. No Campus da Justiça são no máximo 150, distribuídas até acabarem. Na Conservatória do Registo Predial de Trofa só são dadas 50 senhas, queixou-se o utente Ricardo, no Portal da Queixa. “Em Sintra só permitem 40 senhas diárias, que terminaram 10 minutos depois da abertura da porta”, queixou-se Inês Simões no mesmo portal, depois de já ter feito muitas viagens entre Lisboa e Sintra. “As pessoas esperam na rua, ao frio, duas horas para conseguirem senha. A espera desde a atribuição de senha até ser atendida foram outras duas horas.” No balcão da Avenida Fontes Pereira de Melo não foi possível perceber quantas senhas foram distribuídas — ou quantas costumam ser. Não há número limite de senhas, nem hora certa para encerrar a máquina, tudo depende da quantidade de pessoas que estão à espera, disse um dos seguranças ao Observador. Às vezes, chega-se à hora de almoço já sem senhas para distribuir, outras vezes ainda estão disponíveis às 19 horas.

Há quem tente ir a vários locais no mesmo dia: Queluz às 8 horas, Odivelas às 9h30, depois Amadora e Agualva-Cacém, sempre sem sucesso, como contou Sara Oliveira, no Portal da Queixa. Jorge Romeu contou ao Observador que já tinha ido à Fontes Pereira de Melo umas 10 vezes, ora de manhã, ora à tarde, e nunca tinha conseguido senha. Até que ouviu que os serviços seriam reforçados no dia 15 de abril e teve sorte — só esperou uns 20 minutos. Esta sexta-feira estava mais descansado, só estava à espera para levantar o cartão.

Mais de quatro horas à espera para ser atendido

No Campus da Justiça, as pessoas que se juntam na fila antes da 8h30 tiram a senha e entram numa sala ampla, ainda assim pequena para comportar tanta gente que espera. Uns desistem, outros vão tratar de outros serviços, outros ainda aproveitam para ir dar uma volta ao Centro Comercial Vasco da Gama, ali perto. “Mas uma pessoa tem sempre a paranoia que a fila anda mais depressa [quando não estão presentes]”, contou Ana Barreto, que tinha chegado às 9 horas, mas que às 13h15 ainda esperava pela sua vez. Faltavam ainda cinco números.

Quando Ricardo Lopes e Sofia Mendes chegaram, às 9h30, já não havia senhas. Tiveram a sorte de ficar com a senha 121 de uma pessoa que acabou por desistir, mas, ainda assim, só conseguiram ser atendidos perto das 13 horas. A renovação do Cartão do Cidadão não é para nenhum deles, mas para a filha de cinco anos, que já não tem posição para estar sentada e não pára de perguntar à mãe quando chega a vez deles. “Tentámos marcar em vários sítios, mas só havia vaga para junho”, contou Ricardo Lopes. O documento só caduca no próximo mês, mas os pais aproveitaram um dia de férias para tratar do assunto: vão precisar do cartão para a matrícula da menina. Sofia Mendes não esconde a revolta: não percebe porque é que uma criança que vai fazer o Cartão do Cidadão — e é obrigada a estar presente — não é considerada prioritária (só é dada prioridade às crianças até aos dois anos).

“Tentámos marcar em vários sítios, mas só havia vaga para junho.”
Ricardo Lopes, que acompanhava a filha de cinco anos para a renovação do Cartão do Cidadão

O atendimento prioritário é também motivo das reclamações no Portal da Queixa, não por quem reclama esse direito, mas pelas pessoas que se veem ser passadas à frente. Ana Jesuíno deu o exemplo da Conservatória do Registo Civil no Seixal: “Para o pedido de renovação do Cartão de Cidadão, entre as 10h20 e as 12 horas do dia 28 de fevereiro, foi atendida uma pessoa com senha não prioritária. Passadas 3h45 após a abertura tinham sido chamadas oito senhas para o mesmo assunto.”

Os funcionários acabam por ser uma espécie de “saco de boxe” de quem não compreende tanta demora, como Manuela, que esperava com o marido na Fontes Pereira de Melo: “Estes assistentes administrativos acham que exercem poder sobre as pessoas por fazê-las esperar”, atira.

Contornar as filas de espera — mas esperar meses para conseguir

As filas da Fontes Pereira de Melo, do Campus da Justiça e de muitas outras conservatórias e Lojas do Cidadão do país são bem conhecidas. Por isso, há quem tente escapar-se às esperas longas e ao risco de não ter senha. Amílcar Paulino aproveitou uma visita aos pais em Valpaços, na Páscoa, e tratou do Cartão do Cidadão por lá. Demorou uns 45 minutos, o que até foi mais do que contava, mas era Páscoa e mais pessoas tinham pensado no mesmo. Menos de uma semana depois, tinha recebido uma carta em casa a dizer que já podia levantar o cartão no IRN que tinha escolhido.

Outra opção para tratar do Cartão do Cidadão, sem ter de esperar horas intermináveis, é fazer um agendamento. Todas as pessoas com quem o Observador falou esta sexta-feira confirmaram que foram atendidos dentro da hora marcada e demoraram 10 ou 20 minutos para tratar do documento. Mais difícil pode ser fazer o próprio agendamento. Ana Assunção estava à espera para levantar o cartão, na Fontes Pereira de Melo, mas conta como tudo começou. Tinha ido ao Campus da Justiça já depois da hora de almoço para tirar senha quando percebeu que poderia agendar. “Deram-me um papel com um número de telefone. Liguei e uma mensagem remeteu-me para um endereço de email. E o email que recebi de resposta mandou-me ir ao site.” Quando finalmente chegou ao site, só conseguiu uma vaga para daí a quase dois meses.

“Deram-me um papel com um número de telefone. Liguei e uma mensagem remeteu-me para um endereço de email. E o email que recebi de resposta mandou-me ir ao site.”
Ana Assunção, que esperava para levantar o Cartão do Cidadão

A espera de vários meses justifica que, quem tenha urgência, opte por tentar arranjar uma senha em qualquer balcão. Em Lisboa e nos concelhos limítrofes, a maioria das conservatórias só tem vaga para julho ou agosto, como é possível consultar na página online dos agendamentos. O caso extremo é o de Odivelas, cuja primeira data disponível, esta sexta-feira, era em novembro de 2019. Mesmo Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira já só têm vagas para junho.

No Porto, os agendamentos parecem um pouco melhores, com vagas disponíveis no final de maio. Em Vila Nova de Gaia, se tentasse marcar esta sexta-feira, teria vaga já para este sábado. Se fosse em Santo Tirso, seria atendido no início de maio. Mas Maia, Matosinhos e Penafiel também já só têm vagas para junho. Se tiver possibilidade de viajar ou quiser aproveitar para visitar a família, o Observador encontrou vagas para os próximos dias: em Bragança, Guarda, Portalegre e Viseu, para segunda-feira, ou em Aveiro e Coimbra, para dia 2 de maio.

Existe ainda outra opção, mas o acesso a ela é muito mais limitado: a renovação online do Cartão do Cidadão. Esta opção só está disponível para portugueses com mais de 25 anos, cujo cartão ainda tenha validade por 60 dias, pelo menos, e que tenha sido perdido, destruído, roubado ou furtado — e, mesmo assim, é apenas uma segunda via, o que significa que só durará até ao fim da validade do cartão que perdeu ou que lhe roubaram. Renovação total, só para quem tenha mais de 60 anos, com cartão ainda válido — e desde que tenham um leitor de cartões. Ana Assunção, de 37 anos, não percebe porque é que esta opção de renovação online só é válida para pessoas acima dos 60 anos, muitas delas com dificuldade em usar computadores e internet, disse. “Para a nossa faixa etária, se temos tudo informatizado, não faz sentido termos de vir aqui.”

Os outros tempos de espera: para levantar e ao telefone

Quando chegou ao Campus da Justiça, pouco depois do meio-dia, Carla Madeira tirou a senha 293 para levantar o Cartão do Cidadão que tinha conseguido fazer com agendamento. Na altura, ainda ia no número de 93, mas, em 45 minutos, já tinha avançado até ao 273. Mesmo assim, não se livrou de quase uma hora à espera só para levantar o cartão. Do mesmo queixou-se João, no Portal da Queixa: teve de esperar mais de três horas para levantar o Cartão de Cidadão do filho recém-nascido. Reclamação diferente tem Claudia Kañgoma, que foi chamada à Conservatória do Registo Predial e Comercial de Odivelas para levantar o Cartão de Cidadão e, quando lá chegou, foi informada de que iria haver um atraso na entrega.

Problemas de comunicação como este, por mau atendimento por parte dos funcionários e, sobretudo, por não haver quem atenda os telefones ou responda aos emails são outras das queixas frequentes encontradas no Portal da Queixa. “Os meus pais, de 96 e 92 anos de idade, não se podem deslocar pelo seu pé. Eu, o filho, estou a tentar agendar uma visita domiciliária, a fim de conseguirem obter o Cartão do Cidadão”, contou José Dias, no Portal da Queixa. “Ontem [18 de março], realizei 53 chamadas entre as 15 horas e as 16h30, sem sucesso. Hoje, desde as 12h30 às 14h15 já realizei 125 chamadas, sem sucesso. Ninguém atende o telefone.

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