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O presidente da Câmara Municipal do Porto começa a ser julgado esta terça-feira no âmbito do chamado caso Selminho, um processo que tem tanto de antigo como de polémico. No epicentro está a construção num terreno na Escarpa da Arrábida, propriedade adquirida pela imobiliária Selminho, empresa da família de Rui Moreira, em 2001. Durante vários anos, a imobiliária e a Câmara Municipal do Porto travaram uma luta judicial pela capacidade construtiva do terreno em causa, mas a justiça deu sempre razão à autarquia.
O caso começa efetivamente em 2013, quando Rui Moreira toma posse e assina uma procuração para mandatar representantes da autarquia no processo que envolvia a câmara com a empresa da família do autarca. Um ato meramente formal, mas que segundo a análise do Ministério Público contraria os deveres isenção do autarca, que devia ter-se declarado imediatamente impedido por existir conflito de interesses. O Ministério Público alega ainda que o representante do município cumpriu instruções do presidente.
Em 2019, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou que parte do terreno adquirido pela Selminho pertence ao município e, um ano depois, o Ministério Público considera que o atual autarca agiu em benefício próprio e da imobiliária da família, da qual também era sócio, prejudicando assim os interesses do município. Rui Moreira é acusado de um crime de prevaricação, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, e em causa pode estar a perda de mandato na Câmara do Porto.
Como começou o processo?
Para conhecer a história que dá origem ao famoso Caso Selminho é preciso recuar 20 anos. Em 2001, a imobiliária, sociedade por quotas detida por Rui Moreira e a sua família, comprou um terreno na escarpa da Arrábida com 2.260 metros quadrados por cerca de 175 mil euros. Durante vários anos, a imobiliária e a Câmara Municipal do Porto lutaram em tribunal pela capacidade construtiva do terreno.
No âmbito do Plano Diretor Municipal (PDM) em vigor desde 2006, a propriedade foi classificada como sendo não edificável, levando a imobiliária a avançar para tribunal contra a Câmara, por se ver, assim, impedida de ali construir. Em novembro de 2013, apenas um mês depois de tomar posse como autarca, Rui Moreira concede, através de uma procuração forense, poderes especiais aos juristas Pedro Neves de Sousa, Ana Teixeira Correia e Sofia Nogueira Pinto para “confessar, desistir ou transigir” no âmbito do processo que corre no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto e que opõe o município e a empresa da família e da qual é sócio.
Oito meses depois da assinatura desta procuração forense, é declarado o impedimento do autarca e Rui Moreira é então substituído no processo pela sua vice-presidente na época, Guilhermina Rego. Em julho de 2014, Guilhermina Rego assina uma procuração que abre aporta ao acordo extrajudicial, onde a autarquia assume o compromisso de devolver capacidade construtiva ao terreno, na escarpa da Arrábida, no âmbito da revisão do PDM, ou recorrer a um tribunal para definir uma eventual indemnização à imobiliária.
Quando foi tornado público?
O acordo foi tornado público em 2016 pela CDU, que apresentou uma queixa que acabaria por ser arquivada, uma vez que o Ministério Público (MP) considerou que o autarca não cometera qualquer irregularidade administrativa. Em 2020, o caso conhece uma reviravolta quando um técnico da Câmara do Porto, ao elaborar um parecer de um pedido de limpeza daquela propriedade, concluiu parte dela é municipal. Dos 2.260 metros quadrados que a imobiliária comprou e registou a seu favor em 2001, 1.661 pertencem à autarquia do Porto, informação confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Nesse mesmo ano, o Supremo confirmou a decisão do Tribunal da Relação do Porto que, em outubro de 2019, considerou nula a escritura de venda do terreno na Arrábida feita pelo casal à Selminho. O acórdão da Relação considerou que não ficou provado que o terreno tenha sido adquirido pela família que o vendeu à Selminho nem que alguém o pudesse reivindicar por usucapião.
Que suspeitas recaem sobre Rui Moreira?
Para o MP não restam dúvidas de que Rui Moreira teve “atuação criminosa” durante o “exercício das duas funções como autarca” e em vez de atuar com “imparcialidade” e defender o “interesse público”, atuou “deliberadamente contra a lei, obrigando o município aos interesses da Selminho, com [a] única intenção de beneficiar a empresa de que o próprio arguido, seus irmãos e sua mãe eram sócios”.
No debate instrutório, realizado a 29 de abril, o MP defendeu que o autarca fosse a julgamento, reiterando que, enquanto presidente do município, Moreira agiu em seu benefício e da família, em prejuízo do município. “A única parte que ganhou com isto foi a Selminho. A Câmara [do Porto] não ganhou nada. O Dr. Rui Moreira atuou em benefício seu e da empresa da sua família e fê-lo contra a lei”, declarou o procurador Nuno Serdoura, no debate instrutório. O magistrado do MP questionou a tese de que “advogado incompetente” – Pedro Neves de Sousa -, a quem Rui Moreira outorgou uma procuração, tenha decidido tudo sozinho, nomeadamente quanto ao acordo com a Selminho, potencialmente prejudicial para o município.
O MP recordou que anos antes a Selminho podia ter pedido a reparação de danos por retirada da capacidade construtiva dos terrenos na Arrábida, contudo só o fez após Rui Moreira ter assumido a liderança da Câmara do Porto, em outubro de 2013.
O que disse a juíza?
Em maio passado foi conhecida a decisão instrutória, assinada pela Juíza de Instrução Criminal (JIC), Maria Antónia Ribeiro, que considera ser “solidamente previsível” que uma pena seja aplicada ao arguido. “É solidamente previsível que, se submetido a julgamento, venha a ser aplicada ao arguido, em função da prova recolhida nos autos, uma sanção penal”, sustenta a JIC, acrescentando que Moreira, “enquanto autarca e no exercício dos seus poderes, atuou em clara violação da lei”, da qual tinha “plena consciência”.
Segundo o despacho, na fase de instrução “não foi produzida qualquer prova que pudesse abalar” a acusação do MP, concluindo que o arguido “agiu com intenção direta de beneficiar os interesses da Selminho, [imobiliária] da qual também era sócio, em detrimento da CMP”.
“(…) Do conteúdo da prova produzida em inquérito, da análise, dúvidas não se nos suscitam, num juízo de prognose, que tal prova em julgamento conduziria com razoável e elevada probabilidade – ante o juízo de certeza e segurança que a apreciação da prova em julgamento impõe e exige – à condenação do arguido”, lê-se na decisão instrutória.
Para ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, “o compromisso assumido pelo arguido [em 2014], enquanto representante do município, além de invadir as competências próprias da Assembleia Municipal, quanto à alteração da qualificação do solo do terreno, garante também à empresa Selminho a reclamada pretensão edificatória que eram contrárias às disposições do PDM”.
Quais os crimes que estão em causa?
O autarca do Porto é acusado do crime de prevaricação, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, incorrendo ainda na perda de mandato. O crime de prevaricação é punido com uma pena de 2 a 8 anos de prisão.
O que disse Rui Moreira até agora?
Quando ficou a conhecer a tese do MP, a 18 de dezembro do ano passado, o autarca do Porto confessou “espanto” e “tristeza” e falou de uma acusação “completamente descabida e infundada”. “Não deixarei de assinalar que a acusação é completamente descabida e infundada”, reagiu na altura em resposta ao Observador, acrescendo que a acusação em causa “é muito estranha, tanto no conteúdo como no momento em que é deduzida”.
Numa reunião camarária, realizada três dias depois, voltou a sublinhar que a acusação do MP é “absurda”, “infundada”, “infame” e “ultrajante”, prometendo defender-se de algo que, segundo o próprio, “assenta em conclusões completamente falsas, tendo em vista única e exclusivamente manchar o [seu] bom nome e roubar honorabilidade”. “Quero deixar bem claro, pela enésima vez, que é absolutamente falso, e mentiroso, que alguma vez tenha tido, enquanto presidente da Câmara, qualquer intervenção, ato, participação ou, sequer, sugestão junto dos serviços da Câmara ou dos advogados que a representaram, no que respeita a qualquer questão ou processo que opôs a Câmara Municipal do Porto à empresa Selminho, que é da minha família e de que, indiretamente, sou sócio”, disse.
Em maio de 2021, uma hora depois de ser conhecida a decisão da juíza de instrução criminal de levar o autarca a julgamento, Rui Moreira convocou uma pequena conferência de imprensa onde começou por dizer que “nada de novo resulta desta decisão” e que o processo em causa “não tem qualquer fundamento ou sentido”.
“Esta decisão não me deu nem me tirou razão. Pura e simplesmente, remeteu a discussão para outro momento e para outros juízes. Esta decisão não muda absolutamente nada, nem na minha maneira de ver o processo, que continuo a entender ser completamente destituído de fundamento, nem na minha posição sobre o assunto em questão: é absolutamente inequívoco que não tive qualquer participação em qualquer processo em que estivesse envolvida a minha família e não tomei direta ou indiretamente, ou por qualquer interposta pessoa, qualquer decisão que alterasse a posição do município em qualquer processo judicial”, disse.
Como está a defesa a preparar o julgamento?
O julgamento de Rui Moreira está marcado para os dias 16, 17, 18 e 24 de novembro no Tribunal Criminal São João Novo, no Porto. O advogado do autarca, Tiago Rodrigues Bastos, adianta ao Observador que Moreira irá estará presente na primeira sessão, que decorre esta terça-feira de manhã, mas não garante que esteja nas restantes. “Irá depender da sua agenda, ainda não há uma posição concreta sobre isso”, revela.
Como testemunhas, a defesa vai apresentar Pedro Neves Sousa, antigo advogado do município a quem Rui Moreira outorgou uma procuração em 2013, e Gonçalo Gonçalves, antigo vereador do Urbanismo da autarquia na era de Rui Rio, entre 2009 e 2013.
O advogado de defesa, Tiago Rodrigues Bastos, disse ainda ao Observador estar “tranquilo” e “confiante” relativamente ao desfecho final do processo e garante que apenas falará no fim do julgamento.