Esta segunda-feira começa o julgamento dos Vistos Gold. Este texto, sobre todo o conteúdo da acusação, foi publicado originalmente a 28 de novembro de 2015.

“Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado para concretizar atos ilícitos, muitos na área da corrupção”. A frase é de Joana Marques Vidal, procuradora-geral da República (PGR), foi proferida na primeira entrevista após a detenção de José Sócrates na Operação Marquês e de três altos dirigentes da administração pública na Operação Labirinto e pode ser um bom resumo da acusação do Ministério Público (MP) neste último caso – também conhecido por Vistos Gold.

Nenhum processo pode ser comparado em termos de importância e de simbolismo ao caso Sócrates (e até mesmo ao caso BES) mas o processo Vistos Gold vem logo a seguir como um caso marcante deste primeiro mandato de Joana Marques Vidal como PGR. Tem como protagonistas dois líderes de organismos de Estado (António Figueiredo, então presidente do Instituto de Registos e Notariado, e Manuel Palos, diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e a principal funcionária do Ministério da Justiça (a secretária-geral Maria Antónia Anes). Mas, acima de tudo, foi este o caso responsável pela queda de um dos ministros mais populares do governo PSD/CDS: Miguel Macedo, titular da pasta da Administração Interna que se demitiu a 16 de novembro de 2014 – três dias depois das detenções de Figueiredo, Palos e Anes. Não fosse este processo, Macedo continuaria a ser uma das figuras do PSD que os jornais costumavam apontar como possíveis candidatos à sucessão de Pedro Passos Coelho. Caiu e dificilmente se levantará.

O núcleo central da acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) prende-se com os negócios imobiliários que tinham como objetivo a obtenção de receitas ilícitas em troca da emissão de vistos gold, mas o processo é muito mais do que isso. Dos ilícitos imputados aos arguidos terão resultado ganhos totais de cerca de 435 mil eurosvalor que o DCIAP requer ao tribunal que vier a julgar este caso que seja declarado perdido a favor do Estado. Como? Através do chamado instrumento de perda clássica que consiste na condenação de um pagamento de uma indemnização ao Estado no valor total ganho ilicitamente.

Os arguidos António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), e o casal de empresários Zhu Xhiadong e Zhu Baoe são os que se arriscam a pagar uma indemnização maior: cerca de 100 mil euros para Figueiredo e 268 mil euros para os gestores chineses.

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O ex-líder do IRN e a sua mulher serão ainda confrontados num eventual julgamento com um pedido de perda ampliada por parte do MP. Neste caso, está em causa a discrepância detetada pelos procuradores do DCIAP entre os rendimentos anuais declarados em sede de IRS e os valores realmente depositados nas contas bancárias do casal. Trata-se de uma diferença na ordem dos 231 mil euros, segundo a acusação. Nesse sentido, o MP requer ao tribunal que venha a julgar o caso que declare o arresto desse montante depositado nas contas do casal Figueiredo e que o mesmo seja declarado perdido a favor do Estado.

O mesmo verifica-se com o casal Xhiadong/Baoe, sendo que neste caso está em causa um montante superior: cerca de 512 mil euros. No total, o Estado arrisca-se a ganhar uma receita extraordinária de cerca de 1,1 milhões de euros, caso todos os pedidos do DCIAP sejam satisfeitos.

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Miguel Macedo foi acusado de quatro crimes mas apenas uma dessas situações está relacionada com os vistos gold propriamente ditos. Em todas situações ilícitas que lhe são imputadas está presente o seu amigo Jaime Gomes e as parcerias de negócio lideradas por este empresário — o MP diz mesmo que se conhecem desde os tempos da adolescência e tratam-se por “irmãos”.

Uma parceria antiga

Para os quatro procuradores do DCIAP que subscrevem a acusação, existem negócios antigos entre Miguel Macedo e Jaime Gomes que sustentam a sua proximidade pessoal e empresarial – negócios esses que derivam de participações que, segundo o MP, não terão sido declaradas por Macedo ao Tribunal Constitucional como estava obrigado enquanto deputado da X e XI Legislatura e ministro do governo PSD/CDS (2011/2015).

Em 2008, era Macedo deputado, os dois amigos terão tido uma parceria com o grupo Often (especialista em mobiliário urbano e de escritório), na qual teriam como missão “facilitar contactos com entidades públicas e privadas a fim de «blindar/fechar negócio», fazer a aproximação a quem de direito e indicado por vós, disponibilizar informação a fim de estabelecer contacto imediato sempre que saiam novos concursos, junto das entidades contratantes, nomeadamente públicas”, lê-se no despacho de acusação que cita o contrato assinados entre as partes.

A Often terá conseguido contratos com diversas entidades públicas: Ministério da Administração Interna, Galp, Tabaqueira, Biblioteca Nacional, EDP, APL – Sines; IRN (Lojas do Cidadão), Câmara Sintra, AMA – Agência para a Modernização Administrativa mas o MP apenas refere um contrato como tendo intervenção da dupla Macedo/Gomes: o da Ilhas Valor, empresa pública dos Açores, pelo qual a mulher de Jaime Gomes, alegada testa de ferro, terá recebido 16 mil euros do grupo Often.

Outras parcerias estarão relacionadas com a empresa JMF – Projects & Business – sociedade da qual foram sócios Miguel Macedo, Jaime Gomes, Luís Marques Mendes e Ana Luísa Figueiredo (filha de António Figueiredo, o principal arguido do caso Vistos Gold) e que teve como única atividade comercial um contrato de dezembro de 2009 com a empresa espanhola Fitonovo para a “facilitação de negócios e contactos privilegiados no âmbito da contratação pública” a troco de uma comissão de 2%. Desse contrato, terão resultado pagamentos de 31 mil euros à JMF que foram distribuídos em partes iguais pelos sócios em dezembro de 2011. De acordo com as contas do MP, esta comissão paga à JMF terá subjacente um valor global de 1,5 milhões de euros contratos feitos com o Estado.

A posição contratual da JMF com o grupo Fitonovo foi transmitida à empresa JAG – Consultoria e Gestão – empresa de Jaime Gomes que foi acusada no âmbito do processo Visto Gold. No âmbito de um contrato igualmente de facilitação de negócios com o Estado, a JAG terá recebido cerca de 172 mil euros entre 2011 e 2013.

Também terão existido contactos entre Jaime Gomes/Miguel Macedo com José Santa Clara Gomes do grupo Bragaparques a propósito de Parcerias Público-Privadas no Brasil na área da exploração de parques de estacionamentos adjudicados pela Codeplan – Companhia de Planejamento do Distrito Federal de Brasília. Esses contactos, contudo, não terão tido efeitos práticos. O mesmo já não se pode dizer sobre a Tecnobras – uma empresa brasileira de serviços de informática. Terá sido mesmo constituída em julho de 2011, já depois de Macedo ter tomado posse como ministro da Administração Interna do Governo de Passos Coelho, tendo como sócios, segundo o MP, António Figueiredo, Jaime Gomes, Miguel Macedo e o luso-brasileiro Paulo Elísio de Souza, presidente da Câmara do Comércio e Indústria do Rio de Janeiro.

Os alegados quatro crimes

São estes antecedentes de relações comerciais que levaram o MP a reforçar a sua convicção de que existia uma especial relação entre Miguel Macedo, Jaime Gomes e António Figueiredo (que tinha chegado a líder do Instituto dos Registos e Notariado por indicação do secretário de Estado da Justiça, Miguel Macedo), com Manuel Palos pelo meio. As quatro situações que deram origem à acusação contra Miguel Macedo são as seguintes, como o Observador já noticiou:

  • Jaime Gomes, António Figueiredo e o empresário chinês Zhu Xhiadong terão acordado a criação de uma sociedade comercial na China para angariar candidatos aos vistos gold, propondo-lhes os respetivos investimentos imobiliários. Nesse sentido, necessitavam de um oficial de ligação para a imigração na embaixada portuguesa em Pequim que pudesse apressar a emissão de vistos. A pedido de Jaime Gomes, Miguel Macedo, o ministro que tutelava do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), terá ordenado ao diretor nacional Manuel Palos que lhe propusesse a criação de tal posto na embaixada portuguesa. O que veio a acontecer mas sem efeitos práticos devido, segundo o MP, a uma fuga de informação sobre a existência desta investigação. Crime imputado: prevaricação de titular de cargo político em regime de co-autoria com António Figueiredo, Manuel Palos e Jaime Gomes
  • No contexto em que Jaime Gomes aparecia como consultor da Intelligent Life Solution (ILS), empresa de Paulo Lalanda e Castro, Macedo terá voltado a ordenar a Manuel Palos que emitisse vistos de estada temporária para cidadãos líbios que vinham a Portugal receber tratamento médico no âmbito de contrato entre a ILS e a Líbia. Crime imputado: prevaricação de titular de cargo político em regime de co-autoria com Manuel Palos
  • No âmbito da ligação comercial à ILS, Gomes solicitou uma segunda intervenção de Miguel Macedo num conflito fiscal entre as Finanças e a empresa de Lalanda e Castro. Estava em causa o pagamento de IVA (no valor de um milhão de euros) sobre as faturas emitidas pelos serviços prestados às autoridades líbias. Devido à intervenção de Macedo, que ligou ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (Paulo Núncio), Lalanda conseguiu a reunião para apresentar os seus argumentos. Emitidos diversos pareceres na Autoridade Tributária, certo é que não só a ILS levou a sua avante, como, segundo o MP, poupou igualmente mais 1,1 milhões de euros de IVA para o ano fiscal de 2014. E terá acabado por receber um reembolso de mais de 43 mil euros. Refira-se que Núncio sempre foi testemunha, nunca tendo sido encarado pelo MP como suspeito de qualquer ilícito. Crime imputado: tráfico de influência em regime de co-autoria com Jaime Gomes
  • Jaime Gomes terá igualmente recebido de Miguel Macedo, através do email oficial que este usava enquanto ministro da Administração Interna, o caderno de encargos relativo ao concurso internacional de manutenção dos helicópteros do Estado. Tal documentação acabou nas mãos da empresa Easy Jet, adquirida pouco antes pelo grupo Bragaparques, que viria a ganhar o concurso. Crime imputado: prevaricação de titular de cargo político

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Figueiredo, o arguido com acusação mais pesada

Se Macedo é a cara mediática, António Figueiredo é o principal arguido do processo. Pelo menos, a julgar pela pesada acusação que incide sobre si – de longe, a mais pesada de todos os arguidos. São 13 crimes, dos quais saltam à vista os quatro crimes de corrupção passiva para ato ilícito.

O primeiro desses alegados crimes de corrupção passiva está relacionado com os negócios imobiliários relacionados com os vistos gold. De acordo com a acusação do DCIAP, António Figueiredo terá feito o seguinte acordo com o empresário chinês Zhu Xhiadong:

  • Participar ativamente na angariação de imóveis;
  • Agilizar os procedimentos burocráticos relacionados com os vistos gold desejados pelos compradores desses imóveis, com autorizações de residência simples e até vistos simples de entrada de cidadãos chineses em Portugal. Como? Exercendo alegada influência junto de Manuel Palos, que terá aceite os pedidos de António Figueiredo para favorecer 33 cidadãos chineses nos respetivos processos administrativos;
  • Colocar à disposição dos interesses de Zhu Xhiadong meios e funcionários do IRN para promover a realização célere das respetivas escrituras de compra e venda
  • Em troca, o ex-presidente do IRN terá recebido, segundo a acusação, uma comissão por cada negócio pelos serviços prestados.

Deixando de lado os alegados favorecimentos na agilização e facilitação de escrituras públicas ou de obtenção de vistos gold, mesmo uma atividade lícita como a angariação de imóveis estava vedada a António Figueiredo, pois o então líder do IRN estaria impedido legalmente de ter outra atividade por ser um dirigente da administração pública em exclusividade de funções.

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De acordo com a acusação, António Figueiredo terá depositado um total de cerca de 89 mil euros em numerário entre 2011 e 2014 em contas bancárias por si tituladas em conjunto com a sua mulher mas também da sua filha e do seu primo direito Fernando Pereira. Esse valor terá resultado, segundo o DCIAP, no pagamento de comissões dos Vistos Gold e de outras situações que veremos à frente. Daí a acusação de alegada corrupção passiva para ato ilícito em regime de co-autoria com Manuel Palos.

O ex-diretor nacional do SEF, com a ajuda que deu na agilização dos processos burocráticos, terá permitido aos empresários chineses poupar entre os dois mil e os seis mil euros por cada caso. Segundo o DCIAP, eram esses os valores que os escritórios de advogados praticavam no acompanhamento de cada processo administrativo de visto gold.

Os negócios imobiliários que estiveram subjacentes a essas comissões, contudo, foram substancialmente mais elevados. Entre Lisboa e Cascais, os empresários Zhu Xhiadong, Zhu Baoe (mulher de Xhiadong) e Xia Baoling terão participado em negócios imobiliários que movimentaram cerca de 3,8 milhões de euros e geraram mais-valias de cerca de 900 mil euros entre 2013 e 2014.

Os empresários chineses foram acusados dos mesmos crimes (corrupção activa para acto ilícito e tráfico de influências) por alegadamente terem prometido contrapartidas a António Figueiredo em troca dos seus serviços e terem sido alegados cúmplices na influência que o presidente do IRN exerceu sobre Manuel Palos.

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O concurso de António Figueiredo para presidente do IRN

Maria Antónia Anes, secretária-geral do Ministério da Justiça, foi encarregue pela ministra Paula Teixeira da Cruz de elaborar um conjunto de documentação essencial para a abertura do concurso na Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) para o cargo de presidente do IRN. Na teoria, António Figueiredo deveria ter tido concorrência de outros dirigentes da administração pública ou de privados interessados em concorrer aquele lugar. Na prática, e de acordo com a acusação do DCIAP, Maria Antónia Anes tudo terá feito, em alegado conluio com Figueiredo, para que este fosse beneficiado face aos dois candidatos que se apresentaram.

Anes terá permitido que os requisitos para o cargo (definidos pelo Ministério da Justiça e enviados por Anes para a CReSAP como documento preparatório da abertura do concurso) tenham sido elaborados pelo próprio António Figueiredo para se encaixarem no seu perfil profissional. Após a abertura do concurso, e já como membro do júri do mesmo, Maria Antónia Anes esteve em comunicação permanente com Figueiredo, enviando-lhe previamente documentação confidencial que só deveria conhecida ao mesmo tempo que os restantes concorrentes, corrigindo-lhe textos que o próprio já tinha submetido, informando-o sobre a identidade e documentos enviados pelos restantes concorrentes e dando-lhe informações reservadas sobre a avaliação das suas provas escritas de forma a que pudesse corrigir as mesmas durante a fase da entrevista pessoal. Tudo, segundo o MP, em violação dos seus “deveres de isenção, sigilo e objectividade”.

A CReSAP decidiu não escolher António Figueiredo nem os restantes dois candidatos. Ficando a decisão nas mãos da ministra da Justiça que, com a ausência de alternativas, decidiu reconduzir Figueiredo. Este concurso da CReSAP não foi a única seleção de dirigentes da Administração Pública que a dupla Anes/Figueiredo terá tentado influenciar. Segundo o DCIAP, verificaram-se mais três situações relacionadas com os seguintes cargos:

  • Chefe de Divisão de Recursos Humanos do IRN – António Figueiredo terá tentado influenciar o presidente do concurso para ser escolhida a candidata preferida de Anes. Sem sucesso;
  • Vogal do Conselho Diretivo do IRN – Figueiredo desejava a nomeação de Luís Goes Pinheiro e Anes terá repetido a mesma estratégia que já tinha seguido com Figueiredo no concurso para presidente do IRN. Também não teve sucesso porque, apesar da CReSAP ter indicado Pinheiro com um dos três melhores candidatos, a ministra Paula Teixeira da Cruz escolheu João Rodrigues;
  • Secretário-Geral do Ministério da Administração Interna – Mais uma vez, Figueiredo e Anes tinham um candidato favorito que queriam ver indicado pela CReSAP: Humberto Meirinhos. Apesar das diligências feitas, e que chegaram a envolver uma conversa entre Figueiredo e Miguel Macedo, Meirinhos acabou por desistir do concurso.

Neste ultimo caso, o DCIAP deu particular atenção à motivação de Maria Antónia Anes para tentar favorecer Humberto Meirinhos. Este foi presidente dos Serviços Sociais da Administração Pública, onde conheceu Anes, tendo adjudicado três obras no valor de 56 mil euros a uma empresa designada Easyconcept. Segundo o DCIAP, os donos desta última sociedade eram vizinhos e amigos de Maria Antónia Anes, tendo decidido subcontratar uma segunda sociedade (a Flowmotion Flower Design) para prestar serviços naquela empreitada. Não viria mal ao mundo para o DCIAP, não fosse a Flowmotion uma empresa recém-constituída propriedade do filho e da nora de Anes. O MP diz que esta foi a motivação para a então secretária-geral do Ministério da Justiça ter tentado influenciar o concurso do MAI em benefício de Humberto Meirinhos.

A Flowmotion teve também uma avença mensal de 1.600 euros com o IRN – situação que foi alvo de investigação mas arquivada por o ajuste direto ter sido legal.

Angola e a “avidez do dinheiro” de Figueiredo

Angola ocupa uma parte importante da acusação e está na origem do crime de corrupção passiva para ato ilícito que é imputado a António Figueiredo, alegadamente corrompido, segundo o DCIAP, por um empresário angolano chamado Eliseu Bumba – a quem é imputado a alegada prática do crime de corrupção ativa para ato ilícito.

Segundo a acusação do DCIAP, o então presidente do IRN terá tentado lucrar ilicitamente com a subversão do protocolo de cooperação entre Portugal e Angola na área da Justiça, usando meios e funcionários do IRN como se fossem privados e acordando com o empresário angolano Eliseu Bumba um valor por essa alegada prestação de serviços que deveriam ser gratuitos. As palavras dos quatro procuradores do DCIAP que subscrevem a acusação são claras: “António Figueiredo, através destes esquemas, mostrava uma avidez por dinheiro e propunha-se fazer todos os negócios possíveis em Angola, na perspetiva de que era uma mina e que tinha que arrebanhar por todo o lado e armazenar o tempo todo, mercadejando a violação dos deveres inerentes às funções públicas que exercia como primeiro dirigente do IRN”, lê-se no despacho de acusação.

Para percebermos melhor o interesse de António Figueiredo em Angola temos de recuar até 2006, altura em que conheceu Eliseu Bumba, então secretário do Consulado-Geral de Angola em Lisboa. Apercebendo-se, segundo o DCIAP, das boas relações que Bumba tinha no Ministério da Justiça (MJ) daquele país africano, Figueiredo mostrou-se interessado em participar nos projetos de modernização do setor em Angola, nomeadamente em termos informáticos. Tudo com o objetivo, segundo a acusação, de vir a trabalhar mais tarde em Luanda para uma sociedade angolana ou até mesmo para o MJ de Angola com um ordenado mensal superior a 10 mil euros.

O plano de Figueiredo e de Bumba teve, segundo o DCIAP, duas fases distintas:

  • A criação de uma empresa informática chamada Step-Ahead Angola, em que Bumba teria 75% do capital social e Paulo Guerra, dono da Step-Ahead Portugal, o remanescente. Esta empresa, contudo, seria mais tarde transformada em Merap Consulting em fevereiro de 2012 devido a desentendimentos ocorridos entre Bumba e Guerra.
  • E a criação de três sociedades que tinham funcionários do IRN como sócios: Elisa Alves, José Manuel Gonçalves e Paulo Eliseu. Mais tarde, juntou-se a este grupo o colega Paulo Vieira. Gonçalves, Eliseu e Veiria eram técnicos informáticos, enquanto Elisa trabalhava nos serviços centrais do IRN e era a pessoa de confiança de Figueiredo. Foram assim criadas as sociedades por quotas Globalregis, Simpliregis e Formallize para operarem em Angola e das quais, diz o DCIAP, António Figueiredo era sócio oculto.

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As primeiras oportunidades de negócio terão sido aplicadas através da empresa Simpliregis e visavam o seguinte:

  • Elaboração de um Plano Estratégico de Intervenção na Modernização dos Registos e do Notariado de Angola;
  • Ações de formação em Angola;
  • Revisão dos Códigos de Registo Civil, Predial, Comercial, Automóvel e Notariado;
  • Desenvolvimento de aplicações informáticas para o MJ de Angola.

Figueiredo e Bumba pretendiam cobrar 350 mil dólares americanos em 2012 ao MJ de Angola pelo primeiro desses objetivos. Assim, a Simpliregis terá emitido faturas nos primeiros nove dias de Janeiro de 2012 no valor total de cerca de um milhão de euros (cerca de 586 mil euros). Contudo o DCIAP só conseguiu localizar uma pequena parte destes valores contratualizados:

  • 50 mil dólares (47 mil euros a câmbio de hoje) que alegadamente terão sido entregues em numerário a Elisa Alves por Eliseu Bumba
  • 60 mil dólares (56,5 mil euros) que terão sido depositados numa conta angolana de uma irmã de Elisa Alves.
  • 100 mil dólares (cerca de 90 mil euros) transferidos pela Step-Ahead para uma conta da Simpliregis na Caixa Geral de Depósitos.

A Simpliregis e os seus sócios foram investigados pelo DCIAP pelo crime de corrupção mas os autos acabaram por ser arquivados devido à dissolução da sociedade – ocorrida por desentendimentos entre António Figueiredo e Elisa Alves. Para os procuradores, contudo, não restam dúvidas de que os pagamentos à Simpliregis ocorreram “em grande parte em Angola, e em numerário”, sendo que tudo não passou de um alegado “estratagema encontrado por aqueles arguidos para retirar dinheiro de Angola e o distribuir depois entre todos”. Os arguidos em questão, segundo o DCIAP, são Elisa Alves, José Manuel Gonçalves, Paulo Eliseu e António Figueiredo.

Já em 2013 e 2014, e no âmbito do Protocolo de Cooperação assinado entre Portugal e Angola pelos ministros da Justiça dos dois países (Paula Teixeira da Cruz e Rui Mangueira), verificaram-se novos avanços por parte Eliseu Bumba e António Figueiredo no desenvolvimento dos seus negócios em Angola:

  • Ações de formação a funcionários do MJ de Angola em que os funcionários do IRN receberam 2.500 a 5.000 dólares em dinheiro vivo entregue por funcionários da empresa de Eliseu Bumba – “montantes muito superiores aos que lhe eram devidos” com as ajudas de custos normais, segundo o DCIAP
  • E, mais importante, a recuperação da proposta de revisão dos Códigos de Registo Civil, Predial, Comercial, Automóvel e Notariado.

Neste último ponto, as intenções de Figueiredo e Bumba foram tendo evolução com o desenrolar do processo – sendo que o papel de coordenador que pertencia a Elisa Alves foi assumido por Abílio Silva. Em 2009, e através da Step-Ahead Angola, foi feita uma proposta financeira ao MJ angolano no valor de 3,1 milhões de euros. Esse valor subiu quando foi necessário fazer uma nova proposta através da Globalregis (entretanto, Paulo Guerra e Eliseu Bumba tinham cortado a parceria na Step-Ahead) no valor de 3,2 milhões de euros e que foi apresentada à então ministra da Justiça angolana, Guilhermina Prata. O valor voltou a subir para 3,4 milhões de euros antes do final de 2012, tendo descido quando o “ministro da Justiça de Angola [Rui Mangueira] acordou com Eliseu Bumba a realização da reforma legislativa, através da equipa de António Figueiredo”, lê-se no despacho, acrescentando os quatro procuradores o seguinte: “Acordaram, ainda, o ministro da Justiça de Angola e Eliseu Bumba que António Figueiredo e a sua equipa apresentariam, urgentemente, uma proposta com um orçamento inferior ao orçamento de 2 milhões [de euros]” que o presidente do IRN “tinha apresentado anteriormente para revisão dos códigos de Cabo Verde”, lê-se no despacho de acusação.

Assim, o valor final pelos serviços de António Figueiredo e da sua equipa do IRN ficou em 1,2 milhões de euros.

Segundo o DCIAP, o ministro Rui Mangueira ponderou falar com Paula Teixeira da Cruz sobre este acordo com Figueiredo mas decidiu não fazê-lo. Se o tivesse feito, a então ministra da Justiça teria descoberto as atividades privadas do presidente do IRN. Ao longo do despacho de acusação, os quatro procuradores asseguram por diversas vezes que Paula Teixeira da Cruz desconhecia em absoluto os atos de Figueiredo e de Maria Antónia Anes – pessoa que a ministra julgava ser de confiança.

Quem são os sócios do ACPC - Advogados Associados?

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Este escritório foi fundado por Carlos Feijó (ex-ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do presidente José Eduardo dos Santos), Raul Araújo (atual juiz do Tribunal Constitucional de Angola, coordenador da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito e ex-bastonário da Ordem dos Advogados entre 2002 e 2004) e Edeltrudes Costa (atual ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República). Feijó já saiu da sociedade que chegou a ter o seu nome, enquanto que Araújo e Costa têm a ligação à ACPC suspensa em virtude dos cargos públicos que exercem.

O negócio, contudo conheceu um grande percalço. O Ministério da Justiça de Angola decidiu em 2014 contratar o escritório ACPC – Advogados e Associados por um valor que se situa entre os “300 milhões e os 400 milhões de euros”, segundo o DCIAP, para operacionalizar todo o processo de modernização da Justiça.

De acordo com a acusação, o acordo anterior entre António Figueiredo e Eliseu Zumba manteve-se em vigor e a Merap Consulting assinou um contrato de prestações de serviço com o ACPC para assegurar o “controlo da execução do plano [de revisão dos códigos], atuando o ACPC em representação do Ministério da Justiça angolano em todo o processo”. Em troca, a Merap receberia cerca de um milhão de euros.

O DCIAP, contudo, não conseguiu detetar a totalidade dos circuitos financeiros por onde passaram estes valores contratualizados, tendo apenas localizado a alegada entrega de 30 mil euros em numerário a António Figueiredo.

Aproveitamento dos serviços informáticos do IRN

Outra situação relacionada com negócios com Angola diz respeito à comercialização de aplicações informáticas do IRN com Angola. Mais uma vez, estamos perante uma operação abrangida pela cooperação entre Portugal e Angola e que foi alvo de negócios privados.

A primeira aplicação a ser ‘vendida’ foi o Sirauto -Espaço Registo [Automóvel], tendo alegadamente os técnicos informáticos José Manuel Gonçalves, Paulo Eliseu e Paulo Vieira participado na adaptação do sistema à administração pública angolana através de uma prestação de serviços prestada à Lusomerap, filial portuguesa da Merap Consulting. Tudo terá sido feito dentro do horário de serviço no IRN, com o conhecimento e autorização de António Figueiredo.

Por este serviço, a Lusomerap faturou à Merap Consulting, a sua casa-mãe, cerca de 600 mil euros em Março de 2014. Mais tarde, em fevereiro de 2014, a Merap terá pago cerca de 84 mil euros à Formallize por uma aplicação informática de contabilidade.

Os arguidos acidentais

Há dois arguidos acidentais no processo dos Vistos Gold. Um chama-se Fernando Pereira, é bancário na Caixa Agrícola Mútuo de Tábua (distrito de Coimbra), primo de António Figueiredo, e foi acusado do crime de branqueamento de capitais por alegadamente ter ajudado o ex-presidente do IRN a ocultar a origem do dinheiro proveniente das atividades alegadamente ilícitas. Além de ter disponibilizado uma conta sua para Figueiredo depositar dinheiro, Pereira terá ainda recebido dinheiro vivo do seu primo para depositar na conta que aquele e a sua mulher tinham aberto na sua agência bancária.

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Já João Salgado, administrador da Coimbra Editoral, também aparece envolvido neste caso por intermédio de António Figueiredo. Responsável pela composição gráfica e edição do livro “Código de Registo Civil Anotado e Legislação Complementar”, em que um dos autores é Eliseu Bumba, Salgado cobrou cerca de 10 mil euros à Lusomerap pelo trabalho. Contudo, terá combinado previamente pagar uma comissão do serviço a António Figueiredo (que lhe tinha proporcionado o contrato) e ao seu braço direito Abílio Silva, de acordo com a acusação.

O caricato, segundo a descrição feita pelos procuradores do DCIAP no despacho de acusação, é que João Salgado terá pedido ajuda a António Figueiredo sobre a forma como deveria entregar o dinheiro da comissão. O ex-presidente do IRN ter-se-á disponibilizado a dar-lhe dicas, tendo Salgado, de acordo com o DCIAP, entregue no final de 2013 um envelope com 1.000 euros em dinheiro dentro de um livro. António Figueiredo e Abílio Silva, contudo, não terão ficado satisfeitos com o valor, diz o MP.